Deu a louca no ator
Cléber Lorenzoni)
Cena I
(em cena)
Fag- A
vida (tosses)... A vida é uma sombra que passa (tosses)... Uma história cheia
de som e fúria (tosses)... Uma história cheia de som e fúria (tosses) contada
(tosses) por (tosses) um louco (tosses). Merda! Merda, assim não tem como
continuar. Droga! Mas que Merda!
(chega ao camarim e toma
remédios)
Fag-
Droga, assim não dá...
Ator-
O que aconteceu?
Fag-
Nada!
Ator-
Como nada? Você ta bem?
Fag-
Vai pro seu camarim, vai.
Ator-
Fala comigo, o que houve?
Fag-
Você não viu o cara na 1ª fila com os pés em cima do palco?
Ator-
O que é que tem?
Fag-
Você não viu? Ele tirou os sapatos!
Ator-
E daí?
Fag-
Como, e daí? Ele tirou os sapatos, tirou as meias, pôs os pés em cima do palco
e ficou fazendo assim com os dedinhos! No meio da minha fala, os pés em cima do
palco!
Ator-
Eu não vi.
Fag-
Como é que eu vou dizer o meu texto com alguém fazendo assim com os dedinhos?
Como você não viu?!
Ator-
Não vi.
Fag- O
palco é sagrado, não te ensinaram, não? O palco é sagrado! Um tablado, dois
atores e uma paixão...e o cara fazendo assim com os dedinhos, pô! Como se
estivesse na porra da sala da casa dele!
Ator-
Calma! Foi só isso?
Fag- É
claro que não foi só isso! Outro dia era o mesmo cara, só pode ser, ele ficou
comendo pipoca a peça toda(imita o ruído)...a peça toda! E punha os pedacinhos
de pipoca em cima do palco, você não viu também? No fim do espetáculo tinha um
lixinho, você acredita? Um montinho de lixo na frente dele e em cima do palco,
pombas! O palco é sagrado!
Ator-
Mas isso foi outro dia, o que aconteceu hoje?
Fag-
Eu to velho pra isso, eu não agüento!
Ator-
Você ta estressado, fica calmo e me diz o que aconteceu?
Fag-
Não é possível que você não veja, que você não ouça!
Ator-
Eu ouço.
Fag-
Você ouve o bip dos relógios?
Ator-
Ouço.
Fag- A
cada dois minutos? Bi-bi, bi-bi, bi-bi! O quê que o desgraçado faz com esse
sinal, hein? Ele toma um remédio? Ele se aplica injeção na veia? Ele joga na
bolsa de valores? Não! É só pra encher o saco mesmo! E quando tem musiquinha
então?(imita a música) Você não ouve?! É impossível que você não ouça!
Ator-
Não, eu ouço!
Fag-
Não te incomoda?
Ator-Incomoda..
Fag- E
você continua?!
Ator-
Você também continua...
Fag-
Mas me incomoda!
Ator-
Faz parte do jogo!
Fag-
Tem que desligar o bip dos relógios, tem uma gravação pedindo isso antes do
espetáculo começar. Tem que revistar todo mundo na entrada como no aeroporto e
tirar a tralha toda: saquinho de pipoca, relógio com bip...Tem que revistar o
cara inteirinho, tirar toda tralha, pra segurança do espetáculo!
Ator-
Como você ta tenso!
Fag- E
o celular?! E o celular? Outro dia o cara deixou tocar oito vezes, OITO vezes!
Dois meses preparando aquela pausa, buscando aquele silêncio... Faz parte do
jogo também, o silêncio. A mulher acabou de se matar, você ta sozinho em cena,
o exército inimigo cercando... silêncio... Você diz: “A vida é uma sombra que
passa, uma história idiota cheia de som e de fúria, contada por um louco,
significando nada”...silêncio...a coisa toda vai pra platéia, silêncio, e de
repente...”tananananananam. Como é que alguém pode pensar na brevidade da vida
com um celular tocando? Se eu quisesse um celular, eu mandava gravar um pra
botar na hora!
Ator-
Vai ver ela não conseguia desligar.
Fag-
Você não ouviu, você não tava em cena, a filha da puta atendeu e ficou falando
com o namorado: “Alô, oi meu amor, eu to aqui no teatro, eu acho que
começou...”Acho?!!! Ela não sabia?! O palhaço ali parado na frente dela e ela
nem percebeu que tinha começado. Você não percebeu nada!
Ator-
eu não tava em cena!
Fag-
Se tivesse não ia nem perceber.
Ator-
É, é a 4ª parede!
Fag-
Onde é que ta? Onde que tá a 4ª parede?! Tem gente ali sentada pra ver, você
não sabe disso, não? Eles saíram de casa todos arrumadinhos e sentaram ali pra
te ver, pelo menos é o que se supõem, pra ouvir as coisas que você preparou
durante meses, um trabalho infernal, noites e noites pesquisando, só pra
eles... É uma droga!!
Ator-
Você não pode pensar nisso quando ta em cena.
Fag-
Claro que eu posso! É só nisso que eu penso! Essa conversa de 4ª parede é
conversa de ator preguiçoso!...
Ator-
Tem que abstrair.
Fag-
...que abstrai a platéia e se fecha dentro do palco feito um papagaio
programado para repetir as suas próprias falas, se comendo pelo próprio umbigo!
Eu sou um comunicador, pomba, eu preciso do outro, do lado de lá.
Ator-
Então...eles estão vivos!
Fag-
Mas não pode falar no celular...
Ator-
Eles pagaram...
Fag- Não
pra “mijar em cima de mim”...
Ator-
Você tá nervoso, hein!!!
Fag- E
as tosses??!! O que eles tossem, meu Deus do céu! Essa gente deveria ir para um
hospital, não pro teatro! Eles estão doentes, isso é enfisema pulmonar. Por
favor, tem um médico? Ele esta doente,
chama o samu!
(batem na porta)
Fag-
Não abre!
Ator- Eles
querem saber o que houve!
Fag-
Não abre, eu já disse!
Ator-
Você vai ter um troço, para com isso!
Fag-
Tinha que ter um jeito se selecionar quem senta na primeira fila. A primeira
fila não é pra amadores é só pra profissionais. A moça da portaria tinha que
perguntar: Boa noite, “Você é profissional, Tem Qi pra compreender o que eles
vão falar na peça? Não tem? Então lá pra
trás! Última fila!” Tinha que ter um jeito!
(batem na porta) Pára de bater
na porra da porta do meu camarim!!
Ator-
Pega aqui! Toma um calmante.
Fag-
Já tomei..
Ator-
Toma outro então!
Fag- Já
tomei outro, não faz mais efeito.
Ator-
O terceiro vai ter que fazer efeito. (pega o remédio e um copo d’água)
Fag-
Deve ser falsificado, eles falsificam até remédio pra câncer, agora...Ai! Outro
dia tinha uma velhinha sentada na 1ªfila, essa gente só senta na 1ª fila, ela trouxe
um chimarrão, tudo bem, de repente eu acho que a bomba entupiu por que ela
começou a chupar, mas ela chupava, ela chupava o chimarrão de um jeito que
parecia que estava tomando sopa, ela fazia um barulhão tão grande que nem eu
mesmo conseguia mais me ouvir. Eu parei de fala e olhei pra ela. Eu dei aquele
olhar e achei que ela perceberia que não era pra tomar chimarrão. Sabe o que
ela fez? ME OFERECEU!!! Ela me ofereceu um chimarrão, pombas! A simpática... Ela
pensou o que? Que eu ia parar o espetáculo, descer do palco e fazer uma “mateada”
com ela?!
Ator-
Público de televisão.
Fag-
Aqui é um teatro, porra!
Ator-
Televisão eles assistem assim ó!...(deita-se no sofá) tomando chimarrão, você
deveria saber disso.
Fag- Televisão
é um eletrodoméstico, você leva pra onde você quiser. Você pode ver no banheiro,
pode ver pelado, fazendo amor, cagando se tiver afim...
Ator-
Por isso eles ficam tão á vontade, pensam que a gente não ta vendo.
Fag- ninguém
contou a diferença, não?
Ator-
parece que não. Você ta mais calmo?
Fag-
Eu pareço mais calmo? Você é muito jovem ainda, tudo isso é novidade pra você.
Você não liga. Eu to velho, deve ser isso.
Ator-
Há, há! Não fala assim, vai!
Fag-
Eu não agüento mais. Você sabe que eu entro no palco meia-hora antes do
espetáculo começar!
Ator- Para
se concentrar...
Fag-
Nada, concentrando, nada! Esse negócio de concentração quem precisa é centro
espírita. Eu fico ouvindo o público, eu fico ouvindo... Eu fico ouvindo a
respiração deles, o humor. Eu sou capaz de saber como vai ser durante o
espetáculo, só de ouvir o jeito deles se comportarem nessa meia-hora. O jeito
que eles têm de entrar na sala, como eles fazem pra descobrir o lugar na
platéia, eu fico ouvindo...não adianta, você não entende.. Quanto tempo você
faz teatro? Um ano?
Ator-
Dois!
Fag- A
então ainda não aprendeu nada. Sempre fez assim, então nunca pensou que podia
ser diferente? Aí você entra em cena, imagina aquela 4ªparede te separando
daquele buraco negro que é a platéia, pode ter até gente sentada lá, tanto faz,
você liga o seu piloto automático e vai recitando o seu pedaço de texto até o
fim dos dias, haja o que houver, chova ou faça sol. Eles podem até ter ido
embora, você nem fica sabendo. Você faz a sua parte, pronto!
Ator-
E não é assim que tem que ser?
Fag-
Nãooo!!! É uma droga!!! Você precisa do outro do lado de lá, eu sempre me
angustiei com essa historia de quarta parede, separando o palco da platéia,
abaixa a cortina e daí? Largam a gente ardendo aqui dentro? Queimando
solitários a nossa paixão? Você não ia queimar nem o dedo mindinho...
Ator-
Como você é diferente, não é?
Fag- Eu
sentia a alma do público, eu conhecia, eu sabia o cheiro, eu olhava nos olhos
deles, a combinação das roupas, sentia o hálito. Nunca reparou o jeito que eles têm de entrar
na sala do espetáculo? O teatro era um templo, um lugar sagrado, as pessoas
entravam na sala, reverentes, emocionadas, elas chegavam meia hora antes, era
um ritual, elas compravam o programa... elas compravam o programa! Sentavam nos
seus lugares, falando baixinho, entrando no clima e liam... a eles liam o
programa...
Ator- Agora
se você distribui programas eles deixam jogados pelas cadeiras...
Fag-
agora parece uma feira! Ta marcado pra começar às 7:00h, alguns chegam às 7:15h!
Ator-
Você não deixa entrar.
Fag- E
gritam, gargalham, falam no celular, falam com a mãe Joana, você pode dar
1,2,3, mil sinais e ninguém sabe que porra de campainha é essa que ta tocando, pensam
que é da casa vizinha, continuam a falar, falar, falar...Você apaga a luz e
eles continuam falando. O espetáculo já começou quando a luz apaga, mas não, o
jogo de futsal é mais importante do que
qualquer coisa que você queira mostrar pra eles....Cheios de assunto...
Ator-
Eles são alegres, são divertidos...
Fag- É
que eu sou chato! Eu não sou um pedaço de carne. Isso aqui não é um açougue.
Você viu o que eles fizeram hoje quando apagaram a luz? Assobiaram como se eu
fosse a porra de um programa de auditório. É Shakespeare!
Ator-
Não foi isso! Você ficou puto porque eles assobiaram?
Fag- O
outro tirou o sapato.
Ator-
Ta, eles assobiaram e o outro tirou o sapato. Foi isso?
Fag-
Não foi só isso. Aquele cara da 3ªfila do casaco branco...
Ator-
O quê que tem?
Fag- A
cada dois minutos ele fazia assim (ergue os braços e se espreguiça). A cada
dois minutos!!!
Ator-
Você contou o tempo?
Fag- E
deixava o braço esticado lá em cima (levanta). A cada dois minutos!!!
Ator-
Ele contou o tempo! Você reparou no casaco dele?
Fag-
Ninguém reclamou, o cara tava tirando a visão de duas dúzias de pessoas atrás
dele. Ninguém reclamou!!!
Ator-
Ah! Isso é demais!
Fag-
Aquela mulher da primeira fila com a doença de são Guido. Você não viu? Você
não vê nada! Não parava de balançar a perna.
Ator-
pelo amor de Deus!
Fag-
Quem que deixa essa gente sentar na primeira fila?!
(batem na porta)
Fag-
Mal comecei a falar...(imita um bocejo), Era a primeira fala da peça, não dava
pra ter enchido o saco. Quer dizer, o cara já saiu de casa com o saco cheio.
Ele veio aqui pra descarregar na gente!!!
Ator-
Toda essa conversa outra vez, por favor!
Fag-
As cadeiras de teatro rangendo... tem que ajeitar a porra dessas cadeiras! A
outra que não parava de olhar no relógio, o casal de namorados quase trepando
ali na minha frente... na primeira fila...tinha que ser na primeira...Quer
fazer amor, meu bem, vai pro motel! E a pipoca? Tem que proibir a venda de
pipoca aqui no teatro, já não chega o papelzinho?
Ator-
Então foi isso?
Fag-
Aí um cara roncou (ronca). Eu sou um ator, eu não sou um presunto pendurado num
gancho, eu não sou o bobo da corte. Eu estudei esse texto, eu exerço essa profissão,
esse sacerdócio há 16 anos, eu exijo respeito.
Ator-
Você não pode ligar pra isso.
Fag- E
você não liga, é claro!
Ator-
Eu to aqui, não to?!
Fag-
Desculpa, vai. (batem na porta) Abre essa merda!(batem novamente)Já vai!!!(tira
o resto do figurino).
Cena II
Su-
Até que enfim! Eu estou pasma, besta, besta! O quê que aconteceu?
Fag-
Onde é que você tava quando eu precisei de você?
Su- Ta
a maior zona lá fora!...
Fag-
Você nunca ta por aqui...
Su-
Todo mundo gritando...
Fag-
Quando eu preciso de você...
Su-
Querendo o dinheiro de volta!
Fag-
Onde a senhora estava?
Su-
Impedindo a polícia de entrar no teatro.
Ator-
Polícia?!
Fag-
Como é que é?
Su-
Você quer que comece na hora, tudo bem.
Fag- E
começamos.
Su-
Alguns chegaram atrasados!
Fag- E
daí?
Su- Eu
nunca te falei nada, mas nem todos são cordiais!
Ator-
Foi você que chamou a polícia?
Su- (irônica)
Sim, eu chamei pra ficar lá fora brincando de impedi-los de entrar no
teatro.Tava muito divertido..
Fag-
Crianças, da pra parar?!Do começo, por favor.
Su-
Eles chegam atrasados, às vezes só um minuto depois da hora, mas nós somos
pontuais, não é? Começamos rigorosamente no horário marcado. Eles dão de cara
com a porta fechada e me agridem, me xingam, me ofendem, mas não entram! Não é
assim que você quer?
Fag-
Eu não vou mudar!
Su- Aí
eles chamam a polícia.
Ator-
E daí?
Su-
Ah, geralmente tem alguma autoridade entre os que chegaram atrasados, um juiz
de direito, um deputado... Aí o cara da viatura morre de medo e quer mostrar
serviço pra eles. Era isso que eu estava fazendo lá fora, evitando ser presa!
Fag-
Por cumprir o prometido?!
Su-
Eles nunca vão aceitar.
Fag-
Eu não vou mudar!
Su- Eu
sei, eu nunca te pedi isso.
Fag-
Quando eu ficava na bilheteria, isso nunca aconteceu.
Su-
Ah, sempre aconteceu. Eu é que nunca te contei.
Fag- O
ingresso é um contrato, eles não sabem disso não? Ta lá marcado o nome da peça,
o dia, o lugar, tá marcado o horário, em alguns tem até o numero da cadeira
também!
Su-
Eles não lêem.
Fag-
Como não lêem?! Chegaram até aqui, não chegaram? Ai de nós se pusermos alguém
no lugar deles... Eles quebram as cadeiras!
Su-
Eles dizem que é um consenso marcar pras 7:00h e começar às 7:15h.
Fag-
Aí chega aqui, tosse, ronca, boceja, tira o sapato, põe o pé em cima do
palco...
Ator-
Deve ser um consenso também.
Su-
“Deve ser um consenso” pros que entram, os que ficam do lado de fora chama a
polícia. “Mas o quê que aconteceu?”. Eu tenho que voltar lá pra porta, antes
que eles armem uma revolução!
Ator-
Eu posso ajudar?
Su-
Vai ver se você consegue conter a turba...
Cena III
(ator sai)
Su- O
quê que houve? Você...você passou mal?
Fag-
Não, eu to bem.
Su-
Teve alguma falha técnica? Quebrou a mesa de luz?
Fag-
Eu não agüento mais.
Su-
Como assim não aguenta mais? Quando você começou a fazer teatro nessa cidade,
as pessoas não vinham ao teatro, agora ela vem e ainda guardam ansiosas o
próximo espetáculo... O que é que você não aguenta mais?!
Fag-
Você veio aqui só para me encher saco?
Su-
Você ta assim por causa da crítica.
Fag- Ah
crítica?
Su-
Diz que o espetáculo é longo, cansativo...
Fag-
Não quero saber.
Su-
Ahh, então foi por isso que você ficou mal, porque você leu...
Fag- Não
me importo com crítica, critica é coisa de quem não sabe fazer melhor e põem
defeito na coisa dos outros...
Su-
Mas você leu e ficou mal. (debochada)
Fag-
não li. To cagando pra crítica!
Su- Mas
tem que cagar mesmo! Você tá fazendo história, trazendo pessoas em uma cidade
do interior aos domingos no teatro. Tá fazendo história, tem que cagar mesmo!
Fag-
Que mané “fazer história”, o assunto é bem pior que isso.
Su-
Não tinha ninguém que valesse a pena nessa platéia?!
Fag- Não
parei pra contar.
Su- E
eles fizeram o que dessa vez?
Fag-
De tudo, tudo junto, ao mesmo tempo! Parece que foi combinado! Todas as pessoas
se telefonaram, se mandara um e-mail hoje à noite só pra combinar. “E aí, vamo
lá no teatro barbarizar essa noite?” “Vai ser o maior legal?”
Su- E
aí?
Fag-
Aí eu não aguentei e mandei todo mundo embora.
Su-
Isso eu já sei. E depois?
Fag- Depois
eu fiquei encarando a platéia...
Su- O
grande momento!
Fag-
Foi, o grande momento sim. Eu disse que Bertholt Brecht, maravilhoso autor
alemão, escreveu que o teatro está apoiado num fabuloso tripé.
Su-
Grande momento cultural.
Fag- Momento
cultural nada, é papo de cozinha
mesmo...
Su-
Bertholt Bre... Brech.. Ai, Bertholt na cozinha?!
Fag- O
fabuloso tripé, ele escreveu, levantei os dedinhos (levanta o braço). O autor
que é Shakespeare, mostrei o primeiro dedo. (mostra o dedo polegar)
Su- O
Polegar!
Fag- O
ator que é esse que vos fala, mostrei o segundo. (mostra o indicador)
Su- O
Indicador!!
Fag- E
o público! Mostrei o terceiro! (mostra o dedo médio)
Su-
Eles perceberam o dedo que reservou pra eles?!
Fag-
Não perceberam. Estavam espantados de mais, quietos demais, atenciosos de
mais... como eu queria que eles fossem sempre...
Su- Meu
herói.
Fag-
Depois eu fiquei todo “encagaçado”...
Su- Bom,
poderia ter sido melhor.
Fag-
Fica pra próxima.
Su-
Não, não! Por favor, e depois?
Fag- Eu
mandei todo mundo embora, eu disse: “Xô, Xô, Xô”!!! Inclusive o cara com os pés
em cima do palco...
Su-
Tinha um cara com os pés em cima do palco?
Fag-
Pra você ver...
Su- E
você mandou todo mundo embora?
Fag- Sim!
Su- Pera
ai?! Tinha um cara com os pés em cima do palco e, 258 pessoas atenciosas
assistindo o espetáculo e por causa dele, um cara, mandou todo mundo embora?!
Fag-
Você não tava lá, você não sabe o que aconteceu tava todo mundo fazendo
barulho, tossindo, indo ao banheiro
Su- Ah
tá, agora você queria que elas fizessem xixi nas cadeiras?!
Fag-
Você tá do lado de quem, criatura?
Su- Eu
estou tentando ficar do seu lado, mas tá difícil...
Fag- A
platéia não é esse buraco negro que a gente enxerga aqui de cima do palco, não.
Ela pulsa, age, respira, tem personalidade, cada dia de um jeito, viva!
Su- Por
isso mesmo, a plateia reage, ela vibra. Pode ser que eles não tivessem gostando
do espetáculo.
Fag-
Foi assim desde o começo, o tempo todo. Eu não fui respeitado!
Su-
Por nenhum deles?!
Fag-
Nenhum! (pega um texto) Por favor, por favor, leia esse trecho aqui.
Su-
Pra quê? Não eu...
Fag-
Não! Por favor, leia por favor, eu vou te mostrar.(procura uma parte do texto)
Su- Aqui?
(pega o texto e prepara-se) A vida é uma sombra que passa...
Fag- Bip, bip, bip...
Su-
...uma...história…
Fag-
(tosse)
Su-
Assim não dá!
Fag-
Falta isso aqui ainda. (mexe os dedos como se estivesse mexendo em papel de
bala, levanta os braços, tosse, fica fazendo essa sequência) Entendeu, agora?!
Eu não sou de ferro!
Su- Aí
você mandou todo mundo embora!
Fag-
Mandei!
Su- E
eles foram!
Fag-
Me aplaudiram!
Su-
Sério?
Fag-
Alguns vaiaram.
Su-
Pela cara deles lá fora, fizeram pouco...
Fag-
Muitos problemas?
Su- 258
problemas, eu vou ter que dar um pulinho na chefatura de polícia...
Fag-
Nunca! Eu já mais vou permitir que qualquer um de nós, se submeta a essa
humilhação!
Su- Se
precisar, eu vou.
Fag-
Nunca!
Su-
Você não sabe a zona que está lá fora!
Fag-
Você devolveu o dinheiro dele, não devolveu?
Su-
80% compraram antecipado.
Fag- E
isso quer dizer o quê?
Su-
Que não tínhamos dinheiro em caixa.
Fag-
Cheque!
Su- Mais
de duzentos cheques? Tentei trocar por ingressos pra outro dia, alguns aceitaram,
poucos, né! E os outros estão lá, nos chamando de estelionatários.
Cena IV
(entra o ator)
Ator-
Tá uma praça de guerra lá fora!
Fag-
Polícia?
Ator-
Até onde eu pude contar, tem nove viaturas na porta do teatro...
Fag-
Ah tá que tem nove viaturas nessa cidade...
Ator-
As luzes piscando... Uma festa!
Fag-
Tudo bem, nenhum outro crime na cidade...
Su- Os
bandidos que aproveitem, a polícia está toda aqui.
Fag-
Não tem nenhum bandido perigoso na cidade, só os artistas! E a massa? Não tem
ninguém do meu lado?
Su-
Você ainda acha que iria ter?
Fag- Tipo
assim, alguém pode ter vindo ao teatro para ver a peça e se estressado com a
barulheira!
Su-
Depois de você manda-los embora?
Ator- Pera
aí, pelo que deu para perceber lá fora, só estão aqui os que estão tentando
quebrar a porta do teatro.
Su- Eu
tenho que ir lá!
Fag-
Eu vou junto!
Ator-
Não, não, não. Ficou maluco?! Pelo o que eu vi lá fora é tudo o que eles querem
na vida, o teu sangue! Deixa que eu cuido deles.
Su-
Tem certeza?
Cena V
Fag- (começa a tirar o resto do
figurino) Desculpa, eu tentei me controlar, mas não deu.
Su- Ah
é, você já teve seu grande momento, agora ele vai ter o dele.
Fag- E
o resto do elenco?
Su-
Ah, mandei todo mundo embora, não ia adiantar nada eles ficarem aqui, Né?
Deixaram um beijo para você. Mais calmo?
Fag-
Deixa eu terminar de me vestir, não quero dar a eles o prazer de prender MacBeth,
o rei da Escócia.
Su-
Você me desculpa insistir, é que eu ainda não consegui entender o que houve,
você não costuma ter “piti”.
Fag-
Eu to cansado, é isso.
Su-
Justo agora? Que conseguimos em meio ano estrear dois espetáculos?
Fag-
Eu sei, mas sabe quando da a sensação de que você não fez nada?
Su-Como
assim, nada? Você consegue em um domingo trazer pessoas para o teatro em uma
cidade do inteiror.
Fag-Eu
sei, mas eu queria fazer muito mais... Há quarenta anos nós se fazia teatro de
terça a domingo no Brasil, duas sessões na quinta, duas no sábado, duas no
domingo, duas em feriado e a casa sempre
lotada.
Su- Eu
sei mas aos poucos você vai chegar La...
Fag- Não,
não consigo, é outro público, é outra época, ainda é muito pequeno o número de
pessoas que vão ao teatro. O resto do povo não fica nem sabendo...
Su- Você
tem que entender que o nosso teatro é contramão. Nem todo mundo tem carro, e o
nosso teatro é longe do centro...
Fag-
Não é por aí, você pode levar o teatro de graça, na casa de algum deles. Eles
não vão querer. Falta hábito, educação, cultura.
Su-
Como emprego, saúde, segurança. Mas aí, meu amor, já não é culpa sua. Tem que
fazer muito mais que uma peça de teatro pra mudar tudo isso.
Fag- A
gente já ta começando a divagar...
Su- Não, você é que tá divagando. Mas mesmo
assim, com todas essas dificuldades, você tem trazido pessoas ao teatro. Elite ou não, elas vieram, você manda embora.
Por que você fez isso?
Fag-
Porque eles são privilegiados, pombas! É por isso que eu cobro atenção deles.
Eu já desisti de fazer teatro pros outros. Cansei de praticamente trazer as
pessoas de arrasto, de mendigar, de vender ingresso de porta em porta.
Su- De
vender rifa na sinaleira...
Fag-
Os que chegaram até aqui tem muitas outras opções na vida, oportunidades,
saídas, mas escolheram vir. Venceram todos os obstáculos para chegar até aqui,
então são o topo da cadeia alimentar, tem que se comportar como tal.
Su-
Eles não se sentem assim.
Fag-
Mas são. Nós vivemos num país miserável, você já esqueceu? Não, não to falando
de dinheiro, não! Os estádios de futebol estão cheios de gente que nunca foi ao
teatro. Os bares, as filas de loteria esportiva, os bingos, tudo isso custa
caro. Mas 80% do público diz que só o teatro tá caro, porque não tem interesse.
Os outros não sabem a ginástica que nós somos obrigados a fazer para que o
ingresso custe apenas um terço do que deveria custar. Não é de dinheiro que nós
estamos falando. O que faz desse povo que vai ao teatro ser a exatamente o
interesse. Pensa só Por nada, nenhum veículo por mais mirabolante que seja,
será capaz de competir com o teatro. Nós temos mais de dois mil anos de vida,
quase que intocados. Aqui é o último reduto de humanidade, a última esperança
de contato real, de calor humano, o salto triplo mortal sem rede, sangue, suor
e lágrimas. O resto é virtual!
Su- E
o que falta então?
Fag- Fazer eles entenderem
isso. Talvez sejamos os últimos ainda a exigir atenção, cuidado, carinho,
paixão... É a nossa falha. Nós queremos a alma de quem vem nos ver, não o
dinheiro. Andamos aqui no palco, na corda bamba da emoção, exigindo em troca
apenas a rede carinhosa de proteção da pateia. Mas isso é pedir demais.
Su-
Você é louco.
Cena VI
(entra ator)
Ator-
Tão exigindo que você vá até a chefatura da polícia!
Fag- Polícia?
E pra quê?
Ator-
Pra prestar depoimento.
Fag- Como
bandido?
Ator-
Eu sugeri ao tenente...
Fag-
Tenente é a patente mais alta?
Ator-
Sinto muito.
Fag- Podia
ser o coronel, pelo menos!
Ator-
Eu sugeri que ele viesse aqui, tomar o seu depoimento, antes de decidir se vale
a pena ir pra delegacia.
Su- Ou
talvez ele nem aceite as acusação.
Fag- e
o tenente?
Ator-
Não sabe o que fazer, não tem a menor noção de que tá acontecendo, coitado.
Su-
Uma batalha campal!
Fag- É
a floresta de Elsinor marchando sobre o palácio de Mácbeth
Ator-
Estão escolhendo um representante de cada parte prejudicada, pra acompanhar as
suas declarações. Não se conformam de você não sair daqui preso.
Su- Quem
são as partes? Os atrasados e os expulsos?
Ator-
Não se conformam de você não sair daqui preso!
Su-
Eles vêm até aqui pra garantir que a gente não deturpe os fatos.
Ator- Tão
achando que vamos mentir pra polícia.
Fag- É
a nossa sina.
Ator-
Mentir pra polícia?
Fag-
Sermos chamados de mentirosos, os que fingem. É a herança que Téspis, o
inventor do ator, nos deixou.
Ator-
Téspis criou o ator?
Fag- Não
sabia não? Num rasgo de criatividade, ele tirou uma pessoa de um grupo de
pessoas que cantavam as historias, chamados de coro. Com o cara separado surgiu
o diálogo e assim o primeiro ator. Isto é, Ao separar alguém do coro, Téspis
revolucionou a arte do teatro e inventou o ator.
Ator-
Obrigado Téspis!
Fag-
Ele não estava pensando exatamente em você quando ele...
Su- Ô,
não seja cruel! ( ri )
Fag-
De qualquer forma foi uma grande invenção Só que as pessoas acharam que se a mentira fosse ensinada assim, tão
descaradamente nos palcos, não conseguiríamos impedi-la de sair às ruas. Hoje
em dia, os legisladores mentem descaradamente nas ruas, e talvez o único
resquício de verdade ainda esteja na ilusão de uma peça de teatro.
Su-
Mas você é impressionante mesmo! ( ri ) nós te damos um pé de galinha e você
faz uma canja. O mundo inteiro caindo a sua volta e você lembra de Téspis.
Fag- É
o que me resta, meu anjo, eu sou um pobre contador de histórias.
(batem na porta)
Ator-Deve
ser o tenente
Fag-
Eis que chega o inspetor geral!
Cena VII
(entra Tenente, atravessa o
palco desorientado)
Ator-
Por favor, Tenente, por aqui! Por aqui.
Tenen-
Com licença!
Fag-
Pois não, Coronel!
Tenen-
É Tenente, por favor!
Su-
Por favor, Tenente!
Ator-
Por favor!
Tenen-
O, o, o, o, o senhor sabe que o, o, o... Que o... Eu tô meio nervoso... o, o, o...
A minha mãe não perde uma peça sua. Ela é fã do senhor desde que o senhor fazia
teatro, quando criança.
Fag- É
verdade, eu comecei muito cedo.
Tenen-
Será que seria muito incômodo, assim... o senhor me dar um autógrafo?
Fag-
Não tudo bem...
Tenen- Papel,
papel, onde é que tem um papel? É pra minha mãe. Obrigado! O senhor pode ver um
também pra minha afilhada, e um pra minha irmã? É Angelyna o nome dela.
Angelyna, com “Y”.
Fag- O
senhor não quer levar para o bairro todo?
Tenen-
Nossa, a minha mulher não nem acreditar quando eu contar que conversei com o
senhor.
Fag-
Então não conte.
(Tenente pega uma máquina
fotográfica)
Fag- O
senhor anda sempre com uma máquina dessas no bolso?
Tenen-
O senhor importa de bater uma foto comigo?
Fag- É
pra isso que elas servem, não é? Pra fotografar cadáveres.
Su-
Ele não se importa não. (para Fag) Pára! (bate a foto) Digam.. Teatro!
Os dois-
Teatro!
Tenen-
Vamos Tirar mais uma, para garantir...
Su-
Então digam teatro, novamente.
Os dois-
Teatro.
Fag-
Espero que o senhor não seja acusado de ter sido subornado, por isso.
Tenen-
Não, é só não contarmos isso pra ninguém.
Ator-
Por favor, Tenente, vamos acabar logo com isso. O dia aqui hoje foi longo pra
caramba.
Tenen-
Bom, e-e-e-eu vou lá fora chamar os representantes.
Fag- Pois
não, Coronel.
Tenen-
É tenente! Com licença. (sai)
Su-
(para Fag) Para com isso!
Fag-
Quê que eu fiz?
Ator-
Fica calmo.
Fag-
Uma seda.
Cena VIII
Tenen- Você, por aqui, por favor...
E esse senhor aqui é o representante dos...
Su- Expulsos!
Tenen-
Ah! Foram expulsos?
Sr-
Sim, senhor.
Fag- Pera
ai, eu conheço esse cara. Tira esse homem daqui...
Su-
Que foi?
Fag-
Eu não vou me responsabilizar pelo que possa acontecer!
Sr-
Segura ele, ele ta nervoso.
Fag-
Tira ele daqui, é o dos dedinhos!
Ator-
É melhor ele sair.
Fag-
Saia já daqui!
Sr- O
quê que eu faço?
Tenen-
Fica calmo, por favor.
Fag-
Eu conheço essa cara, o palco é sagrado ouviu, eu conheço o seu tipo, o senhor
é uma afronta!
Sr-
Mas eu não conheço o senhor!
Fag-
Saia já daqui!
Su-
Tira ele, vai lá!
Tenen-
Calma!
Fag-
Esse homem é o responsável pelo que aconteceu hoje! Eu não vou conseguir me
controlar!
Sr-
Mas eu não fiz nada!
Tenen-
Espera aí, o que é que tá acontecendo aqui, hein? O senhor pode me explicar?
Fag- O
que é que o senhor diria, se alguém que o senhor não conhecesse entrasse na sua
casa, tirasse os sapatos e, colocasse os pés em cima da mesa. E ficasse fazendo
assim com os dedinhos? (faz o gesto)
Tenen-
Seria falta de educação!
Fag-
Pois ele fez isso!
Sr- Eu
nunca fui na sua casa!
Fag-
Aqui é minha casa! E o senhor pôs os pés em cima do palco!
Sr- Eu
tava cansado!
Fag-
Aqui não é uma sala
Sr-
Mas é que os pés...
(Ator avança)
Fag-Ah
por favor me da uma água...
Tenen-
Pára! Por favor, para! Assim não vai dar! O senhor também, fique um pouco
afastado! Cada um no seu canto. Nós vamos tentar conversar aqui com um pouco de
civilidade! Positivo?
Todos-Positivo...
Tenen-O
elemento cometeu um delito. Tudo bem, nós vamos ver isso já já! Mas só que tem
que um de cada vez, correto?
Todos- Correto...
Sr-
Bom, mas agora quem não quer ficar aqui sou eu!
Tenet-
O senhor, por favor, o senhor se acalme!(sai,)
Cena X
Tenen (Volta com evangélica) Minha senhora, tenha a bondade.
Eva-
Meu Deus do Céu, que coisa mais demorada!
Tenen-
Bom, como dizia o esquartejador, vamos por partes! Há, há, há! Essa senhora
aqui é a representante das vinte e duas pessoas que chegaram atrasadas e não
conseguiram entrar.
Su- O
espetáculo já havia começado!
Tenen-
Bom, mas elas tinham comprado o ingresso antes.
Su-
Mas está escrito aqui no ingresso que é proibida a entrada após o início do
espetáculo!
Tenet-
E esse senhor aqui representa...
Fag-
Não representa nada! Nada!
Ator-
Calma...
Sr-
Viu só, ele tá me ofendendo!
Tenent-
Tá, péra um pouquinho! Ele representa os...
Su- Os
duzentos...
Tenent-
duzentos e cinquenta e oito que se sentiram lesados, porque não conseguiram
assistir ao espetáculo até o fim.
Ator- Pera
aí mas o meu amigo foi aplaudido quando parou o espetáculo.
Tenen-
Não consta!
Fag-
Não tem ninguém aí que represente os que entenderam o meu gesto?
Tenen-
Bom, se tinha já foram tudo embora!
Su- Mas
afinal não tinha alguém que valia à pena na platéia?
Fag-
Não será um julgamento justo.
Tenent-
Que isso, não é um julgamento.
Fag-
Têm duas pessoas me acusando e não é um julgamento?
Tenent-
O senhor vai poder apresentar a sua própria defesa. Minha senhora, a senhora
tem a palavra, por favor, mas seja breve...
Eva-
Meu Deus do céu, nem sei por onde começar. (petrificada)
Su- A
senhora podia começar pelo começo.
Eva-
Sim pelo começo, obrigada. Eu sou evangélica, isso pode parecer pouca coisa
nessa confusão toda. Mas freqüento a igreja todas as noites, não tenho tempo de
ir ao teatro, mesmo porque todos nós sabemos que o teatro e a televisão são
obras de Satanás!
Fag-
Nós temos que ficar quietos?
Tenen-
Por favor. Por favor...
Eva-
Meu marido odeia essas coisas, diz que é um antro de homossexuais e drogados.
Ator-
Tem certeza que nós temos que ficar quietos?
Tenen-
A senhora também podia aliviar um pouco, hein!
Eva- E
o quê que eu posso fazer, é o que dizem por aí.
Fag-
Deixa eu responder só um tiquinho...
Tenen-
Não, vai chegar a sua vez.
Eva-
Meu marido chega cansado do trabalho e já vai ver seu futebol. Ele também é
evangélico, mas não freqüenta a igreja tanto quanto eu.
Ator-
Fé de menos!
Eva-
Se é pra falar ouvindo graçinhas, eu prefiro ir embora.
Tenen-
Prossiga!
Eva-
Consegui convencer meu marido a vir assistir essa peça, nem sei por que eu fiz
isso. Me disseram que era um clássico, sei lá.
Fag- Macbeth, de Shakespeare!
Eva-
É, uma coisa assim… Hoje é dia de final de campeonato. O senhor não imagina o
que seja tirar ele da frente da televisão em dia de final de campeonato!
Fag-
Deve ser muito difícil.
Eva-
Só Deus sabe como eu consegui convencê-lo a vir...
Fag-
Ele não teve medo de se contaminar, não?
Eva-
É, não veio muito feliz, mas veio. Saímos uma hora antes de casa. Um trânsito
infernal, não tem mais dia, nem hora, nem lugar, um inferno! Mas estávamos
vindo. Deus sabe que tudo ia dar certo! Foi quando o carro parou no farol
fechado, e eu dei de cara com um homem horrível, armado, do meu lado da janela,
apontando um revólver pra mim! Tapei o grito na boca e olhei para o meu marido.
Ele tava sendo assaltado do outro lado. O outro homem com uma arma enorme
arrancava o relógio de ouro dele com tanta força, que eu pensei que o braço ia
junto. Ficamos ali parados, sem saber o que fazer... (ela congela)
Su-Outra
vez?
Fag-Minha
senhora continue a historia...
Eva- Sim,
continuando... O teatro é muito fora de mão. Mas nós estávamos aqui, seu
tenente, o senhor acredita? O assalto foi aqui, aqui na esquina, quase
chegando. Meu marido, branco de raiva, não disse uma palavra. Até que me deixou
aqui na porta do teatro e continuou dirigindo o carro até o estacionamento. A
rua, cheia de mulheres da vida! Um horror, ali, misturadas com a gente! E o
preço do ingresso, tão caro! Fiquei na porta esperando! (Da uma bolsada). Tinha
que ter um manobrista aqui na porta, isso é um absurdo! Eu não podia entrar sem
ele, é claro. E aí ele chegou... Um minuto depois que a porta tinha fechado! O
senhor acredita numa coisa dessas? Uuuuuuummmmmmmmm minuto! Eu nunca vou
esquecer do olhar cheio de ódio que ele me dirigiu. Foi horrível, a pior noite
da minha vida! Bateram a porta na nossa cara, na nossa cara! Essa mulher aí,
foi ela mesmo que fechou! Ficou La, do lado de dentro olhando pra gente através
do vidro com cara de vitoriosa. (gargalha). Rindo, a debochada! Meu marido
simplesmente virou as costas e foi embora, me deixou aqui sozinha. Com que cara
eu vou voltar pra casa, meu Deus?! Ele deve estar uma fera! Isso não é coisa
que se faça com pessoas de bem... E isso não é coisa que se faça com pessoas de
bem! (Histérica). Vocês ouviram? Não é coisa que se faça. Eu exijo uma
reparação ou vocês vão se arrepender para o resto de suas vidas! Vocês não
sabem com quem estão lidando! Uma coisa eu posso lhes garantir, nunca mais
enquanto eu for viva, eu vou pôr os pés
em um teatro outra vez!
Fag-
Espero que ela venha depois de morta!
Eva- O
senhor é muito engraçadinho, mas fique sabendo que eu vou ser arrebatada, e
vocês vão queimar no fogo do inferno...mas agora eu quero os meus direitos,
onde estão os meus direitos? Eu não saio daqui sem eles! Por que vocês
começaram pontualmente, tudo bem! Mas agora, eu quero que vocês saibam que aqui
não é a Inglaterra! E o senhor não é a rainha da cocada preta!
Su-
Posso falar?
Tenen-
É, com a palavra a defesa.
Su- A
sua história é realmente perturbadora.
Fag-
Uma verdadeira tragédia grega.
Su-
Mas, eu não posso acreditar que a senhora pense que nós somos os responsáveis
por tudo o que lhe aconteceu.
Ator-
Isso aqui é um teatro, minha senhora, não é a prefeitura do município, não!
Eva - Se este rapazinho afrescalhado fizer mais
um comentário jocoso, eu vou embora!
Su-
(para ator) Você não quer dar um pulinho lá na frente para ver como andam as
coisas?
Ator-
Eu não perder isso aqui, por nada nesse mundo!
Su- Eu
deixei o bilheteiro sozinho, oferecendo convite para quem quisesse voltar outro
dia e não sei se El vai dar conta do recado. Por favor!
Ator-
Sacanagem!
Su- A
cidade tá horrível mesmo, não é?
Eva-
Uma desgraça!
Su- O
trânsito, a violência, a prostituição...
Eva-
Aqui na esquina! E nenhum guarda por perto...
Su-
Pois é, também não podemos fazer nada em relação a isso, também somos vítimas
como a senhora, também passamos por tudo isso pra chegar aqui diariamente.
Eva-
Vocês não levam a porta fechada na cara, no final das contas.
Su-
Mas é porque nós chegamos antes.
Eva-
Debochada
Su-
Senhora o que quero dizer é que Não temos como devolver o relógio ou o humor de
seu marido. E nem sequer sabemos quem venceu a final do campeonato de futebol.
Então, que tal falarmos só sobre o atraso?
Eva-
Não foi culpa minha!
Su-
Tenho certeza de que cada um dos outros vinte e um espectadores.(evangélica
corta)
Eva-
Um minuto!
Su- que
também chegaram atrasados, que a senhora está representando aqui(evangélica
corta)
Eva-
Um minuto!
Su- tenham
alguma história parecida pra contar, algumas piores, outras nem tanto, mas
apenas uma coisa em comum: Todos chegaram atrasados.
Eva-
Um minuto!
Su-
Trinta segundos que seja... Dentro do teatro, nós tínhamos outros mil cento e
quatrocentos e oito espectadores que passaram pela mesma guerra civil que a
senhora, mas conseguiram chegar na hora. E tinham o direito de não esperar um
segundo além do horário marcado pra começar.
Sr- E
que não conseguiram ver o show até o fim!
Tenen- O senhor, por favor,
aguarde a sua vez!
Sr-
Desculpa, meu senhor, é que eu tava pensando alto.
Tenen-
Por favor!
Sr-
Mas foi o que eu fiz.
Tenen-
Aguarde a sua vez!
Sr-
Mas eu to quieto!
Tenen-
Por favor!
Fag-
Por favor!
Sr-
Desculpa, senhor, é que eu tava pensando alto... (põem o pé em cima da
poltrona)
Fag- Da
para vocês dois pararem...!
Eva- A
senhora tá querendo dizer que tudo isso vai dar em nada? E ficar tudo por isso
mesmo?
Tenen-
Olha aqui, ô, minha senhora, realmente aqui no ingresso, ó, tá escrito que é
proibida a entrada depois do espetáculo.
Eva-
Pois fique o senhor sabendo que eu vou procurara advogados, não vai ficar
assim, não!
Tenen-
Positivo e operante! Mas eu acho que a senhora vai perder a causa.
Eva-
Ahhh, quer dizer que agora o senhor passou para o lado deles também, entendi...
Tenen-
A senhora me respeite!
Eva-
Eu sabia que ia terminar assim. Estão todos mancomunados! É uma máfia!
Tenen-
A senhora não me desacate!
Eva- O
senhor não sabe com quem está falando! Eu filha de um General e cunhada do
desembargador da república! E eu quero o seu nome Tenente, porque vou levar uma
queixa aos seus superiores!
Tenen-
Foi bom mesmo a senhora tocar nesse assunto, porque eu também faço questão de
colher todos os dados da senhora, que é pra constar no processo!
Eva-
Pois pode anotar! (evangélica e Tenente vão para a rotunda e ficam de costas)
Su-
Filha de uma puta!!
Fag- O
que foi?
Su- Eu
to aqui me controlando pra não perder as estribeiras! Vocês não viram essa
mulher lá fora! Ela gritava, chutava a porta do teatro e falava palavrões!
Fag- A
evangélica?!
Su- Se
for verdade que ela é mesmo evangélica deve ir a igreja toda noite, pra tirar o
diabo do corpo, a desgraçada!
Fag-
Mas e o marido?
Su- Um
pobre coitado, morria de vergonha, ainda tentava impedir falando baixinho: ”Calma,
benzinho, voltamos outro dia”. Quase apanhou dela na frente de todo mundo!
Todos os outros atrasados concordaram, aceitaram, mas ela não deixava, ficava
lá gritando, ofendendo apoplética! Foi horrível...
Fag- E
a senhora? A senhora já ouviu falar das batida de Molière?
Eva-
(vem do fundo) Não senhor, eu não bebo!
Fag-
As batidas de Molière não são uma bebida, minha senhora, Molière não foi um
garçom. Ele foi ator, autor de teatro.
Eva-
Sim , e daí?
Fag-
(pega uma vassoura)
Eva- AAAAAAAAAAAHHHH(Grita
e corre)
Tenen-
(A puxa pelo braço) O que é isso, meu senhor?
Fag-
Por favor, Tenente, embora ela mereça, não foi essa minha intenção.
Eva- O
senhor é muito atrevido!
Fag-
As batidas de Molière, minha senhora, são origem dos sinais para o início do
espetáculo.
Eva-
Ora, por favor, não me aborreça. Isto nada tem a ver com o que estamos
discutindo aqui.
Tenen-
E o assalto, minha senhora, também não! (A coloca sentada)
Eva-
Mas eu cheguei atrasada por isso.
Fag- E
nós não a deixamos entrar por isso... Século 17, corte de França! O homem do
bastão ficava atento à porta do teatro. O rei chegava, abre parênteses, era ele
que pagava todos aqueles atores, e ele sozinho, o rei da França, e os atores
eram os comediantes do rei, fecha parênteses.
Eva-
(para Tenente) O senhor vai deixar essa palhaçada continuar, é!
Tenen-
Tá mais divertida do que a sua!
Su- O
rei entrava...
Fag- O
homem do bastão batia no chão. (bate com a vassoura)
Su-
Era o primeiro sinal.
Fag-
Tudo bem, você pegou!
Eva-
Eu não vou passar a noite inteira aqui, ouvindo essa baboseira. (Tenente a põem
sentada)
Fag-
Mas tinha um detalhe, os atores só estavam lá, à espera do rei.
Eva-
Com licença! (levanta, Tenente a põem sentada)
Tenen-
A senhora senta aí! Agora é a vez dele.
Fag- O
resto da platéia também ia se divertir, nas despesas dele, tudo de graça, a
maior mordomia. Só que tinham que esperar ele chegar, era a única coisa chata.
O espetáculo só começava depois que o rei chegasse. Aí o rei se posicionava ali
diante do trono, estrategicamente colocado pra ele, no meio do salão, melhor
lugar da platéia. O homem do bastão... (bate duas vezes com a vassoura)
Su-
Segundo sinal e depois o terceiro.
Fag-
Você atropelou, o segundo sinal sim, mas o terceiro só era dado depois que o
rei sentasse. Ele era o rei da França, patrocinador absoluto daqueles pobres
atores. Ele podia ficar ali, de pé, conversando com a corte, a noite inteira se
ele quisesse, e o espetáculo podia esperar. Mas depois que o rei sentasse,
(bate várias vezes com a vassoura) o espetáculo começava (bate), imediatamente
depois (bate), que a bunda do rei tocasse o assento do trono (bate).
Su-
(Bate palmas)
Sr-
Mas isso é muito lindo, isso é uma belez....(Tenente chega perto e o senhor se
cala).
Eva-
Uma história tão antiga, você já deveria ter aprendido como deve ser...
Fag- Não, minha senhora, hoje
em dia nós não esperamos mais pelo rei da França. O espetáculo tem hora marcada
pra começar sim, Independente da sua vontade, e nós vamos continuar respeitando
os horários.
Tenen- Então é por isso que
tem os três sinais?
Eva- Cultura inútil e vazia!
Pois fique o senhor sabendo, que o patrocínio do rei, foi trocado pelo preço
dos ingressos, na porta do teatro. O senhor deve satisfação a todos nós que
pagamos para entrar, como deviam ao rei da França.
Su- Democratizamos o
financiamento.
Eva- (tenta falar e é
interrompida)
Fag- Isso quer dizer que somos
todos iguais na platéia. Aqueles que chegam atrasados e se acham no direito de
estragar a festa da maioria, ainda pensam que são o rei da França. A revolução
francesa cortou a cabeça deles, minha senhora. Nós somos bonzinhos, só não
deixamos entrar.
Eva- Pois fiquem os senhores
sabendo... (Tenente ri) E o senhor também, Tenente, eu tenho o seu nome! Eu vou
sair daqui e vou direto aos jornais, à televisão, às rádios, ao diabo que os
carregue! E não vou descansar um só dia na minha vida, enquanto não fechar essa
porcaria de teatro, e passem bem! ( sai )
Fag- O sonho dos evangélicos,
ocupar nossos teatros! (grrr)
Tenen- Que mulherzinha!
Fag- Por que você se
controlou? Tinha que ter dado um chega pra lá nela!
Su- Você já estava nervoso
demais, eu não queria botar mais lenha na fogueira!
Tenen- A mulher parece que tem
pêlo nas ventas.
Su- Me chamou de galinha lá
fora!
Tenen- Galinha?
Su- E cuspiu na minha cara!
Tenen- A senhora devia ter
contado antes, pelo menos a gente não perdia tempo com as histórias dela.
Su- Tudo mentira, duvido até
que teve assalto, e se bobear, o marido ainda vai apanhar quando chegar em casa
(ri).
(barulho)
Fag- Os mansos herdarão o
reino dos céus.
(entra ator correndo)
Ator- Corre lá, gente! A
mulher acabou de quebrar o vidro da frente!
Tenen- Que é isso?! (sai
correndo)
Su- Miserável! (sai atrás)
Sr- (também sai)
CENA XI
Ator- Ah, que dia hein?
Fag- Você gostou, confessa.
Ator- Pode ficar calmo, viu,
que tudo se resolveu lá fora. Cheguei lá e não tinha mais ninguém, já tinham
ido embora. O bilheteiro disse que todo mundo se acalmou depois que a jararaca
deixou de instigar, e quiseram convite para outro dia e que alguns poucos iam
pegar o dinheiro de volta amanhã.
Fag- Tudo está bem quando
acaba bem.
Ator- E aí... ta, ram, ram,
ram!
Fag- O que foi?
Ator- Não te contei ainda, dezenas,
milhares de equipes de televisão, rádios, jornais!
Fag- Aqui no teatro?!
Ator- Ali na porta! Todos me
cercando, me entrevistando, querendo saber, o maior sucesso, cara!!!
Fag- Quando a gente precisa de
divulgação, nenhuma nota...
Ator- Foi o máximo! (bate mão
com Fagundes) Amanhã vai ter cadeira extra, você vai ver, e eu vou aparecer no
jornal da meia noite! Quem sabe até me chamam pra novela das oito! Vou avisar a
minha mãe!
(entra senhor, lá atrás, pára,
gesticula, some no escuro)
Fag- Pelo menos essa bagunça
vai servir para alguma coisa. Você vai ter os seus 15 minutos de fama.
(acende um foco de luz e o
senhor está no cenário...)
Sr- A vida é uma sombra que
passa...
Ator- Quê que é isso?
Sr- Ué, não passa senhor?
Fag- Tira esse bicho daqui!
(Ator pega o senhor, o ajuda
descer do cenário)
Sr- O senhor tá me ofendendo
de novo!
Fag- O quê que o senhor ta
fazendo aqui ainda?
Sr- Bom, eu, eu tava esperando
a minha vez. Não me mandaram esperar? Então?
Fag- Meu amigo, nós já
resolvemos esse assunto, agora nós estamos fechando...
Sr- Não, não! Eu represento
aqui, os mil cento e quarenta e oito que não conseguiram ver o show até o fim.
Fag- Em primeiro lugar, aqui
não tem show coisa nenhuma pra ninguém ver.
Sr- Tem o que então?
Fag- Tá brincando comigo?
Sr- N-n-não! Se não é um show,
é o quê?
Fag- Eu to falando, ele tava
passando aí na porta, jogaram ele aqui dentro!
Sr- Vim ver o show, sim
senhor! O show de teatro.
Fag- O senhor veio ver o show
de teatro?
Sr- Foi o que eu vim ver,
senhor.
(levanta uma pessoa da
platéia)
Fag- Tá gostando, ou vai fazer
xixi?
(... eu vou fazer xixi)
Fag- Quando voltar, faz menos
barulho, tá? Esse não volta nunca mais.
Ator- Olha, não vai ter mais
nada aqui hoje. O senhor não ouviu dizer que já foi todo mundo embora? Não tem
mais ninguém pro senhor representar, o senhor me desculpa...
Sr- E aí, como fica?
Ator- Vamos fazer o seguinte,
o senhor vai lá pra frente comigo, eu arrumo um convite pra outro dia, qualquer
dia, e...
Sr- Moço, moço, moço, eu não
posso voltar outro dia não. Eu não sou daqui. Eu só vim aqui pra ver o show.
(tonteia)
(ator e Fagundes o seguram)
Fag- Pega uma cadeira! Que
foi, que foi?
Ator- Sente-se.
Fag- Calma, respira fundo. O
senhor não é daqui de São Paulo?
Sr- Não sou não senhor.
Fag- Mora longe daqui?
Sr- Moro longe, sim senhor.
Fag- Não jantou?
Sr- Jantei não senhor.
Fag- Quer comer alguma coisa?
Sr- Seria bom, né! Eu to em
jejum, senhor.
(sirene da polícia)
(entra produtora gargalhando)
Su- Vocês não vão acreditar!
Deus escreve certo por linhas tortas, Aleluia! Estamos vingados, gente! A perua
saiu daqui de dentro do teatro que o diabo gosta, de camburão!Quando nós
chegamos lá na frente, ela estava quebrando a porta de vidro do teatro, aí o
Tenente levou na hora, menino, flagrante delito! A filha do General vai ter que
mexer os pauzinhos pra sair dessa (ri). (olha para o senhor)... E o senhor
ainda está aqui...
Fag- (para ator) Se importa de
comprar um sanduíche ou um copo de leite no bar da esquina?
Ator- Tudo bem (sai correndo).
Su- O quê? Eu perdi alguma
coisa?
Fag- Ele tá fraco.
Sr- Senhor, eu não queria dar
trabalho.
Fag- Trabalho nenhum. E aí, me
conta essa história.
Sr- Que história?
Fag- Como é que o senhor veio
parar aqui?
Sr- Ah! Eu sempre quis ver o
show.
Su- Um show?
Fag- O show de teatro.
Sr- Lá onde eu moro, sempre
aparece uns conjuntos, uns cantores na pracinha. Teatro, nunca. Nem cinema tem
lá, senhor.
Su- O senhor nunca tinha visto
uma peça antes?
Sr- Hoje era a primeira vez,
senhora.
Su- Hoje não era o seu dia,
senhor.
Fag- E aí, me conta.
Sr- Um compadre meu, ele viu
uma vez.
Su- Uma peça de teatro?
Sr- Ele me falou que era uma
lindeza! E ele me contava as histórias, a mesma história. Cada vez que a gente
cruzava, eu, eu não cansava de escutar...
Fag- O senhor lembra da
história?
Sr- Todinha, todinha... Era
sobre um cara, que ele tinha um nariz comprido...
Su- Pinóquio!
Sr- Não, não era esse o nome
não. Era, era um nome difícil de falar e era muito engraçado no começo, depois
no fim, ficava triste. Engraçado, né senhor, é porque eu chorava (começa a
chorar) cada vez que eu escutava essa história.
Fag- Cyrano de Bergerac.
Sr- É esse o nome. Como o
senhor sabe?
Fag- Por causa do nariz...
Sr- Era grande, não era?
Fag- Enorme!
Sr- Eu jurei pra mim mesmo que
um dia, eu ia ver uma coisa dessa de perto. Eu jurei pra mim... Então eu vim.
Su- Veio como?
Sr- Eu vim de carona. O
dinheiro só ia dar pra comprar uma entrada.
Fag- O senhor juntou o
dinheiro do ingresso e veio de carona. Ia voltar como?
Sr- Do mesmo jeito, senhor, de
carona. Puxa vida! Deu tudo errado. E eu tava adorando... Porque o senhor
parou?
Fag- Ah, por favor, não...
(entra ator)
Ator- Comida! Pode comer
devagar que eu trago mais, falou?
Fag- Deus avisou Abraão, que
ia destruir Sodoma e Gomorra pelos seus pecados. Abraão se revoltou...
Su- Esse negócio evangélico
pega!
Fag- Eu não lembro muito bem
dessa história, mas parece que foi a primeira vez que Abraão enfrentou seu Deus
assim, cara a cara. E os homens honestos também serão sacrificados...
Ator- Quê que é isso! Tá tudo
bem aí?
Fag- Deus retrucou que se
Abraão encontrasse cinqüenta homens honestos em quaisquer das cidades, elas
seriam poupadas.
”E se encontrar quarenta e
cinco honestos, ainda assim, serão destruídas?” Disse Abraão tentando enrolar
Deus.
“Se você encontrar quarenta e cinco
homens honestos, as cidades serão preservadas.” Abraão era tinhoso, não deu o
braço a torcer.
“E se forem trinta, os homens
honestos, ainda assim serão arrasadas?” Não lembro muito bem como é que
terminou essa história, mas parece que Deus tinha razão, afinal. Abraão não
conseguiu encontrar os seus homens honestos, e as cidades foram arrasadas numa
terrível explosão. E não lembro também como, parece que nessa época já tinha
essa história de nepotismo. Abraão deu um jeito de avisar um sobrinho seu, logo
que conseguiu escapar com a mulher e as filhas das chamas divinas.
Su- Quê que é isso!
Fag- Parece que hoje eu agi
como um Deus irado, num daqueles maus dias, e arrasei com tudo. Não percebi que
na platéia tinha pelo menos um homem honesto.
Ator- Pelo amor de Deus!
Su- Agora você exagerou. É
claro que tinha mais que um homem honesto!
Ator- Que quer dizer com isso?
“Como um Deus irado!”
Su- Ah, meu herói todo
poderoso, acabamos de ouvir um momento bíblico. (ri)
(ator bate palmas)
Fag- Podem rir, eu deixo.
Su- Ele deixa!
Ator- Como um Deus
benevolente... (ri)
Fag- Vocês não entendem, é
claro! O que nós fazemos aqui em cima é muito sério! A simples paralisação de
uma função é pra mim um grande desastre ecológico!
Ator- Foi você que parou.
Su- É um trágico!
Ator- Nem Téspis conseguiria
inventar um ator assim, ó.
Fag- Talvez vocês tenham
razão.
Su- Claro que temos razão.
Fag- Hoje não é o meu dia...
Ator- Tá no fim, graças a
Deus!
Fag- É só teatro!
Su- Mas já tá melhorando.
Fag- E aí, meu amigo, me
conta. O quê que eu posso fazer pra compensar essa tua perda?
Sr- Eu queria ver o show.
Fag- Eu juro que se o resto do
elenco tivesse aqui, eu faria o melhor espetáculo da Terra, só pro senhor ter o
que contar de volta para aquele seu compadre.
Ator- Não seja por isso, que
história não vai faltar, não é?
Fag- Só tem uma coisa que eu
não consigo aceitar até agora! Por quê o senhor tirou os sapatos e pôs os pés
em cima do palco?
Sr- Eu não sabia que ia
ofender!
Fag- Tudo bem, já passou, mas
por quê?
Sr- Eu tava cansado. O caminhão que me trouxe,
me deixou lá na entrada da cidade, la no gauchinho. Aí eu tive que vir a pé. E
pra descansar, senhor, juro, eu tinha que levantar os pés.
Fag- E ficar mexendo os
dedinhos assim? (mexe os dedos)
Sr- Ô, mas tava fervendo, né?
Ator- Pensa bem, cada um podia
ter uma razão pra fazer o que fez, é ou não é?
Fag- Pára com isso!
Su- Por quê? Tá com remorso,
é?
Ator- Cada um podia ter uma
razão, você não pensou...
Fag- Você não tava em cena,
lembra disso? Você não sabe o galinheiro que estava instalado na platéia!
Ator- Eram quantas as
galinhas? Trinta? Quarenta? E as outras mil pessoas que tavam doidas para ver o
espetáculo, você não pensou nelas, não?
Su- Meu senhor, alguma coisa
incomodou na platéia hoje?
Sr- Não. Eu não vi nada. Eu
tava adorando... Eu não sei por que ele parou!
Fag- Esse não vale, era ele
que tava com o pé em cima do palco!
Ator- Ninguém prestou atenção
nisso.
Fag- Eu prestei atenção!
Sr- O quê? O senhor vê tudo o
que acontece na platéia?
Fag- Cada mosca voando.
Sr- (ri) Eu pensei, assim, que
vocês ficassem tomados.
Fag-
Aqui não é terreiro de macumba! Ninguém fica tomado, não, viu?
Su-
Estava todo mundo adorando. Você não pode exigir que parem de respirar na
platéia quando você está em cena!
(sons e tosses)
(sons e tosses)
Fag-
Chega! Chega! Pára, por favor! Pára, por favor! Não é só disso que eu to
falando. É verdade, nós vivemos num país desacostumado ao ato de pensar. Nossa
formação cultural tá reduzida àquela dúzia de filmes americanos com a sua
fantástica linguagem, traduzida em ação, ação, ação. Nosso exame vestibular em
múltipla escolha reduz a capacidade de raciocínio ao acaso de uma loteria
esportiva. Nosso padrão de televisão, rápido, esperto, ágil, dinâmico, prende a
nossa atenção por tempos cada vez mais curtos Fomos reduzidos a máquinas
instantâneas de pensamento, ágeis, sagazes, vazias. Lemos muito pouco. Um Best
Seeler, no Brasil, vende cem mil exemplarem e comemoramos essa marca. Nossos
melhores pensamentos, nossas maiores reflexões, nossa mais ocupada percepção do
mundo, está ficando aos poucos caracteres do twiter ou a um clique no face
book.. Até mesmo as nossa emoções obedecem essa regra de tempo, não é pra
menos. A leitura diária dos jornais nos obriga a isso. Mas, se fôssemos capazes
de manter a nossa indignação, por um espaço de tempo maior, só Deus sabe, que
caminhos estaríamos trilhando agora... Mas Deus sabe o que faz. Hoje, já que
estamos todos aqui, ainda é possível exigir atenção por um espaço de tempo
maior ainda achamos que é possível estarmos juntos por mais tempo, trocando,
refletindo, sonhando. Que bom que vocês vieram! Porque lemos nos jornais todos
os dias o que devemos faze, é bom que vocês estejam aqui conosco hoje, pra
dividir algumas dúvidas, porque certezas, nós temos muito em comum. Sabemos
juntos que as coisas não vão bem, sabemos porque, quando, como. Sabemos onde.
Temos certeza da necessidade de mudança, certeza de que quase não agüentamos
mais. Vivemos juntos em meio a mesma violência, sofremos as mesmas fomes.
Talvez a nossa maior falha, tenha sido a de nunca nos termos dado tempo, pra
discutirmos nossos erros, mas exercitamos esse novo jeito atrapalhado, essa
vontade de que um dia as coisas mudem. O palco de um teatro não pode mudar
muitas coisas, nos traçados desse caminho, mas aqui, ainda é possível se dizer:
“não sei”. Talvez porque o nosso tempo aqui em cima seja diferente, ainda
podemos sonhar. E é bom que vocês estejam aqui conosco hoje, pra dividir as
nossas dúvidas, repartir os nossos sonhos e multiplicar a nossa vontade de que
tudo isso, um dia, não passe de uma peça de teatro, mas sem interrupções, por
favor.
Ator-
Porra!
Fag-
Eu vou arrumar um lugar pro senhor passar hoje à noite. E amanhã, o senhor
volta aqui, pra ver o show de teatro que eu vou tentar fazer pro senhor.
Ator-
Pode deixar que eu cuido disso!
Sr-
Ai, meu Deus! Obrigado, muito obrigado. (mostra o sanduíche) Eu posso levar
comigo?
Fag-
Por favor.
Sr-
Desculpe os pés, viu?
Fag-
Se você piscar na platéia, eu te mato...
Sr-
Não vou nem respirar, o senhor vai ver. Fica com Deus, senhor. Tchau!
Cena XII
Su- Tá
mais calmo, agora?
Fag-
Tô, obrigado. Tudo está bem quando acaba bem...
Su- O
resto é silêncio...
Fag- O
estar pronto é tudo.
Su-
Passarinho que come pedra, sabe o cu que tem!
Fag-
Fechou com chave de ouro!
Su-
Deixa eu ir embora, então. Você tem certeza de que não precisa de mais nada?
Fag-
Você é uma grande companheira.
Su-
Você não vem?
Fag-
Não, vou ficar um pouco mais por aqui.
Su-
Você tá bem?
Fag-
Eu gosto do teatro vazio. (ambos riem e batem na madeira)
Su- Pra
imaginar ele cheio no dia seguinte, não é?
Fag-
Tem uma coisa melhor que a platéia lotada. O aplauso vibrante no final do
espetáculo.
Su- É,
e você não tem do que se queixar, tem tido dos dois há anos.
Fag- O
aplauso nem sempre...
Su- É
mesmo?
Fag-
Talvez a gente não tenha feito por merecer...
Su-
Amanhã vai ser diferente.
Fag-
Eu to exigindo muito deles, não to?
Su-
Tá. Muito.
(entra ator)
Fag-
Que foi?
Ator-
Eu queria falar uma coisa. Não fica bravo comigo!
Fag-
Lá vem besteira...
Ator-
Só uma história pra completar aquela do Abraão, posso?
Fag-
Vai, fala.
Ator-
Há algum tempo atrás você me deu um livro de presente, tá lembrado?
Fag- Não... Tô, tô, tô, pronto, tô.
Ator-
Uma autobiografia da Martha Graham, aquela bailarina moderna. E sabe que eu não
sou muito de ler. Eu não tenho saco! Você vive me enchendo por causa disso, mas
esse aí, eu li inteirinho. Não lembro muito bem do livro todo, mas teve uma
história nele que eu nunca esqueci. Tinha uma dança lá, uma coreografia que a
Martha gostava muito de fazer, chamava... Angústia, uma coisa assim... Era um
solo. Ela dançava dentro de um saco branco, só com a cabeça de fora. O saco
fechado no pescoço. E o limite do saco eram os braços e as pernas dela
esticados. Tem uma porrada de foto no livro. Era super maneiro. Ela tava lá,
presa dentro daquele saco branco, só com o rosto angustiado de fora. Durante
anos, em todo o espetáculo, ela sempre dava um jeito de encaixar essa
coreografia. Era o carro-chefe dela, como se diz, né? Até que um dia a Martha
tava no camarim, tirando a maquiagem, quando o pessoal da produção veio avisar
que eles tavam com um problema. Tinha uma mulher, na platéia. O público todo já
tinha ido embora e ela tava lá, chorando copiosamente. Ninguém sabia o que
fazer. A Martha pediu que trouxessem a mulher ao camarim. Ela veio e não
conseguia parar de chorar. Água com açúcar, abano, todo mundo no maior sufoco,
até que meia hora depois, ela se acalmou. A Martha ali, toda solícita ”O que
foi que aconteceu?” E ela contou... Eu tinha vinte e cinco anos, quando um
filho meu de três anos de idade brincava com a bola, na calçada. A bola correu
pro meio da rua, ele correu atrás para pegar e eu vi a roda de um caminhão
passar por cima da cabeça dele. Eu não chorei naquele dia, eu não chorei no
enterro também. Nos últimos vinte e cinco anos, eu não fui capaz de chorar, por
nada desse mundo, até ver a sua dança e entender essa angústia monstruosa que
me apertou o peito durante todo esse tempo, que me deixou sem ar, sem remédio,
sem saída. Todo mundo no camarim ficou em silêncio, a mulher levantou os olhos
e disse “Obrigada” e saiu chorando silenciosamente. A Martha escreveu pro amigo
dela que valeu a pena ter vivido por esse momento, por ter tido o privilégio de
saber, que pelo menos uma vez na vida, ela foi capaz de tocar uma pessoa
sensível na platéia.
Fag-
Uma história muito bonita.
Ator-
Sei lá, vai ver que tinha mais de duzentas pessoas aí e você se deixou irritar
por dói ou três, pô! Desculpa, tá, mas pensa nisso.
Fag-
Uma só pessoa sensível na platéia... Será você? Você? Você? Será você? A vida é
uma sombra que passa, um pobre ator que se pavoneia em cena, durante uma hora,
depois ninguém vê mais. Uma história idiota, cheia de som e de fúria, contada
por um louco, significando nada...
Todos-
A vida é uma sombra que passa, um pobre ator que se pavoneia em cena, durante
uma hora, depois ninguém vê mais. Uma história idiota, cheia de som e de fúria,
contada por um louco, significando nada...
PANOS
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