Nós somos reflexo de nossas ações, de nossos sacrifícios, de nossos desafios, escolhidos por nós mesmos!
Quando Shirley Terezinha abriu o espetáculo O Incidente, ela disse: Boa Noite! Naquele instante viajei para muito longe, viajei para uma aula que presenciei a muito tempo, ministrada pelo Máschara, em um dia que levei minha neta para tentar fazer teatro. Sentada a um canto eu me recordo de quando o professor fez um paralelo muito interessante entre atuar, encenar e interpretar. Não lembro exatamente cada detalhe da interessante explanação, mas me marcou o exemplo que deu referindo-se a uma atriz que é convidada para fazer o papel de Maria em uma quermesse. Pelo olhar do instrutor, uma atriz que apenas sorri e acena, supostamente como Maria, não está interpretando. Interessante observar sete atores interpretando sete mortos e preenchendo com vida, espaços que precisam não ter vida.
Um cinema, lotado na cidade de Alegrete/RS, serviu de palco para cinquenta minutos de um arrojado espetáculo, que sem duvida nos deixa com vontade de ler a obra O Incidente em Antares. Erico, em sua ultima obra, como muitos escritores modernistas da década de trinta, decide falar da efervescência política e de acontecimentos que permeavam a vida das grandes cidades. Violência e autoridade são presenças constantes na pequena Antares, e dali surgem criaturas que Verissimo pinta com uma ambivalência muito interessante para o público. Já aprendemos que Cléber Lorenzoni foge das regras da academia e prefere sempre apostar na menipeia em suas obras, mas o que me surpreende e que certamente é o que mais prende o público adolescente, é o conceito de "carnavalização do inferno", ou seja, o julgamento às portas do inferno, servindo de comicidade para o público. Erico produz um momento anacrônico entre vivos e mortos, julga uma cidade inteira e as ações de seus cidadãos vivos e mortos. Ora, mortos podem ser chamados de cidadãos? E quem produziu tudo isso? Um grupo de funcionários públicos, que entraram em greve e exigiram ser atendidos. Os poderosos, negando-se a ouvir os grevistas, precisam ouvir os mortos. As ofensas escatológicas que se apresentam no coreto, lembram-me a a poesia de Rebelais, poeta da renascença, que obrigou os ricos a rirem de seus próprios pecados, o que não lhes era, obviamente permitido, nos altares sagrados da profissão litúrgica do catolicismo. Ali, pecadores eram culpados e condenados, em silêncio, enquanto todos ouviam de orelhas em pé e joelhos prostrados. No entanto a expiação dos pecados em O Incidente se dá em praça pública. Tibério, a filha de Quitéria, o próprio Pudim que batia na esposa envenenadora, o delegado Pigarço, o boquinha de ouro, seu capataz, o doutor cícero (advogado do diabo), Dr. Lázaro, Dr. Fulkembrug, que não conseguiram remédios para Erotildes, e finalmente, o público, rindo do pobre professor Menandro Olinda. Todos com passagem direta para o "ranger de dentes" nas fogueiras do averno.
Entre rostos conhecidos, o ator Didy Flores, em um novo ciclo que se inicia. Adentrar ao palco ao lado de atores de carreira, mergulhados em um estilo de interpretação não é fácil, mas Flores conseguiu preencher muito bem o palco, mérito também do trabalho de equipe, de cada colega que o guiou. Alguns resvales, naturais em uma estreia. Uma pena trocar bosta por droga, por ser um espetáculo de choque, precisamos sair de nossa zona de conforto, ouvir as cosias bem ditas e um pouco agressivas. O ator Junior Lemes esteve muito bem, ritmado. Lorenzoni estava diferente, seu Cícero perambulou por caminhos diferentes nesse dia. Guma pareceu cortar a interpretação e degustação da cena do piano de Menandro Olinda, e o mesmo, talvez tenha sido muito agressivo em seu solilóquio. Sobre Renato Casagrande, ele tem em Olinda um desafio que eu não desejaria para ninguém, fazer todo um solilóquio, inspirado na trilha sonora, o que certamente o deixa um pouco gessado. Pensem comigo, se em um dia o ator precisa de uma pausa maior, ou precisa acelerar para segurar a plateia, não poderá? Está escravo da batida da sonata 23 de Bhettoven. Escolhas da direção? De toda forma, atores intensos, em um espetáculo que se adequa a qualquer palco, com qualquer aparato cênico, o que é maravilhoso já que é difícil em suas andanças encontrar espaços próprios para teatro. Mas a arte precisa continuar! Se cada artista desistir de fazer seu trabalho, de praticar seu oficio, apenas por que não havia um contra luz, ou uma cortina, ou sei lá o que, o teatro não seria a força de resistência que ele é.
Parabéns a feira de livros de Alegrete/RS por mostrar textos tão relevantes ao público. Parabéns a equipe em status cinco, vocês são o futuro da Cia. Aprendam, suguem, perguntem, ouçam de ouvidos bem limpos, aprende-se mais ouvindo e observando do que de qualquer outra forma. Aprendi a algum tempo em espetáculos de Lorenzoni, ouvir de vez em quando um estalar de dedos, acho que sei o que significa, nesse confesso não ter ouvido. Isso diz tudo.
Arte é Vida
A Rainha
O Incidente
Texto e Direção Kléber Lorenzoni
Elenco Kleber Lorenzoni , Carol Guma, Renato Casagrande, Clara Devi, Antonia Serquevitio. Douglas Maldaner, Junior Lemes, Didy Flores.
Contrarregragem Kleberson Ben Borges, Ana Clara Kraemer, Roberta Teixeira, Felipe Brandão