1251 - Rei Lear/Rei Lixo (tomo 01)

 O Amor é a sabedoria dos tolos e a tolice dos sábios... 
                  Quantas vezes um ator se pergunta, por que está no palco, por que estuda tanto, por que decide contar historias, vale à pena? Mas quando você vê o público extremamente concentrado, absorto, fiel à narrativa, quando você acompanha seus olhos brilhando de horror e paixão, comovidos ou excitados, você percebe que valeu à pena pisar no tablado sagrado. A cortina se descerra, o som dos paços, a luz que ilumina o ator em seu longo bife de adeus, ou em seu grito de horror. O palco é abençoado pois nos faz nos vermos, nos reflete, em nosso pior e em nosso melhor. Há medo em chegar ao lugar em que Rei Lear chega, em perder-se no vão das mágoas e dores da velhice. 
                 O palco de Itaqui revelou um Máschara digno de sua "assinatura", seu jeito de fazer teatro, o mesmo jeito que vimos quando Simone rompeu o cordão de Hêmon em Antígona, o mesmo Máschara dos espectros sem face em Macbeth, ou do vitral de onde Tartufo observava a família de Senhor Orgon. A mesma assinatura que coloca duas Glorinhas em cena em Esconderijos do Tempo, que tira Eunice e Dr. Eugênio em uma plataforma deslizante, que deixa a boneca Emília no meio da cena, escondida. O máschara que torna Dona Flica uma mulher quase vinte anos mais jovem, ou que choca com escatologias profundas em O Incidente. O máschara que coloca três atores a interpretar sete personagens em A Maldição do Vale Negro. É o Máschara da cabeça de João Batista, trazida por Salomé. São tantos os momentos surpreendentes, são tantos os olhares respeitosos para com o palco e principalmente a dignidade que reserva aos atores, dando-lhes cenas e personagens memoráveis. 
                   Quando a cortina se abre, vemos corpos ligados, tonificados e uma energia arrebatadora. Um velho, que assemelha-se a um velho druida, um ancião celta pré-cristão, lembrando que Shakespeare se inspirou em um conto escrito por volta dos séculos sete e oito. Como todo druida que tem contato com a natureza, o velho parece exercer algum poder sobre os animais que o conduzem. Cada um com sua singularidade, vai se revelando, nos mostrando suas triangulações, suas inter-relações e então vamos construindo mentalmente a moldura de uma obra que torna-se tão necessária e que eleva o patamar de possibilidades do teatro gaúcho. Rei Lear é uma tragédia longa e sua dramaturgia em cena também é um tanto longa, o que poderá ser enxugado conforme a equipe vai adquirindo mais domínio sobre o trabalho. 
                        Para uma estreia, após apenas trinta ensaios, o elenco está valorosamente afinado. Junior Lemes tem o peso perfeito de uma atuação referente a um velho oficial shakesperiano, Douglas Maldaner entra na cena com a criatividade e o coração aberto de um ator disposto. Kleberson Ben ganhou um dos maiores desafios, um personagem que perambula por uma nuvem de dúvida entre os críticos teatrais do bardo, mas consegue  marcar pelo seu trabalho corporal e a singeleza de jovem iniciante junto ao velho rei. As irmãs maldosas esparramam-se pelo palco com um trabalho que se completa, através das atrizes Carol Guma e Ana Costa, mas é preciso elogiar a potencialidade de uma carreira que desponta a cada dia, e que certamente ainda nos dará muito. A jovem que iniciou como Madalena em A Paixão de Cristo, fez grandes substituições e agora brilha como a princesa da bretanha. Há no palco ainda os atores Renato Casagrande e Antonia Serquevitio, ele interpretando Edmundo, um dos grandes papéis da dramaturgia clássica, ela interpretando a mocinha,  amor da velhice do velho rei, ambos inimigos máximos, eles nunca conversam ou interagem durante o espetáculo, o que aumenta a tenção entre as duas figuras. É ele quem trás ao final a "presa" para as irmãs. Antonia Sequevitio enfrenta a dificuldade de um papel complexo, misterioso e sem muitas opções dramáticas, mas o produto final é bastante razoável. 
                O conjunto de atores, já na estreia, parece entregar um trabalho digno de turnê, muito embora, ainda aja a possibilidade de aprofundar muito mais o auto conhecimento de cena. As vezes na quinquagésima apresentação, um ator ou uma atriz, ainda estão descobrindo coisas a serem ditas, a serem sentidas, a serem emanadas do palco. 
                   Kleber Lorenzoni deve ter praticamente a metade da idade que a personagem deveria ter, mas consegue, injetando muito de sua personalidade altiva, alcançar essa aparência de líder que mistura muito das relações humanas do dia a dia, causando um efeito catalizador sobre temas como poder e hierarquia. 
                   Há em Rei Lixo a percepção humana do instinto. Quem somos afinal, longe dos artifícios da civilização? Animais!!!!
                    Um exemplo importante do aprimoramento do trabalho, tem a ver com a preparação dos jovens. Ana Clara Kraemer e Roberta Teixeira fizeram um ótimo trabalho como iluminadoras, ainda que tenham muito a aprender, vem construindo uma ótima caminhada. 
                    Rei Lear enfim, fala sobre poder, sobre espaço de comando, sobre lugar de fala, sobre hierarquia. Quando o diretor do Máschara não estiver mais ali, os Glocester's serão respeitados? As irmãs irão se devorar pelo poder? Haverá um jovem Edmundo arquitetando planos para se adonar do poder? Quem são os Bobos? Os Tôlos... Quem se comportará como Edgar? Quem seria uma verdadeira Cordélia, dedicada e leal? 
                      Rei Lear é um grande trabalho, digno dos grandes sucessos do Máschara, que os deuses do teatro dêem aos seus profissionais maturidade para carregar tamanha sabedoria, tamanha importância para o teatro gaúcho e a elevação da régua de exigência. 


Arte é Vida



                                    A Rainha


Rei Lear/Rei Lixo
Direção e Dramaturgia Kléber Lorenzoni
Assistência e Construção Cênica - Renato Casagrande

Elenco Kléber Lorenzoni
            Douglas MAldaner (**)
            Renato Casagrande
            Antonia Serquevitio (**)
            Carol Guma (***)
            Ana Costa  (**)
            Junior Lemes (***)
            Kleberson Ben (**)

Iluminação Ana Clara Kraemer  (***)
Sonoplastia Clara Devi (**)
Contra-regragem - Roberta Teixeira (**)
                               Ana Luísa Kraemer (**)
                               Felipe Brandão (**)
                                 

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