Quando olho para o palco, antes mesmo da cortina abrir, fico tentando imaginar o que surgirá por detrás das coxias, quais pontos de luz se acenderão, quais personagens aparecerão. É isso que me faz assistir sempre novamente, uma montagem de Romeu e Julieta, por exemplo, ou ver uma atriz interpretar algum personagem que já me é conhecido. O que me importa na verdade é conhecer as estratégias que determinado diretor escolheu para me contar aquela historia. Pois bem, o espetáculo começa, e é preciso lembrar que teatro é sempre instrumento de transformação política e não apenas entretenimento. Ora, os temas debatidos durante os cinquenta e poucos minutos de peça, são exatamente o que precisamos debater na esfera das políticas públicas. A criança que é exposta à todo o tipo de violência, pelos próprios pais, muitas vezes; o menino que se prostitui por que vivemos em um país que permite que pessoas de determinadas "seitas", ditem regras sobre como a sociedade deve se comportar, disseminando aí o preconceito, a homofobia e etc... A diferença de classes, imposta por uma cultura unicamente do "ter", que dita as regras do "jogo", oferecendo sempre as piores oportunidades à população mais exposta a pobreza; a falta de debates sobre a saúde mental das pessoas; enfim, uma gama de assuntos, que tão bem foram agrupados em um só roteiro. Em um primeiro momento até podemos pensar: nossa, quantas tragédias se cruzando, em um único espetáculo! - O fato é que o dramaturgo aqui, me parece, quis tornar tudo matéria única, "abuso", para chocar, perturbar, conscientizar, levantar discussão.
Quem dá vida a personagem central, Nice, é a atriz Raquel Arigony, que consegue bons resultados, principalmente na segunda inserção do espetáculo. Arigony tem um tempo de atuação muito pessoal, muito de acordo com sua verdade profissional, talvez no palco possa injetar mais vigor. Principalmente em personagens que têm fruição mais intensa. Nice recebe, digamos, tratamento de choque. Todos ao seu redor parecem lhe exigir demais, muito embora, talvez seja a historia de vida da travesti Tânia que lhe convença a realmente tomar coragem para agir. Kléber Lorenzoni vem à cena como uma cabeleireira que é submetida a uma breve cena de homofobia explicita, que poderia ser mais longa e talvez mais chocante. Tânia agrega ao espetáculo uma leveza, uma possibilidade humorística gostosa, e nos faz nos catarsearmos dentro do riso, o que é perfeito. A gag: "estou raciocinando", ou a frase antológica: "estamos no mesmo lugar, só que meu salto é maior!" arrancaram pegaram a plateia de jeito. Interessante ver um homossexual (Kléber Lorenzoni) interpretando alguém cujo drama seja a plenitude de sua homossexualidade, como se por exemplo Raquel Arigony interpretasse uma mulher que é espancada e que tivesse filhas abusadas sexualmente. É algo que parece muito simples, mas na verdade carrega um dos grandes paradoxos do teatro. Determinado ator se sai razoavelmente bem, interpretando as mais variadas situações, mas quando tem que interpretar sua própria realidade, depara-se com um complexo desafio: como dar vida a sua própria realidade sem incutir aí suas verdades que poderão colocar em risco os objetivos do espetáculo? E foi isso que vi em Lorenzoni na primeira inserção do espetáculo. Um certo constrangimento, uma certa dúvida até onde ir... Isso gerou uma empatia muito interessante, por que quando acontece com um ator experiente, nos faz termos a certeza de que não existem fórmulas, nem gráficos prontos, ao contrário, o teatro é e sempre será, busca, descoberta, e muita pesquisa.
A narrativa do espetáculo é continua, ou seja, uma cena deságua na próxima, então é fácil concluir a curva. Renato Casagrande aparece no prólogo e no epílogo, responsável pelas duas cenas mais agressivas, NECESSÁRIAS em um espetáculo educativo como esse. Se fosse um espetáculo de cunho artístico apenas (nunca é só arte), diria que talvez a primeira cena pudesse ser menos explicita, já que temos em cena uma menor. Valentina Chiesa é bastante jovem, mas bastante instintiva em cena, o que agrega possibilidades à sua caminhada de jovem atriz. Ao seu lado ainda Felipe Brandão e Luisa Ourique formam o grupo de irmãos. Ele precisa de mais profundidade nas cenas, e Luisa mais intensidade. Indico mais exercícios, mais coragem, mais élan! Ana Clara tem força, mas parece um pouco desmotivada, demasiadamente lânguida nas cenas. Talvez deva discutir mais com a direção, isso é muito importante. As vezes uma nuvem, uma cortina de fumaça, se coloca entre nós e a personagem, nos impossibilitando de vermos como as coisas devem ser, como a direção do espetáculo precisa que nos coloquemos, ou para onde conduzir a tortuosas linhas da vida daquele ser que estamos tentando interpretar. Clara Devi esteve muito completa, muito redonda, mas também pode carregar na verdade, na integralidade das ações. Personagens principais, são grandes presentes, pois eles constituirão a historia dos espetáculos por anos e por conseguinte a historia do teatro de um grupo. A dobradinha entre Devi e Lorenzoni funcionou, já que a atriz soube ser escada. Importante qualidade para bons atores.
Junior Lemes, começou há pouco tempo, mas já vem se destacando, interessante perceber um ator que chega com disponibilidade para auxiliar e aprender. Que esse frescor continue sempre presente. Necessário estudo para ir formando uma funcional bagagem para os mais diferenciados personagens que surgirem. Esperamos que Junior venha logo para as cadeiras do máschara, pela postura e interesse. Antonia Serquevitio funciona muito bem quando tem uma direção funcional ao seu lado, o que é ótimo, a função do ator não é dirigir-se, a função do ator é esforçar-se por uma pièce bien faite. O espectro da candidez cresceu muito desde a ultima vez que apreciei o espetáculo, mas ainda há para onde subir, o que desenvolver. O ator precisa descobrir, sempre o novo, sempre as novas opções e honrar assim seu pai "stanislavski".
Foi sem duvida um dia de conquistas, de rever artistas, de aplaudir atores em cena aberta. Ao que parece foram pouquíssimos ensaios. Com isso relevamos alguns grandes erros, no entanto é preciso jamais acomodar-se, jamais quedar-se, é preciso buscar, crescer, aprender. Essa capacidade e interesse é a liga que vai fazer o ator aprimorar sua arte e poder ser chamar de ator verdadeiramente.
A parte técnica foi bem operada, tanto na contrarregragem quanto nas mesas técnicas, levando em conta as aparelhagens e situações, entendo que faz-se o que se consegue fazer.
O melhor - A capacidade de improviso de atores como Lorenzoni que ditam o ritmo e o rumo durante a cena e a presença da atriz Raquel Arigony.
O pior - A falta de ensaios que coloca em risco as possibilidades criativas de alguns interpretes.
Infância Roubada - Nova Candelária
Elenco : Raquel Arigony (**)(***)
Valentina Chiesa (***)(**)
Clara Devi (**)(***)
Antonia Serquevitio (**)(**)
Renato Casagrande
Luísa Ourique (*)(**)
Ana Clara Kraemer (*)(**)
Junior Lemes (**)(**)
Felipe Brandão (*)(**)
Kléber Lorenzoni
Kleberson Ben (*)(**)
Arte é Vida
A Rainha
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