Análise da obra O Rei Lear

O maior inimigo do homem é seu corpo...


                    Quando Shakespeare escreveu a tragédia da velhice, escolheu como centro da trama, um velho rei, com ares de rei medieval, que começa a falhar nas suas funções, o que fica muito claro ainda na sala do trono no primeiro ato. Ao enfraquecer o homem, enfraquece também um reino e por isso precisa ser passado a mãos mais capazes. Porém, como visualizar nos jovens herdeiros aparentes, as características do governante que se retira? Esta é a maior decadência da natureza no universo monárquico. Longe de serem magnânimas, serenas, justas ou amorosas, Goneril e Regana são diabólicas, invejosas e pérfidas. Quando Shakespeare escreveu o texto, a longeva Elisabeth I já havia morrido, e o trono agora era ocupado por um James I, Sobre o Rei James os teatros floresceram como nunca antes. Shakespeare foi beneficiário direto de sua generosidade pródiga. Sua companhia foi premiada com uma patente real. A convite do rei, a companhia teatral de Shakespeare, os Homens do Lorde Camareiro, agora conhecida como os Homens do Rei, produziu novas obras sob o seu patrocínio. Foi durante o reinado do rei James que Shakespeare escreveu muitas de suas mais celebradas peças que tratam da luta pelo poder político. Entre elas estão Rei Lear, Antônio e Cleópatra e, naturalmente, Macbeth.

                      Tendo chegado tão recentemente perto do desastre em relação ao final da Rainha Elizabeth, Shakespeare estava ansioso para ganhar as boas graças do novo monarca desde o início. Para isso, ele compôs uma de suas maiores peças. Escrita no início do reinado de James, Macbeth (“a peça escocesa”) foi claramente composta como um meio de impressionar o novo monarca. A peça presta homenagem à ascendência escocesa do rei, apresentando o ancestral de James, Banquo, sob uma luz muito lisonjeira, enquanto a presença das três bruxas foi projetada para agradar a um homem que era obcecado com o tema de bruxas e bruxarias.                                                                                                                               Esse rei sob o trono observa o velho Lear em decadência e certamente ufana-se de não estar senil, reflete ainda se seus conselheiros são tão heroicos quanto Glocester, Kent, o bobo e o pobre Tom. Tom que na verdade é Edgar, faz parte do quatro principais personagens da obra, que são Lear, bobo, Edgar e Edmundo. Pode-se dizer que a natureza está revoltada. O próprio Lear, amaldiçoa a filha, Goneril, pedindo a natureza que seque seu Útero, assim não tendo uma continuidade a vida segue abalada, quem assumira o trono, como os ciclos continuarão, se não há ninguém capaz no trono. Surge então a figura de Edgar, herdeiro do Duque de GLocester. Duque de Gloster é na verdade um titulo nobiliárquico, dado a um dos filhos do rei, certamente Gloster é primo de Lear, ou mesmo irmão, o que confere À Edgar o titulo de rei no final do espetáculo. Ou seja, o homem mais nobre dentre os homens é aquele que acenderá ao trono.                                                                                    Lear é a Antítese de Hamlet, as obras que sinalizam a juventude curiosa e a velhice falha, Lear morre no final do ultimo ato, cercado por corpos e pela presença da morte, provando que o rompimento da hierarquia é a certeza da queda. Para a maioria dos críticos, Lear é a tragédia das tragédias, o estudo da relação e o desencontro de gerações, por isso o tema é extremamente universal. Uma tempestade sem bonança, muito embora ela simbolize que Shakespeare acreditava que a humanização do homem podia ser atingida através de um bom texto teatral.                                                                                                                    Dentre os conflitos dramáticos do texto, há um que mais se salienta, embora  , como argumenta Heliodora, “seria válido dizer, por outro lado, que, sendo Cordélia desde sempre a preferida, não lhe custaria tanto assim concordar em desempenhar seu papel no show de amor filial pedido pelo pai”. Portanto, chegamos aqui, segundo Schopenhauer, a uma das premissas fundamentais das tragédias mais bem-sucedidas, que é o trágico das circunstâncias: “junto ao trágico condicionado pelo mal e ao trágico condicionado pelo destino cego, aparece aquela terceira forma a que Schopenhauer concedeu especial importância: o trágico das circunstâncias, que se produz quando entram em conflito dois ou mais contrários igualmente válidos”. Em Glocester, a hamartia é causada por Edmundo e não pela hibris como em Lear. Aqui Edmundo é tão vil quanto o monstro Iago. E o Heroísmo que torna Lear o maior personagem trágico da obra de shakespeare? Se dá pelo desejo de ação e pela paixão desmedida. Para completar temos a peripécia, que segundo Aristóteles é a passagem da felicidade ao infortúnio na narrativa do herói. è preciso no entanto ler com poesia e niilismo a obra e não buscar a histeria, já que Lear mesmo em plena loucura, é leve, delicado e repleto de compaixão.

  


Cléber Lorenzoni

Crítico de teatro, diretor e professor de teatro.


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