1171- Paixão de Cristo - O Julgamento do Messias (tomo II)

                    Quando uma instituição dura tanto tempo, ela cria alicerces baseados nos pontos de vistas de pessoas, que a fundaram, muitas vezes isso não é compreendido por quem chega e que está em busca das técnicas que leu em algum livro ou dos princípios estéticos que veio buscar. O Máschara foi fundado em 1992, ano  de impeachment de Collor, ano de Bill Clinton, de ECO 92, ano do fim da guerra da Coréia, ainda não havia sido criado a moeda "real", e a atriz Daniela Perez era encontrada morta em sua casa. Cléber Lorenzoni era palhacinho do sesc, Renato Casagrande não nascera, Ricardo Fenner ainda não morava em Cruz Alta e Fábio Novello era um adolescente que ainda iria descobrir o teatro. Por outro lado um jovem mulher, reunida em sua casa com um grupo de amigos, queria muito fazer teatro. Cruz Alta não respirava teatro, não respirava muita arte. Havia sim o grupo de danças Chaleira Preta e uma grande mestra da dança chamada Jussara Miranda, que fazia grandes espetáculo de final de ano na Casa de Cultura. Uma mulher tão a frente de seu tempo, que precisou ir embora para Porto Alegre, para se sentir bem com a arte, para poder alcançar o que busca. Sim, naquela época ia-se embora quando se queria brilhar. Não havia oportunidades, não havia lugar onde buscar conhecimento teatral. Não havia chegado nem o curso superior de danças em Cruz Alta. A sociedade olhava com maus olhos quem ousa-se se maquiar com cores tão divertidas quanto as que o Máschara usa hoje em dia. O preconceito era demasiado. Um menino vestindo calças coloridas, ou uma menina vestida de coelhinha, eram coisas de revistas adultas. A arte teatral que havia florescido nas décadas de quarenta, cinquenta e sessenta em nossa cidade, estava adormecida. Digo, que era uma cidade triste... 

                  Nesse primeiro grupo formado em 1992, havia o desejo de expressar-se, de buscar espaço, de dizer: -Ei, estamos aqui!- Em serem aceitos por seus pais, em serem aceitos por uma sociedade. Havia homossexuais, havia a equivocada ideia de que o teatro seria um bom lugar para libertinagem, drogas, e uma gama de outras posturas condenadas pela comunidade. Havia pouco conhecimento, não havia internet, não havia o google, ou a wikipédia. Tudo era muito artesanal. 

                   Nesse cenário forma-se a  estrutura do Máschara. O primeiro dogma que se forma é o de que é preciso perfeição para ter respeitabilidade. De que se precisa fazer sucesso, para que pais e mães parem de dizer que é perda de tempo, ou que só na capital ou em grandes cidades é possível viver "disso". Descobre-se logo de inicio que é do sacrifício e do extremo esforço físico, que nascem os grandes atores. O corpo é base do trabalho do Máschara. Mais tarde a estética visual vem somar-se. Eugênio Barba e Artaud são tidos como a base sólida de onde um ator deve iniciar seu trabalho. Um trabalho que precisa se renovar a cada ano. Reciclar-se. Olhe para sua atuação e sua capacidade criativa, é a mesma há mais de seis anos? Mas também é preciso somar percepção de mundo, compreensão de direitos e deveres, respeito à outras instituições. Compilação de múltiplas técnicas, macetes, hábitos. Regras, regras e mais regras, que ajudam a firmar estruturas. 

                           Ontem sentada na primeira no gramado da praça, mais longe do palco do que eu gostaria, vi rostos conhecidos no público: Gabriel Giacomini, Laura Hoover, Laura Heger, Eliani Aléssio e ainda Henrique Lanes, que subiu par ao palco nos ultimos momentos da turnê. Estes certamente aprenderam a amar o teatro e vieram assistir, teatro. Eis a maior conquista do trabalho do Máschara e que muito me emocionou. A plateia foi agradavelmente boa, na verdade eu esperava ter assistido ao espetáculo na sexta e no sábado viajaria logo cedo. Mas como não matar minha curiosidade, pelo sexto ano consecutivo, ver Lorenzoni recontar A Paixão de Cristo. 

                              Que prazer alucinógeno, quantas possibilidades... Quanto verdade embutida em cada palavra. Quanto do teatro do Máschara. Realmente, viveu-se trinta e um anos para se chegar àquele momento da noite de sábado. Somou-se ali o expressionismo de Antígona, a antropologia de Macbeth e Dorotéia, o minimalismo de A Serpente, o épico de Incidente em Antares. Parabéns. Parabéns!

                                As Érinias estiveram magníficas. Grandiosas. Principalmente Ana Clara(***) e Nic(***). Uma noção espacial, uma capacidade de adaptação ao palco. O grupo estava entrosado e a sensação é de que haviam ensaiado muito para alcançar o produto. Cada coreografia, cada movimento parecia orquestrado, até quando alguma parecia atrasar. A água virou vinho! Literalmente sobre o palco, uma belíssima cena de ilusionismo. Lembrando que o público absorve cinquenta por cento do que o ator faz no palco. Se os atores querem que o público absorva 100 por cento, precisam elevar a cento e cinquenta por cento a cena, ou seja serem extremamente dramáticos. É isso que nós queremos!  Assim como na cena do pequeno Thiago Menor. Exagero meus senhores. Quase histeria. Vocês precisam repetir o clima que Angélica Erthel, Clara Devi e Raquel Arigoni ao lado de Pedro Presoto em Lázaro em 2023. Uma criança ressuscitou!!!

                                  Os apóstolos estão muito bem, mas precisam se colocar nas cenas sem cobrir os colegas, do lugar onde eu estava sentada, quase não consegui ver a cena em que o menino volta dos braços da morte. Lorenzoni não levou muito em conta a hagiografia de cada um dos doze seguidores de Cristo e se permitiu em uma licença poética, envolver Labão, duas crianças e o próprio noivo entre os seguidores. Mas é isso que mais nos atrai nesse teatro. A capacidade de contar uma historia que acaba por ter sentido. Labão (***) tem se mostrado um ótimo ator. Thiago Maior (***)também teve seu ano de graça, uma linda presença cênica. 

                                 Nesse ano tivemos a terceira Maria do espetáculo, uma construção diferente, delicada. Falta ainda mais densidade, por exemplo o gesto de cobrir-se com o véu não teve força. Ora, largar um véu sobre o rosto quando alguém morre, é só um gesto. Mas como MAria faria? Como fazer esse gestos er carregado de memória emotiva e ser um gesto emocional? Há um texto por trás de cada gesto (Laban), que texto o gesto de Maria nessa apresentação ao cobrir o véu disse? Foi um gesto gago! E quanto a taça errada nas mãos de Herodes? Não coloquem taça nenhuma se colocarão a taça errada. Concertar erros promovendo outros é inútil. O que o gesto de Cláudia e Herodes derramando vinho pelo palco disse? Ele disse: -Somos dois atores atrapalhados e ansiosos. Ora, mas essas não são características das personagens, então os atores estão misturando coisas.

                                           Zebedeu, Tomé e Judas estão perfeitos... como  devem  ser, pois são atores do Máschara! Herodes está muito bom, intenso, depois, pelo que soube, de uma longa construção. Não ficou aquém do trabalho de outros grandes Herodes. No entanto é preciso se ater à dublagem. Desenvolver certos hábitos. Quando nãos e ensaiou o suficiente, é necessário pisar em ovos! Ir com cuidado! Coreografar os gestos da pausa para acertar. É isso que bons atores devem fazer. A Samaritana está muito bonita também, mas quando interpreta uma das fúrias (mit. romana), Raquel precisa não permitir que a expressão facial lhe distancie da emoção. Lorenzoni nos deu um novo Jesus, de cabelos curtos e com muito mais emoção e dor. Talvez um tanto dramático e vitimista. Mas mais humano certamente. A pergunta que fica é: -Eles querem ver seu Deus como um homem frágil?

                                  Havia uma atriz, que dizia: -Não tente competir com crianças e animais em cena, eles sempre vencem. Não coloquem animais e crianças em cena. Eles são "fofos demais" e nos tiram da narrativa. Nos impedem de seguir com a catarse. Parabéns ao Máschara por ir semeando nas crianças o amor e respeito pela arte. Kaifaz está perfeito, vivo. Mas não entendi por que não bateu no rosto do Cristo. 

                               Arimatéia é uma grande construção do mesmo ator que interpretou o mendigo, e sua saída conduzindo o cortejo é muito bonita, já que foi ele que deu o manto e o sepulcro à família de Jesus. Ainda que isso tenha causado sua prisão, arquitetada por Kaifaz e Herodes. Madalena e Claudia precisam marcar melhor suas presenças, palmas para um determinado toque de mãos entre Madalena e Jesus, e pena que tirem sempre Claudia de cena, antes de ela encerrar seu momento. 

                                Foi sem duvida um espetáculo lindo. O máschara, como todos dizem, tem um diferencial, que começa nas exigências de sua diretoria, na complexa relação entre seus membros e nas possibilidades que oferecem aos que ali buscam saciar a sede com a arte. Não vou mencionar um a um, ou essa coluna durará três páginas. Mas estendo meus votos de admiradora à todos. Vocês tem um tesouro nas mãos, não o deixem ruir.


                        O melhor: O coro lindíssimo com mascaras boladas por Fabio Novello e  interpretado por um grupo incrível. Raquel Arigony, Ellen Faccin, Clara Devi, Antonia Serquevitio, Duda Martins, Ana Kremer, Luísa Kremer, Mari Valandro e Nic Miranda.

                      O pior: Arrastar o colega de cena pelo asfalto, correndo o risco de assim não ter apresentação no dia seguinte e ainda colocando em risco sua integridade física.

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