PRIMEIRO ATO
(Distrito policial correspondente à
Praça da Bandeira. Sala do delegado Cunha. Este, em
mangas de camisa, os suspensórios
arriados, com um escandaloso revólver na cintura.
Entra o detetive Aruba.),
ARUBA (sôfrego e exultante) — O Amado
Ribeiro está lá embaixo!
(Cunha, que estava sentado, dá um
pulo. Faz a volta da mesa)
CUNHA —Lá embaixo?
ARUBA —Com o comissário. Disse que.
CUNHA (agarrando o detetive) —
Arubinha, olha. Você vai dizer a esse
moleque!
ARUBA —Está com fotógrafo e tudo!
CUNHA —Diz a ele, ouviu? Que se ele.
Porque ele não me conhece, esse
cachorro! (Amado Ribeiro aparece.
Chapéu na cabeça. Tem toda a
aparência de um cafajeste dionisíaco)
AMADO (abrindo o gesto) —O famoso
Cunha!
CUNHA (quase chorando de ódio, e,
ainda assim, deslumbrado com o
descaro do outro) —Você?
AMADO —Eu.
CUNHA (furioso) —Retire-se!
AMADO —Cunha, um momento! Escuta!
CUNHA (apoplético) —Saia!
AMADO —Tenho uma bomba pra ti! Uma
bomba!
ARUBA (quer puxar Amado pelo braço)
—Vem, Amado!
AMADO (desprendendo-se num repelão)
—Tira a mão!
CUNHA (arquejante de indignação)
—Escuta aqui. Ou será que você. (fala
aos arrancos) Então, você me
espinafra!
AMADO (com cínico bom humor) —Ouve,
Cunha!
CUNHA —Me espinafra pelo jornal. E
ainda tem a coragem!
AMADO —Com licença!
CUNHA (num berro) — Não dou licença
nenhuma! (muda de tom) Estou
besta, besta! Com o teu caradurismo!
Tem a coragem de pôr os
pés no meu gabinete! Eu devia, escuta.
Devia, bom! (quase
chorando) Por tua causa, o chefe me
chamou!
AMADO —Cunha, deixe eu falar!
CUNHA — O chefe me disse o que não se
diz a um cachorro! Na mesa
dele, na mesa, estava a tua
reportagem. O recorte da tua
reportagem!
AMADO —Cunha, tenho uma bomba!
CUNHA (sem ouvi-lo) — De mais a mais,
você sabe, Amado. O Aruba
também sabe. Aquilo que você escreveu
é mentira!
AMADO —Ó Cunha, sossega! O que é que
há?
CUNHA (num crescendo) — Mentira, sim,
senhor! mentira! Eu não dei
um chute na barriga da mulher! Mentira
sua! É mentira! Dei um
tapa! Um tabefe! Assim. O Aruba viu.
Não foi um tapa?
ARUBA (gravemente) —Um tapa!
CUNHA (triunfante) —Um tapa. Ela
abortou, não sei por quê. Azar. Agora
o que eu não admito. Não admito, fica
sabendo. Que eu seja
esculachado, que receba um esculacho
por causa de um moleque,
de um patife como você! Patife!
AMADO (com triunfal descaro) —Eu não
me ofendo!
CUNHA (desesperado com o cinismo)
—Pois se ofenda!
AMADO —Acabou?
CUNHA (num derradeiro espasmo) — Amado
Ribeiro, escuta. Eu tenho
uma filha. Noiva. Uma filha noiva.
Agradeça à minha filha, eu não
te dar um tiro na cara.
AMADO (pela primeira vez violento)
—Deixa de ser burro, Cunha! (Cunha
desmorona-se em cima da cadeira. Passa
o lenço no suor
abundante. Arqueja)
CUNHA (ofegante, quase sem voz) —Suma!
AMADO (subitamente dono da situação)
—Quem vai sair é o Aruba!
ARUBA (pulando) —Você é besta!
CUNHA (resmungando) —Não admito...
AMADO (para o Cunha) — Manda ele cair
fora! (para o detetive) Vai, vai!
Desinfeta!
ARUBA (para o cara) —Quem é você, seu!
CUNHA (incoerente, berrando)
—Desinfeta!
ARUBA (desorientado) —Mas doutor!
CUNHA (histérico) —Fora daqui! (Aruba
sai)
AMADO (exultante, puxando a cadeira)
—Vamos nós.
CUNHA —Não quero conversa.
AMADO —Senta... (Cunha obedece, sem
consciência da própria docilidade)
AMADO (na sua euforia profissional) —
Cunha, escuta. Vi um caso agora.
Ali, na Praça da Bandeira. Um caso
que. Cunha, ouve. Esse caso
pode ser a tua salvação!
CUNHA
(num lamento) —Estou mais sujo do que
pau de galinheiro!
AMADO (incisivo e jocundo) —Porque
você é uma besta, Cunha. Você é o
delegado mais burro do Rio de Janeiro.
(Cunha ergue-se)
CUNHA (entre ameaçador e suplicante) —
Não pense que. Você não se
ofende, mas eu me ofendo.
AMADO (jocundo) —Senta! (Cunha obedece
novamente)
CUNHA (com um esgar de choro) —Te dou
um tiro!
AMADO —Você não é de nada. Então, dá.
Dá! Quedê?
CUNHA —Qual é o caso?
AMADO — Olha. Agorinha, na Praça da
Bandeira. Um rapaz foi
atropelado. Estava juntinho de mim.
Nessa distância. O fato é que
caiu. Vinha um lotação raspando. Rente
ao meio-fio. Apanha o
cara. Em cheio. Joga longe. Há aquele
bafafá. Corre pra cá, pra lá.
O sujeito estava lá, estendido,
morrendo.
CUNHA (que parece beber as palavras do
repórter) —E daí?
AMADO (valorizando o efeito
culminante) — De repente, um outro cara
aparece, ajoelha-se no asfalto,
ajoelha-se. Apanha a cabeça do
atropelado e dá-lhe um beijo na boca.
CUNHA (confuso e insatisfeito) —Que
mais?
AMADO (rindo) —Só.
CUNHA (desorientado) —Quer dizer que.
Um sujeito beija outro na boca
e. Não houve mais nada. Só isso?
(Amado ergue-se. Anda de um
lado para outro. Estaca, alarga o
peito)
AMADO —Só isso!
CUNHA —Não entendo.
AMADO (abrindo os braços para o teto)
—Sujeito burro! (para o delegado)
Escuta, escuta! Você não quer se
limpar? Hein? Não quer se
limpar?
CUNHA —Quero!
AMADO —Pois esse caso.
CUNHA —Mas...
AMADO — Não interrompe! Ou você não
percebe? Escuta, rapaz! Esse
caso pode ser a tua reabilitação e
olha: —eu vou vender jornal pra
burro!
CUNHA —Mas como reabilitação?
AMADO — Manja. Quando eu vi o rapaz
dar o beijo. Homem beijando
homem. (descritivo) No asfalto. Praça
da Bandeira. Gente assim.
Me deu um troço, uma ideia genial. De
repente. Cunha, vamos
sacudir esta cidade! Eu e você, nós
dois! Cunha.
CUNHA (deslumbrado) — Nós dois? (Amado
dá-lhe nas costas um tapa
triunfal. E começa a rir)
AMADO — Nós dois! Olha: — o rapaz do
beijo, sim, o que beijou, está aí
embaixo, prestando declarações! (ri
mais forte, apontando com o
dedo para baixo) — Embaixo! (primeiro,
ri Amado. Em seguida,
Cunha o acompanha. Acaba a cena com a
fusão de duas
gargalhadas)
(Casa de Selminha no Grajaú. Presentes
o pai de Selminha, seu Aprígio, e a própria moça.
Esta é a imagem fina, frágil de uma
moça, de uma intensa feminilidade.)
APRÍGIO —Vim só te dar um recado do
teu marido.
SELMINHA —Mas entra, papai, entra.
APRÍGIO —Selminha, escuta. Minha
filha, o táxi está esperando.
SELMINHA —Despede o chofer!
APRÍGIO —Escuta!
SELMINHA (para dentro) —Dália! Dália!
(para o pai) Eu fico zangada! (para
dentro) Dália!
APRÍGIO (angustiado) —Outro dia...
Prometo. Outro dia.
SELMINHA —Não senhor.
APRÍGIO (querendo vender rapidamente o
seu peixe) —Teu marido. Escuta.
Eu estive com teu marido na Caixa
Econômica. Teu marido
mandou avisar. (Dália entra.
Adolescente cuja graça leve parece
esconder uma alma profunda)
DÁLIA —Papai.
APRÍGIO —Coração! (Dália lança-se nos
braços do pai)
SELMINHA —Pensei que Arandir viesse
com o senhor!
APRÍGIO (sem ouvi-la e dirigindo-se à
caçula) —Pálida, minha filha?
DÁLIA —Lavei o rosto!
SELMINHA —Dália quase não come.
Belisca.
APRÍGIO —Mas tinha um apetite tão bom!
DÁLIA —Estômago, sei lá!
APRÍGIO —Não abuse, minha filha, não
abuse. Olha que a saúde! E não te
esqueças —o que resolve é a “Flora
Medicinal”.
DÁLIA —Não tem perigo!
APRÍGIO — Bem, mas. O que é mesmo que
eu estava dizendo? Ah, sim!
Teu marido.
SELMINHA —Mas o senhor janta com a
gente.
DÁLIA —Janta, sim!
APRÍGIO — Selminha, ó minha filha! Não
faz confusão. Seu marido
mandou avisar que vem mais tarde,
hoje. Mais tarde. Teve que ir
ao distrito.
SELMINHA —Distrito?
APRÍGIO —Calma!
DÁLIA —Por quê?
APRÍGIO —Pelo seguinte. Nada de mais.
Teu marido assistiu um desastre.
Quer dizer, assistimos. Eu também. Um
desastre horrível, na
Praça da Bandeira. Vimos um lotação
passar por cima de um
sujeito.
SELMINHA —Morreu?
APRÍGIO —O cara?
DÁLIA —Que coisa chata!
APRÍGIO — Na hora. Morreu. Pau pra
burro. Mas enfim! É por isso que
eu...
DÁLIA —Uns criminosos esses lotações.
Andam que!
APRÍGIO —Teu marido foi servir de
testemunha.
SELMINHA — Mas papai, olha. Hoje eu
fiz. Escuta. Fiz aquele ensopadinho
de abóbora. Deixa eu falar. A criada
está de folga e eu fui pra
cozinha, papai!
APRÍGIO — Hoje eu não estou me
sentindo bem. Sério. Escuta. Vamos
fazer o seguinte.
SELMINHA —O senhor é amigo da onça.
APRÍGIO —Um cafezinho, aceito. Café,
topo.
SELMINHA —Dália, faz um fresquinho.
APRÍGIO —Mas depressa que o táxi está
esperando.
SELMINHA —Depressa!
DÁLIA — Não demora. Um instantinho. (e
então, sozinho com a filha
mais velha, Aprígio anda de um lado
pra outro e vai falando. Sentese, em tudo o que começa a dizer, uma certa
perplexidade e, mesmo,
uma surda irritação)
APRÍGIO — Sabe que teu marido ficou
tão. E teve um choque!
Interessante. Ele correu na frente
de...
SELMINHA (interrompendo com outra
irritação) — Uma coisa, papai. O
senhor sabe que, desde o meu namoro, o
senhor nunca chamou
Arandir pelo nome? Sério! Duvido!
Papai! O senhor dizia “seu
namorado”. Depois: — “seu noivo.”
Agora é “seu marido” ou,
então, “meu genro”. Escuta, papai!
APRÍGIO (meio desconcertado) —Ora,
minha filha, ora!
SELMINHA (enfática) —Tenho observado!
APRÍGIO —Você acha então que. Nunca,
minha filha! E por quê?
SELMINHA (triunfante) —Quer fazer uma
aposta? Uma aposta? Quero ver o
senhor dizer “Arandir”. Diz: —“Arandir.”
Diz, papai!
APRÍGIO (realmente confuso) — Não tem
cabimento e olha: — deixa eu
contar. Perdi o fio. Ah! Teu marido
correu na frente de todo o
mundo. Chegou antes dos outros. (com
uma tristeza atônita)
Chegou, ajoelhou-se e fez uma coisa
que até agora me
impressionou pra burro.
SELMINHA —Mas o que foi que ele fez?
APRÍGIO (contido na sua cólera) —
Beijou. Beijou o rapaz que estava
agonizante. E morreu logo, o rapaz.
SELMINHA (maravilhada) —O senhor viu?
APRÍGIO (sem ouvi-la e com mais
vivacidade do que desejaria) — Você não
acha? Não acha que. Eu, por exemplo.
Eu não faria isso. Não faria.
Nem creio que outro qualquer. Ninguém
faria isso. Rezar, está
bem, está certo. Mas o que me
impressiona, realmente me
impressiona. É o beijo.
SELMINHA (com angústia) —Mas eu até
acho bonito! (Dália entra)
DÁLIA —Olha!
SELMINHA —O quê?
DÁLIA —Acabou o café. O pó.
SELMINHA —Mas tinha!
APRÍGIO —Não precisa!
DÁLIA —Eu me esqueci de.
SELMINHA —Pede na vizinha.
APRÍGIO —Escuta.
DÁLIA —Chamei pelo muro, mas não tinha
ninguém.
SELMINHA —Dá um pulo.
APRÍGIO —Ouve Selminha. Até é bom. Não
estou bem e o café.
SELMINHA (na sua agonia de dona de
casa) — Mas tinha pó, papai. (para a
irmã, mudando de tom) Vê lá o fogo. O
bolo que eu ia fazer para o
senhor. (Aprígio está de costas para a
filha e de frente para a
plateia. Dália saiu)
APRÍGIO (retomando no ponto
interrompido) —Você acha bonito.
SELMINHA (com vivacidade) —Ah, o
senhor não conhece Arandir.
APRÍGIO (com mais vivacidade do que
desejaria) —E você. Conhece? Diga:
—conhece seu marido?
SELMINHA —Oh, papai!
APRÍGIO —Conhece?
SELMINHA —Ou o senhor acha que.
APRÍGIO —Responda.
SELMINHA —Evidente.
APRÍGIO —Vem cá. Você tem de casada um
ano. Um ano?
SELMINHA —Mas conheço Arandir, desde
garotinho!
APRÍGIO (vivamente) — Quero saber como
marido! (muda de tom) De
casada, tem um ano, nem isso. Menos.
Pois é. Minha filha, é
pouco. Isso não é nada. Para um casal,
minha filha. Pouquíssimo,
um ano ou menos. Mas vamos lá. Você
tem mesmo certeza que
conhece seu marido?
SELMINHA —Mas absoluta! Eu conheço
tanto o Arandir, tanto que. Nem ele
me esconde nada. Papai, olha. Confio
mais em Arandir que em
mim mesma. No duro! E o senhor fala.
Engraçado! Fala como se
duvidasse, como se.
APRÍGIO (um pouco vacilante) —Não é
bem assim.
SELMINHA —Papai, eu amo Arandir.
APRÍGIO (incerto) — Sei. Acredito. Mas
digamos que seu marido. Uma
hipótese. Que seu marido não fosse,
sim, exatamente, como você
pensa. Você gosta de seu marido a
ponto de aceitá-lo mesmo que.
(mais incisivo) Numa palavra: —você é
feliz?
SELMINHA — Ou o senhor duvida? Um
momento. Quem vai responder.
(grita para dentro) Dália! Eu sou
suspeita! Mas Dália. (Dália
aparece) Vem cá. Chega aqui.
DÁLIA —Está quase bom.
SELMINHA (entre parênteses) —Diminuiu
o fogo?
DÁLIA —Diminuí!
SELMINHA (novamente excitada) —Papai,
hoje! Responde. Eu sou feliz?
DÁLIA (meio atônita) —Por quê?
SELMINHA (para o pai) — Fala! E olha!
Dália veio para cá logo depois da lua
de mel. Vive com a gente. Não sai
daqui. Fala. Sou feliz?
DÁLIA (com pé atrás) —Parece.
SELMINHA (atônita) —Parece ou sou?
APRÍGIO (cruelmente divertido) —Tenho
que ir.
SELMINHA (vivamente) —Papai, um
momento.
APRÍGIO —Olha o táxi.
SELMINHA (desesperada, para o velho) —
Papai, faço questão. (para a irmã)
Escuta. Você respondeu como se...
DÁLIA (com evidente irritação) —Feliz.
Felicíssima. Pronto.
SELMINHA (com energia, agarrando-a
pelo pulso) — Vem cá. Diz aquilo.
Aquilo que você me disse. Naquele dia.
Repete.
DÁLIA —Não aborrece!
SELMINHA —Aquilo, diz!
DÁLIA (batendo com o pé, numa afetação
de infantilidade) —Você é pau!
SELMINHA (triunfante) — Papai, a Dália
disse que, se eu morresse. Não foi?
Você disse.
DÁLIA —Mentira!
SELMINHA (radiante) — Disse que se eu
morresse, ela se casaria com o
Arandir!
APRÍGIO —Dália, escuta.
DÁLIA —Foi brincadeira minha! Eu
estava brincando! Papai, olha!
APRÍGIO (entre divertido e preocupado)
— Você. Escuta. Você é criança.
Nem deve dizer isso. Certas coisas.
Sabe como é o mundo.
DÁLIA (começando a chorar) —Papai, é
mentira de Selminha!
APRÍGIO (terno) —E nem chore!
DÁLIA (para a irmã) —Você me paga!
(para o pai, com certo fervor e não
com sofrimento) Papai, o que eu disse
foi que eu não me casaria
nunca porque. (com mais veemência) Não
quero, nem me
interessa.
APRÍGIO —E teu namorado?
DÁLIA —Brigamos.
SELMINHA (falando quase ao mesmo
tempo) — Essa bobona agora chora por
qualquer coisinha!
APRÍGIO (puxando o relógio) —Ih, já é
tarde!
SELMINHA (agarrando-o)—Papai, eu sou a
mulher mais feliz do mundo!
(Luz sobre o distrito policial.
Arandir acaba de ser interrogado. Uma figura jovem, de
uma sofrida simpatia que faz pensar
num coração atormentado e puro. Arandir ergue-se
no momento em que aparecem, na sala do
comissário, o Cunha e o Amado Ribeiro.)
ARANDIR —Posso ir?
COMISSÁRIO BARROS —Pode.
ARANDIR (recuando, com sofrida
humildade) —Então, boa tarde, boa tarde.
CUNHA —Um minutinho.
ARANDIR (incerto) —Comigo?
CUNHA —Um momento.
BARROS —Já prestou declarações.
CUNHA (entre divertido e ameaçador)
—Sei. Agora vai conversar comigo.
ARUBA (baixo e veemente para Arandir)
—O delegado.
AMADO
—Senta.
ARANDIR (sentindo a pressão de novo
ambiente) —Mas é que eu estou com
um pouquinho de pressa. (Arandir
começa a ter medo. Ele próprio
não sabe de quê)
CUNHA (com o riso ofegante) —Rapaz, a
polícia não tem pressa.
AMADO — Mas senta. (Arandir olha em
torno, como um bicho apavorado.
Senta-se, finalmente)
ARANDIR (sem ter de quê) —Obrigado.
BARROS (baixo e reverente, para o
delegado) —Ele é apenas testemunha.
CUNHA —Não te mete. (Arandir ergue-se,
sôfrego)
ARANDIR —Posso telefonar?
CUNHA —Mais tarde. (Amado cutuca o
fotógrafo)
AMADO —Bate agora! (flash estoura.
Arandir toma um choque)
ARANDIR —Retrato?
AMADO —Nervoso, rapaz? (Arandir
senta-se, une os joelhos)
ARANDIR —Absolutamente!
CUNHA (lançando a pergunta como uma
chicotada) — Você é casado,
rapaz?
ARANDIR —Não ouvi.
CUNHA (num berro) —Tira a cera dos
ouvidos!
AMADO (inclinando-se para o rapaz)
—Casado ou solteiro?
ARANDIR —Casado.
CUNHA — Casado. Muito bem. (vira-se
para Amado, com segunda
intenção) O homem é casado. (para o
Comissário Barros) Casado.
BARROS —Eu sabia.
ARANDIR (com sofrida humildade) — O
senhor deixa dar um telefonema
rápido para minha mulher?
CUNHA (rápido e incisivo) — Gosta de
sua mulher, rapaz? (Arandir, por
um momento, acompanha o movimento do
fotógrafo, que se prepara
para bater uma nova fotografia)
ARANDIR —Naturalmente!
CUNHA (com agressividade policial) —E
não usa nada no dedo, por quê?
ARANDIR (atarantado) —Um dia, no
banheiro, caiu. Caiu a aliança. No ralo
do banheiro.
AMADO —O que é que você estava fazendo
na Praça da Bandeira?
ARANDIR —Bem. Fui lá e...
CUNHA (num berro) —Não gagueja, rapaz!
ARANDIR (falando rápido) —Fui levar
uma joia.
CUNHA (alto) —Joia!
ARANDIR — Joia. Aliás, empenhar uma
joia na Caixa Econômica. (Amado e
Cunha cruzam as perguntas para
confundir e levar Arandir ao
desespero)
AMADO —Casado há quanto tempo?
ARANDIR —Eu?
CUNHA —Gosta de mulher, rapaz?
ARANDIR (desesperado) —Quase um ano!
CUNHA (mais forte) —Gosta de mulher?
ARANDIR (quase chorando) —Casado há um
ano. (Cunha muda de voz, sem
transição. Põe a mão no joelho do
rapaz)
CUNHA (caricioso e ignóbil) — Escuta.
O que significa para ti. Sim, o que
significa para “você” uma mulher!?
ARANDIR (lento e olhando em torno)
—Mas eu estou preso?
CUNHA (sem ouvi-lo e sempre melífluo)
— Rapaz, escuta! Uma hipótese.
Se aparecesse, aqui, agora, uma
mulher, uma “boa”. Nua.
Completamente nua. Qual seria. É uma
curiosidade. Seria a tua
reação? (Arandir olha, ora o Cunha,
ora o Amado, silêncio)
AMADO —Com medo, rapaz?
CUNHA —Fala!
AMADO —Não fala? (Cunha segura o braço
de Arandir)
CUNHA (falando macio) — Conta pra mim.
Conta. Conta o que você fez
na Praça da Bandeira.
ARANDIR (ainda contido) —O lotação foi
o culpado. (Cunha ergue-se)
CUNHA —Um momento!
ARANDIR —Mas doutor! Já estava aberto
o sinal amarelo quando o lotação.
CUNHA — Ó rapaz! O lotação não
interessa. Compreendeu? Não
interessa. O que interessa é você.
BARROS (com a sua obtusa e generosa
falta de tato) — Quer ver o
depoimento do rapaz?
CUNHA (para o comissário) — Não dá
palpite! (para Arandir) O que me
põe besta é como você, um sujeito
casado. Casado. Tem mulher
em casa. Bonitinha talvez.
AMADO —Há quanto tempo você conhecia o
cara?
ARANDIR —Que cara?
AMADO —O morto.
ARANDIR —Não conhecia.
CUNHA —Que piada é essa?
AMADO (para o delegado) —Cunha, um
momento. Um instante. Ó rapaz!
Olha pra mim! No local, eu lhe
perguntei se você era parente da
vítima.
ARANDIR —Não sou.
AMADO —Vamos por partes. Não é
parente. Amigo?
ARANDIR —Nada.
AMADO —Mas se conheciam de vista?
ARANDIR —Nem de vista.
CUNHA (aos berros) —Nem de vista?
AMADO — Você nunca. Presta atenção.
Nunca, em sua vida, você viu o
morto?
ARANDIR —Juro! Quer que eu jure?
Dou-lhe a minha palavra!
AMADO —Vem cá.
ARANDIR (desesperado) —Doutor, eu
preciso telefonar pra minha casa!
CUNHA (exagerando) — Por essas e
outras é que a polícia baixa o pau. E
tem que baixar!
AMADO —Cunha, espera! Se você não era
nada do cara.
ARANDIR —Nunca vi.
AMADO —Então explica. Como é que você,
casado há um ano. Um ano?
ARANDIR —Quase.
AMADO — Praticamente em lua de mel. Em
lua de mel! Você larga a sua
mulher. E vem beijar outro homem na
boca, rapaz!
ARANDIR (atônito) —O senhor está
pensando que...
AMADO (exaltadíssimo) —E você olha.
Fazer isso em público! Tinha gente
pra burro, lá. Cinco horas da tarde.
Praça da Bandeira. Assim de
povo. E você dá um show! Uma cidade
inteira viu!
CUNHA (aos berros) —Você não perdeu.
Você jogou fora a aliança!
AMADO (furioso) — Escuta! Se um de
nós, aqui, fosse atropelado. Se o
lotação passasse por cima de um de
nós. (Amado começa a rir com
ferocidade) Um de nós. O delegado. Diz
pra mim? Você faria o
mesmo? Você beijaria um de nós, rapaz?
(riso abjeto. Arandir tem
um repelão selvagem)
ARANDIR —Era alguém! Alguém! Que
morreu! Que eu vi morrer!
(Trevas na delegacia. Luz na casa de
Selminha. Em cena, a sua irmã.)
SELMINHA —Você entende papai?
DÁLIA —Papai mudou.
SELMINHA —É outra pessoa!
DÁLIA — Com a morte de mamãe, desque
mamãe morreu, mudou
tanto!
SELMINHA (com certo desespero) —Mudou
com o meu casamento. Foi o meu
casamento. Foi, sim, Dália. Com o meu
casamento.
DÁLIA —Sei lá.
SELMINHA —Te digo mais. Às vezes, eu
penso. Penso que papai sentiu mais
o meu casamento que a morte de mamãe.
Ele não vem aqui, nem
telefona. Sou eu que telefono. Ou
então. Evita Arandir.
DÁLIA —Não gosta de Arandir.
SELMINHA (febril) — Como são as
coisas! Veja você. Arandir me disse, hoje:
“Vou aproveitar o negócio da Caixa
Econômica e passo no teu pai.
Ele conhece lá um cara. Vamos na Caixa
e eu convido teu pai pra
jantar.” Não adiantou. Adiantou? Pois
é. Papai não dá pelota para
Arandir. Nem bola!
DÁLIA —Papai me assusta.
SELMINHA —Não gosta de Arandir —por
quê?
DÁLIA (taxativa) —Ciúmes.
SELMINHA (virando-se atônita) —De mim?
DÁLIA — De ti. (Selminha repete,
lentamente, com espanto e uma
nascente angústia)
SELMINHA (falando para si mesma)
—Ciúmes de mim?
DÁLIA —Ou você é cega?
SELMINHA (com frívolo arrebatamento) —
Que bobagem, ciúmes de mim!
(muda de tom e novamente angustiada)
Você acha?
DÁLIA — Acho! Acho! (Selminha, de
frente para a plateia, costas para a
irmã e uma inflexão de sonho)
SELMINHA (meio alada) — Ciúmes de mim.
(Dália vem por trás e fala por
cima do ombro da irmã, que permanece
de costas para ela)
DÁLIA (repetindo) — De ti. No teu
casamento eu pensei tanto na morte
de mamãe. Mas no teu casamento quem morria
era papai. Na
igreja, de braço contigo, papai ia
morrendo. Tive a sensação, te
juro! de que...
SELMINHA (num apelo, quase sem voz)
—Não fala assim!
DÁLIA (com mais veemência) —E outra
vez. Aquele dia!
SELMINHA —Quando?
DÁLIA — No dia em que vim para cá.
Vocês tinham chegado da lua de
mel. Eu me lembro. Papai me trouxe e
até você estava com
aquele quimono, aquele, como é?
SELMINHA —O azul?
DÁLIA — Não. Aquele que a vovó te deu.
Papai me trouxe. Não queria
vir. Insisti. Veio. E chegou aqui,
você sentou-se no colo de
Arandir. Se você visse a cara de
papai! a cara!
SELMINHA —Não me lembro.
DÁLIA —Cara de ódio! Saiu
imediatamente e...
SELMINHA —Você está imaginando! Isso é
imaginação! (com súbita ternura)
Mas eu ainda tenho você e.
DÁLIA —Selminha, amanhã vou-me embora!
SELMINHA —Você?
DÁLIA —Não fico mais aqui.
SELMINHA —Mas escuta. Por quê?
DÁLIA (sôfrega) —Olha Arandir!
(Arandir aparece. Vem cansado e febril.
Selminha lança-se nos seus braços)
SELMINHA (na sua ternura ansiosa)
—Demorou, meu bem!
ARANDIR — A polícia, sabe como é.
(Selminha passa a mão pelo rosto do
marido)
SELMINHA (amorosa) — Pálido! (Selminha
tira o lenço do marido e enxuga o
rosto)
ARANDIR —Morto de sede!
SELMINHA (para a irmã) —Água!
ARANDIR —Polícia é uma gente que.
Dália, meu anjo. Água, sim?
SELMINHA (para a irmã) —Gelada.
ARANDIR (para a cunhada) —Gelada.
DÁLIA —Está suado.
SELMINHA —Mistura do filtro e gelada.
(Dália sai) Tira o paletó.
ARANDIR (tirando o paletó) —Calor.
SELMINHA —Gravata.
ARANDIR (tirando a gravata) —Duas
horas lá. (Dália entra com o copo)
DÁLIA —Fresquinha. (Arandir segura o
copo com as duas mãos)
ARANDIR (antes de beber) — Água linda!
(Arandir bebe, de uma vez só.
Devolvendo o copo) Você é um anjo!
DÁLIA —Outro?
SELMINHA (falando ao mesmo tempo) —Não
chama Dália de anjo, que ela vai
embora.
ARANDIR —Daqui?
DÁLIA (doce e firme) —Amanhã.
ARANDIR (atônito) —E vai como? De vez?
SELMINHA —Diz que vai morar com vovó e
que. Uma chata!
ARANDIR (com surdo sofrimento) —Dália,
você tem coragem?
SELMINHA —Um momento. Meu bem, você
vai comer alguma coisa.
ARANDIR —Sem fome.
SELMINHA —Uma boquinha você faz?
ARANDIR — Nada. Mais tarde. Depois.
Depois eu como. (Arandir, na sua
volubilidade febril, continua)
ARANDIR —Mas isso é batata?
DÁLIA —Batata!
ARANDIR — Dália, chega aqui. Por quê?
De repente e sem motivo? Parece
incrível que eu chegue da polícia e a
primeira notícia que me dão.
É que você vai embora? Escuta. Lá no
distrito. (Arandir anda de
um lado para outro)
SELMINHA —Meu filho, você está
cansado.
ARANDIR — Na polícia, ainda agora. Eu
me senti, de repente, tão só. Foi
uma sensação tremenda. Naquele
momento, eu tive assim uma
vontade de gritar: — Selminha! Dália!
(com desespero
estrangulando a voz) Quase grito,
quase! (mudando de tom)
Cheguei aqui e sei que você vai...
DÁLIA (com certa violência) —Você não
precisa de mim!
ARANDIR (olhando ora a mulher, ora a
cunhada) —Quem sabe?
DÁLIA (com falsa e frívola
naturalidade) — Precisa de Selminha.
(Arandir agarra a mulher, com
violência)
ARANDIR (estrangulando a voz) —
Responde. Haja o que houver. Você
nunca me deixará? Nunca? Não me
abandone nunca.
SELMINHA (angustiada) —Meu bem. Mas
claro. Nunca. Ou você.
DÁLIA —Você viu o rapaz morrer?
ARANDIR (crispado) —Quem?
DÁLIA (sôfrega) —Era rapaz?
ARANDIR —Meu anjinho, esse assunto.
Não interessa. (com falsa euforia) —
Falemos de outra coisa. Você vai
amanhã? É amanhã!? Ótimo!
Magnífico! Eu ajudo a fazer as malas!
(muda de tom) Só não quero
que toquem nesse desastre!
DÁLIA —Eu mesma arrumo as malas.
ARANDIR (incoerente) — Escuta. Vi o
rapaz morrer, sim. Da minha idade,
mais ou menos. Selminha, ele estava em
cima do meio-fio.
Esperando que o sinal abrisse.
(repete) Em cima do meio-fio. De
repente, não sei como foi: — ele
perdeu o equilíbrio. Caiu para
frente e... Vinha um lotação a toda
velocidade. Bateu no rapaz,
atirou numa distância como daqui ali.
DÁLIA —Gritou?
ARANDIR —O rapaz?
SELMINHA (querendo aplacá-lo) —Meu
bem...
ARANDIR —O atropelado não grita. Ou
grita? Esse não gritou.
DÁLIA —Era bonito?
ARANDIR (sem responder) — O lotação
passou por cima. Mas morreu logo.
Ainda viveu um minuto, talvez. Ou
menos. Um minuto.
SELMINHA —E você que não pode ver
sangue.
ARANDIR —Eu corri. Cheguei primeiro
que os outros. Me abaixei, peguei a
cabeça do rapaz. Gente assim. Peguei a
cabeça do rapaz e...
SELMINHA —Beijou. (Arandir volta-se,
com uma certa ira)
ARANDIR (agressivo) — Você também
sabe? (desesperado) Todo mundo
sabe!
SELMINHA —Papai contou.
ARANDIR (fremente) — Teu pai. É mesmo!
Estava comigo e viu. (com
desespero) Teu pai disse que eu...
(muda de tom) Antes de
morrer. O rapaz ainda estava vivo.
(incoerente) O interessante é
que na polícia só me falaram nisso!
SELMINHA —Meu bem, agora chega. Descansa
um pouco.
ARANDIR (sem ouvi-la) —Dália, a
polícia pensa. Ainda está pensando. E não
se convence, Dália. Pensa que eu
conhecia o rapaz. Tomaram
meu nome, endereço. Fui interrogado
duas vezes. E vão me
chamar outra vez.
DÁLIA —Você conhecia?
ARANDIR —Oh, Dália!
DÁLIA —Nem de vista?
ARANDIR (na sua cólera, apontando para
a cunhada) — Era assim que a
polícia perguntava. Nem de vista, nem
de nome? Martelavam.
Mas olha! O que foi. O rapaz estava
morrendo. Morrendo junto
ao meio-fio. Mas ainda teve voz para
pedir um beijo. Agonizava
pedindo um beijo. Na polícia, o
repórter disse que era hora de
muito movimento. Toda a cidade estava
ali, espiando. E viu
quando eu...
TREVAS
FIM DO PRIMEIRO ATO
SEGUNDO ATO
(Casa de Selminha. A pequena, de
costas, aparece entretida numa ocupação caseira.
Dália, já de saída, surge com uma
maleta. Vai deixar a casa.)
DÁLIA —Estou pronta.
SELMINHA (com espanto) —Já vai?
DÁLIA (que já pousou a mala no chão) —
Diz o número do táxi?
(Selminha está com o quimono por cima
da camisola)
SELMINHA —Escuta, Dália!
DÁLIA (para si mesma) —28-31... Como
é, Selminha? 43?
SELMINHA (ralhando) —Deixa de ser
espírito de porco!
DÁLIA (com uma afetação de
infantilidade, batendo com o pé) — Meu
Deus, como é o número?
SELMINHA (puxando-a pelo braço) — Vem
cá. Arandir me pediu. Escuta,
Dália.
DÁLIA —Ah, bom!
SELMINHA —Antes de sair me pediu e eu
prometi.
DÁLIA —Que coisa chata.
SELMINHA — Ouve. Arandir me pediu pra
te falar. Dália, escuta. E mandou
dizer. Se ele chegar, logo mais, você
não estiver aqui, ouve: —ele
corta relações contigo.
DÁLIA (começando) —Cha...
SELMINHA —Escuta. Dália, escuta. Troca
de mal contigo.
DÁLIA —Chama o táxi.
SELMINHA —Você é teimosa!
DÁLIA —Quer chamar o táxi? (muda de
tom) Selminha, eu disse que ia,
vovó está me esperando!
SELMINHA (numa explosão) — Então que
se dane e... (d. Matilde entra com
um jornal na mão)
D. MATILDE —Licença?
SELMINHA — Ah, entre, d. Matilde. (d.
Matilde entra e faz um cumprimento
apressado)
D. MATILDE —Bom dia! Bom dia!
DÁLIA (com frívola desenvoltura)
—Estou de saída!
D. MATILDE (indicando o jornal) —Já
leu?
SELMINHA —O resultado das misses?
D. MATILDE —Não leu?
SELMINHA (já com uma curiosidade nova
e inquieta) —Não vi o jornal!
D. MATILDE (radiante por ser portadora
da novidade) — O retrato do seu
marido, d. Selminha!
SELMINHA (ao mesmo tempo que apanha o
jornal) —Onde?
DÁLIA —De Arandir?
D. MATILDE (apoplética de satisfação)
—Primeira página!
SELMINHA (sôfrega) —É mesmo! (Dália
olhando por cima do ombro da irmã)
DÁLIA (no seu espanto) —Última
Hora[2]!
D. MATILDE (eufórica) —O título!
SELMINHA (lenta e estupefata) —O beijo
no asfalto! (muda de tom) O retrato
do atropelado! E aqui o Arandir na
delegacia!
D. MATILDE (melíflua e pérfida) —Aí
diz uns troços que!
DÁLIA —Deixa eu ler!
SELMINHA —Dália, não amola!
DÁLIA — Então lê alto! (Selminha
começa a ler para si, d. Matilde
continua na mesma euforia)
D. MATILDE (mexericando para Dália) —
Olha, escuta. Tem um repórter na
rua.
DÁLIA —Repórter!
D. MATILDE —Com fotógrafo! Entrevistando!
Ouviu, d. Selminha?
SELMINHA (que continua lendo) —Um
momento!
D. MATILDE (voltando-se para Dália) —E
o repórter está querendo saber se d.
Selminha vive bem com seu Arandir. Eu
disse: —“vive”!
SELMINHA (numa explosão) —Nunca!
Nunca!
DÁLIA —Mas que é que diz?
SELMINHA (desatinada) — Diz que. Olhe
que ele diz. Onde é que está?
Aqui, mentira! Tudo mentira!
DÁLIA (vivamente) —Dá aqui!
SELMINHA — Ainda não acabei! (para d.
Matilde) Estou que. Tinindo, d.
Matilde, tinindo! Como é que um
jornal! (para Dália) Diz que o
Arandir beijou o rapaz na boca!
D. MATILDE —Esse jornal é muito
escandaloso!
SELMINHA (fora de si) —Toma! Toma!
(entrega o jornal a Dália) Não quero
ler mais nada! Estou até com nojo!
Nojo! (Dália começa a ler o
jornal)
D. MATILDE —Caso sério!
SELMINHA — Se meu marido, d. Matilde!
E na boca! Meu marido nem
conhecia! Era um desconhecido, d.
Matilde!
D. MATILDE (pérfida) —Desconhecido?
SELMINHA —Desconhecido!
D. MATILDE (melíflua) —Tem certeza?
SELMINHA —Mas d. Matilde!
D. MATILDE —Claro que! Evidente!
Acredito na senhora, nem se discute. Mas
interessante, d. Selminha. Sabe que.
Pela fotografia do jornal, a
fisionomia do rapaz não me parece
estranha. (bruscamente e com
vivacidade) O morto não é um que veio
aqui, uma vez?
SELMINHA —Na minha casa?
D. MATILDE —Na sua casa! Aqui!
SELMINHA (fremente) — A senhora está
me chamando de mentirosa, d.
Matilde?
D. MATILDE — Deus me livre! A senhora
não entendeu. Eu não ponho em
dúvida. Absolutamente. (repete) Em
absoluto! Não ponho. Mas
há uma parte no jornal. A senhora leu
tudo?
SELMINHA —Tudo!
D. MATILDE —Leu aquele pedaço no
final...
SELMINHA —Tudo!
D. MATILDE —Essa parte acho que a
senhora não leu.
SELMINHA —(fremente) —Quer me fazer um
favor?
D. MATILDE —Eu vou ler para a senhora.
Eu leio.
SELMINHA —Por obséquio, d. Matilde.
D. MATILDE —Leio. (d. Matilde apanha o
jornal de Dália)
DÁLIA —Mas eu estou lendo!
D. MATILDE (melíflua) —Dá licença.
DÁLIA (desabrida) —Ora, d. Matilde.
D. MATILDE —Um minutinho!
SELMINHA (na sua obsessão) —Era um
desconhecido! Um desconhecido!
D. MATILDE (irredutível) —É essa
parte. Aqui. Acho que a senhora não leu!
DÁLIA —Arandir vai lá na redação e
quebra a cara do repórter!
SELMINHA (frenética) — Não leia nada!
Não quero! Não quero, d. Matilde.
Não quero ouvir nada.
D. MATILDE (implacável, nítida,
incisiva) — O jornal diz: (ergue a voz) “Não
foi o primeiro beijo! (triunfante) Nem
foi a primeira vez!”
SELMINHA (atônita) —Não foi o primeiro
beijo! Nem foi a primeira vez?
(Trevas sobre as três. Luz na firma,
onde Arandir trabalha. O rapaz acaba de chegar. É
cercado pelos colegas.)
WERNECK (com um humor bestial) —Mas
então, seu Arandir! O senhor!
SODRÉ —Você não diz nada pra gente?
ARANDIR (já inquieto) —O que é que há?
WERNECK —Você fica viúvo e não avisa,
não participa?
ARANDIR —Isola!
PIMENTEL (batendo-lhe nas costas) —Nem
me convidou!
ARANDIR (atônito e meio acuado) —Que
piada é essa?
WERNECK —Piada, uma ova! Batata!
SODRÉ —Viúvo, rapaz! (Werneck com as
duas mãos apanha e aperta a de
Arandir)
WERNECK —Meus para-choques!
ARANDIR —Mas qual é a graça? E isso
não é brincadeira! (olhando as caras
que o cercam) Não faz assim que eu não
gosto! Werneck, para,
sim? Essas brincadeiras comigo!
(Werneck rompe, com uma
boçalidade feroz e jocunda)
WERNECK —Rapaz! A tua viuvez está
aqui! Em manchete! (Werneck sacode
o jornal) Em manchete, rapaz!
ARANDIR (exasperado) —Você para ou não
para!?
WERNECK (triunfante) —Lê! Lê! Beijo no
asfalto! Está aqui! Traz no jornal!
O título é —“Beijo no asfalto”!
ARANDIR —Que jornal?
WERNECK —Aqui. (Arandir apanha o
jornal)
ARANDIR (lendo, estupefato) —Beijo no
asfalto!
WERNECK (numa euforia brutal) —Teu
retrato! Teu e o do cara.
PIMENTEL (baixo) —Fala baixo!
WERNECK (exultante) — Viuvez, sim!
Perfeitamente, viuvez. (num repelão
furioso contra o companheiro) Não
chateia, Pimentel! (Arandir,
estupefato, lê a matéria. Fala para si
mesmo)
ARANDIR (com a voz estrangulada)
—Mentira! Mentira!
WERNECK (apontando) —Viúvo de
atropelado! Ou viúva! Beijou o sujeito na
boca. O sujeito morreu. É a viuvez.
Batata!
ARANDIR (para si mesmo, sem nada
ouvir) — Não! Não. (Arandir lê com
exclamações abafadas)
WERNECK (para os outros, com uma
certeza feroz) — E o morto vinha aqui!
Veio aqui!
ARANDIR (erguendo a cabeça) —Quem
vinha aqui?
WERNECK —O morto! O atropelado!
ARANDIR (estupefato) —Vinha aqui?
WERNECK (exaltado) —Falar contigo.
ARANDIR (com toda a fúria do seu
protesto) — Nunca! Eu não conhecia o
cara!
WERNECK (rindo) — Não conhecia, seu
vigarista! (muda de tom) Quer ver?
(precipita-se, aos berros) D. Judith!
D. Judith! (para Arandir) Eu
provo!
ARANDIR — Era um desconhecido!
Desconhecido! Eu, nunca! (d. Judith
aparece. Tipo convencional da
datilógrafa. Inclusive os óculos)
WERNECK —Eu não minto! eu não minto!
ARANDIR (para os outros)
—Desconhecido!
WERNECK (sempre esbravejante) — Quando
digo uma coisa, é batata! (para
a datilógrafa) Ah, d. Judith!
D. JUDITH (um pouco intimidada) —Me
chamou?
WERNECK —Chega aqui, d. Judith. Vem
cá!
ARANDIR —D. Judith, é verdade que.
WERNECK (para Arandir) — Um momento! A
senhora vai tirar aqui uma
dúvida!
ARANDIR (sôfrego) —D. Judith...
PIMENTEL —Fala um de cada vez!
WERNECK — D. Judith, o que foi que a
senhora me disse. Um momento!
Quando a senhora viu o jornal, a
senhora não disse. Não disse que.
Disse que tinha visto o morto aqui.
Fala, d. Judith, pode falar!
D. JUDITH (crispada de timidez) —O que
eu disse foi...
PIMENTEL —Não tenha medo!
D. JUDITH —Realmente, pela fotografia,
parece.
WERNECK —Continua, d. Judith! Parece
ou?
D. JUDITH (em brasas) — Parece um moço
que esteve aqui, na semana
passada. Um moço.
WERNECK —Procurando por quem, d.
Judith, procurando por quem?
D. JUDITH (de olhos baixos) —Seu
Arandir!
ARANDIR (desafinado) —Procurando por
mim? Por mim?
D. JUDITH (depois de um olhar
enviesado) —O senhor não estava!
ARANDIR (desesperado, para os outros)
— Mas é mentira! Mentira!
Simplesmente, eu nunca vi esse rapaz!
Nunca, na minha vida!
Juro! Escuta, d. Judith!
D. JUDITH —Com licença! (d. Judith
abandona a cena, meio espavorida, num
passinho rápido e muito miúdo)
WERNECK (insultante) —Viúvo!
ARANDIR —Eu não admito. Sou casado e
não admito!
WERNECK —Há testemunha! Viram o rapaz
aqui! Viram!
ARANDIR (desatinado) —Cala a boca!
WERNECK —Quem é você. Você pra me
mandar calar a boca?
PIMENTEL —Vamos parar com isso! (quer
segurar Werneck)
ARANDIR —Ou você para ou eu...
WERNECK —Tira a mão! (para Arandir) O
que é que você faz?
ARANDIR — Te parto a cara! (os outros querem
separar; Werneck os
empurra)
WERNECK — Então, parte! (para
Pimentel) Não te mete! (para Arandir)
Parte a minha cara!
ARANDIR (estrangulando a voz) —Não
quero!
WERNECK (num berro) —Ou tu parte a
minha cara ou eu parto a tua!
(Trevas. Luz sobre a casa de Selminha.
Aprígio e a filha. O velho está chegando. Selminha
junto do telefone.)
SELMINHA (sôfrega) —Papai, um
minutinho.
APRÍGIO —Eu espero!
SELMINHA —Estou falando com Arandir.
Foram chamar.
APRÍGIO —Fala, minha filha.
SELMINHA (desesperada) — Estão
passando trotes para cá! (muda de tom)
Alô! Alô! Arandir? Sou eu. O telefone
está ruim! Ah, sim! Você
leu? Hem? Leu! Meu filho, olha: — fala
mais devagar. Não ouço
nada. Vem pra cá? Vem, sim, vem. Papai
chegou agora. Toma um
táxi. Um beijinho! (Selminha abandona
o telefone. Vem sôfrega,
para o pai)
APRÍGIO —Escuta, Selminha.
SELMINHA —Papai, oh, meu Deus! Tenho
que deixar o telefone desligado.
APRÍGIO —Trote?
SELMINHA — Trote. Nunca ouvi tanto
palavrão na minha vida. Sujeito
telefonar, papai. E até mulher! (voz
de menina) Telefonar para
dizer nome feio. Deve ser, aposto.
Aposto, papai. Gente da
vizinhança! É gente da vizinhança!
Tenho certeza!
APRÍGIO —Não liga!
SELMINHA (sôfrega) —Comprou o jornal?
APRÍGIO —Comprei. (Aprígio tira o
jornal do bolso)
SELMINHA —Leu?
APRÍGIO —Li.
SELMINHA (começando a chorar) —Papai,
olha.
APRÍGIO —Chorando, por quê?
SELMINHA — Tenho que chorar! Estou
chorando de raiva! Eu e Dália!
(mudando de tom) Dália não vai mais,
papai! Não vai mais!
APRÍGIO —Por quê?
SELMINHA —Fica! Leu esse pasquim! Leu
e resolveu ficar.
APRÍGIO —Onde está ela?
SELMINHA (sem responder) — Como é que
um jornal, papai! O senhor que
defendia tanto o Samuel Wainer! E como
é que um jornal publica
tanta mentira!
(Aprígio anda de um lado para outro.
Luta consigo mesmo. Ao ouvir falar em mentira,
volta-se para a filha com vivacidade.)
APRÍGIO —Não é mentira!
SELMINHA — Esse título “Beijo no
asfalto”! (reagindo fora do tempo) O que
foi que o senhor disse? (atônita) Não
é mentira?
APRÍGIO —Nem tudo!
SELMINHA (repetindo) —Não é mentira?
APRÍGIO —Selminha, escuta, escuta,
minha filha! Você está nervosa!
SELMINHA (atônita) — O senhor quer
dizer que isso, isso que o jornal
publicou. Esta nojeira! O senhor quer
dizer que é verdade?
APRÍGIO —Um momento!
SELMINHA (fora de si) —O senhor admite
que.
APRÍGIO — Selminha, olha! O repórter,
esse Amado Ribeiro, escuta,
Selminha. (incisivo) —O repórter
estava lá! Viu tudo!
SELMINHA (estupefata) —Viu o quê?
APRÍGIO —O que se passou.
SELMINHA — Então, o senhor vai me
dizer. O senhor vai me dizer o que foi
que se passou. Quero saber! Quero!
APRÍGIO (persuasivo) —Meu anjo, ontem
eu não te contei?
SELMINHA (furiosa) —O senhor não me
contou nada!
APRÍGIO (doce, mas firme) —Contei.
SELMINHA —Papai, pelo amor de Deus,
escuta!
APRÍGIO —Selminha...
SELMINHA — Tenho mais confiança em
Arandir que em mim mesma. Se
tivesse acontecido o que o jornal diz.
Um momento, papai. (com
mais violência) Arandir me contaria.
Arandir não me esconde
nada. Arandir me conta tudo!
APRÍGIO —Nem tudo.
SELMINHA —Tudo!
APRÍGIO —Ontem, eu perguntei se você
conhecia o seu marido.
SELMINHA (exaltada) — Mas claro! Ou o
senhor se esquece que eu sou a
mulher. Que eu. Papai, Arandir não
pode nem me trair. Porque
viria me contar tudo, tudinho. Outro
dia. A fechadura do
banheiro estava quebrada. Arandir
empurra a porta e vê Dália
nua. Sem querer, naturalmente, e nem
ele podia imaginar que.
Mas compreendeu? Pelada.
Completamente! Tinha acabado de
tomar banho. Pois Arandir veio,
imediatamente, no mesmo
minuto. No mesmo minuto, papai. Dizer:
— olha, acaba de
acontecer isso, assim assim... Eu nem
disse nada a Dália, porque
ela ia ficar sem jeito. Mas a
sinceridade de Arandir! O senhor
sabe que eu adorei! Adorei!
APRÍGIO —Posso falar?
SELMINHA (frenética) — E o jornal põe
que o meu marido beijou outro
homem na boca!
APRÍGIO —É verdade!
SELMINHA (atônita, quase sem voz)
—Arandir me diria...
APRÍGIO (triunfante) —Beijou.
SELMINHA (recuando) — O senhor não
pode dizer isso! Não tem esse
direito!
APRÍGIO (ofegante) —Eu sou pai!
SELMINHA (num esgar de choro) —Não.
Não.
APRÍGIO —Eu vi e sou pai. Pai. Vi meu
genro. O lotação arrastou o sujeito.
SELMINHA (feroz) — Foi o rapaz que.
Antes de morrer. O rapaz pedia um
beijo.
APRÍGIO (exultante) — O sujeito caiu
de bruços, rente ao meio-fio. De
bruços. Teu marido foi lá e virou o
rapaz. E deu o beijo. Na boca.
SELMINHA (fora de si) — Meu marido
diria. Ele não esconde nada! (Aprígio
segura a filha, pelos dois braços)
APRÍGIO (com súbita energia) — Vem cá.
Responde! Você viu o retrato do
atropelado? (suplicante e violento)
Diz! Você o reconheceu?
Preciso saber. Olha! Entre as amizades
do teu marido. (mais
forte) Entre as relações masculinas do
teu marido, tinha alguém
parecido? Alguém parecido com esse
retrato? Olha bem!
SELMINHA (atônita) —O senhor está
insinuando que.
APRÍGIO (desesperado) —O morto nunca
veio aqui?
SELMINHA —Mas eles não se conheciam?
Meu marido, nunca nunca!
APRÍGIO (violento) —Escuta! Deixa eu
falar, menina! Ontem, eu vim aqui,
pessoalmente. Podia ter dado o recado,
pelo telefone. Mas vim
pra te perguntar se. Selminha, eles se
conheciam?
SELMINHA (espantada e ofegante)
—Mentira!
APRÍGIO (com violência total) — Não
foi o primeiro beijo! Não foi a
primeira vez!
SELMINHA (na sua cólera) —Dália tem
razão!
APRÍGIO (sem entender) —Por que Dália?
SELMINHA —O senhor tem ciúmes de mim.
APRÍGIO (atônito) —Eu?
SELMINHA —Odeia Arandir!
APRÍGIO (desatinado) —Juro!
SELMINHA —O senhor foi contra meu
casamento. Contra!
APRÍGIO (violento e suplicante) — Eu
sou pai. Pai. Preciso saber se eram
amigos e que espécie de amizade!
SELMINHA —O senhor não gosta de
ninguém!
APRÍGIO —Sou um velho!
SELMINHA —Nem de mim. O senhor não
sabe amar. Escuta, papai!
APRÍGIO —Você não me entende.
SELMINHA — Papai, escuta, papai! (num
rompante histérico) Deixa eu falar!
(com cruel euforia) O senhor já amou
algum dia? Amou alguém?
APRÍGIO —Amei!
SELMINHA (num crescendo de fúria
exultante) — Mamãe morreu há tanto
tempo e o senhor continua só. Ninguém
pode viver sem
ninguém. Papai, uma pergunta.
APRÍGIO —Adeus.
SELMINHA —Vem cá, papai!
APRÍGIO —Adeus.
SELMINHA —Não, senhor! O senhor já me
ofendeu e tem que me escutar. É
só uma pergunta. Eu preciso saber.
Está ouvindo? Preciso saber
se meu pai é capaz de gostar.
(suplicante) Neste momento, o
senhor gosta de alguém? Ama alguém,
papai?
APRÍGIO —Quer mesmo saber?
SELMINHA —Quero!
APRÍGIO (com o olhar perdido) —
Querida, neste momento, eu... (esboça
uma carícia na cabeça da filha) eu amo
alguém.
(Trevas sobre a cena. Luz no velório
do atropelado. Amado Ribeiro, Aruba e a viúva.)
VIÚVA —Quer falar comigo?
AMADO —A senhora é que é a viúva?
VIÚVA (chorosa, amarrotando o lenço)
—O senhor é da polícia?
AMADO (sintético e inapelável) — Somos
da polícia. Mandei chamar a
senhora porque é o seguinte.
VIÚVA (atarantada) —Mas o enterro já
vai sair!
AMADO —Um minutinho!
VIÚVA (em ânsias, olhando para trás)
—Vão fechar o caixão!
AMADO (para a viúva) —Não afoba! O
Aruba vai lá! (para o companheiro)
Aruba, vai lá! E diz para aguentar a
mão.
VIÚVA (sôfrega) —Avisa. Seu, como é
mesmo?
ARUBA —Aruba.
VIÚVA —Seu Aruba, avisa que eu não
demoro. Mas pra não deixar sair o
enterro.
AMADO —Chispa!
VIÚVA — Um momento! Seu Aruba, o
senhor fala com um senhor alto,
de espinhas. Um que tem espinhas.
Alto. Diz que. É meu
cunhado. Diz pra não fechar o caixão.
Só com a minha presença.
(sai o Aruba, assoando ligeiramente)
—Pronto.
AMADO (sucinto e incisivo) — Minha
senhora. Não vamos perder tempo.
Tomei informações, a seu respeito.
Sei, de fonte limpa. Um
momento. Sei de fonte limpa que a
senhora tem um amante!
VIÚVA (sob o impacto brutal) —Eu?
AMADO (implacável) — Tem um amante!
Cheio da gaita! Não faça
comentários! Nenhum!
VIÚVA —O senhor está me ofendendo!
AMADO —Ofendendo, os colarinhos[3]!
VIÚVA (entre a indignação e o pânico)
—Mas eu sou uma senhora!
AMADO — Cala a boca! Cala a boca!
(muda de tom) Escuta. Você tem um
amante e com toda a razão. Com toda a
razão. Conheço a sua vida,
de fio a pavio. A senhora arranjou,
cala a boca. Arranjou um cara
quando percebeu, entende? Ao perceber
que seu marido
mantinha relações anormais com outro
homem, a senhora. Não é
fato?
VIÚVA (depois de olhar para os lados e
já incerta) —O senhor está falando
alto!
AMADO —Você leu o jornal?
VIÚVA —O jornal? Li.
AMADO (tirando o jornal do bolso) —
Muito bem. Presta atenção. (à
queima-roupa) Olha bem esse retrato. É
o sujeito que beijou o
seu marido. A senhora, naturalmente,
já viu esse camarada, claro!
VIÚVA (vacilante) —Não.
AMADO (ameaçador) —Madame. Nunca viu?
VIÚVA —Nunca! (Aruba aparece)
ARUBA —Já falei lá.
AMADO (para a viúva) —Viu, sim! Viu!
VIÚVA (em pânico) —Juro!
AMADO —Você está mentindo! mentindo!
ARUBA (interferindo) —Amado, olha. O
cadáver.
AMADO —Não ouvi.
ARUBA (baixo) —O cadáver.
AMADO —Fala alto!
ARUBA —Devido ao calor, o cadáver. Já
tem mau cheiro.
AMADO (furioso) —Que se dane. (para a
viúva) Olha aqui. Ou a senhora
diz a verdade. A polícia não tem esse
negócio de mulher, não.
Mulher apanha também! (muda de tom)
Sua burra! Põe na tua
cabeça o seguinte. Você tem um amante.
E por quê, por que tem
um amante? Porque seu marido, escuta,
escuta! Seu marido
mantinha relações anormais. Relações
anormais com um cara.
Entendeu? (melífluo) Seu marido tinha
um amigo chamado
Arandir; amigo esse que a senhora está
reconhecendo pela
fotografia.
VIÚVA (olhando para os lados) — O
senhor fala mais baixo! (a viúva olha
as fotografias. Aparece um vizinho que
está fazendo velório)
VIZINHO —Com licença.
ARUBA —Fala, meu chapa!
VIZINHO (tímido) —É que.
AMADO —Desembucha.
VIZINHO —Pode fechar o caixão?
AMADO —Mas oh nossa amizade! Aguenta a
mão!
VIZINHO (para Amado) — Doutor, o corpo
está exalando! (enfático)
Exalando!
AMADO (furioso) — Vamos fazer o
seguinte. Olha aqui, nossa amizade!
Manda fechar o caixão! Manda fechar!
Ordem da polícia! Fecha e
toca o bonde! Por minha conta!
ARUBA (enxotando o vizinho e com total
pouco caso) — Acaba com isso!
Acaba com isso!
VIÚVA (com nostalgia e perplexidade)
—Mas é um morto!
AMADO (com riso curto e ofegante) —
Morto e te traía não com uma
mulher, mas com um cara! Na hora de
morrer, ainda levou um
chupão!
ARUBA (alvar) —Legal!
(Trevas. Luz no quarto de Arandir e
Selminha. Arandir acaba de chegar.)
SELMINHA —Até que enfim!
ARANDIR — Ah, querida. (Arandir apanha
entre as suas mãos as de
Selminha)
SELMINHA —Por onde você andou?
ARANDIR —Mãos frias!
SELMINHA —Febre!
ARANDIR (febril também) — Demorei,
porque. Há uma hora que eu rondo
a casa. Passei três vezes pelo portão
e não entrei, porque. (com um
esgar de medo) Tinha um cara na
esquina.
SELMINHA —Que cara?
ARANDIR (encerrado no seu medo, sem
ouvi-la) —Olhando pra cá.
SELMINHA (sôfrega) — Você fala como se
estivesse fugindo, meu bem!
(Arandir estaca. Volta-se vivamente)
ARANDIR (com uma falsa alegria, uma
falsíssima naturalidade) — Fugindo,
eu? (riso de angústia) a troco de quê?
Eu não fiz nada. Não sou
nenhum criminoso. Eu apenas. (sem
transição, já em tom de
lamento) Telefonei para cá. Sempre
ocupado!
SELMINHA (querendo ser natural) —O
telefone, meu bem. Tive de desligar,
claro! Ligavam pra cá e diziam
horrores! Ouvi palavrões que eu
não conhecia!
ARANDIR — Escuta, Selminha, olha. Se
me procurarem. Avisa à Dália e dá
ordem à criada. Eu não estou pra
ninguém. Pra ninguém.
SELMINHA (sem ouvi-lo) —Você leu?
ARANDIR (desesperado e suplicante) —
Pelo amor de Deus. Escuta. Esse
assunto, não!
SELMINHA —Uma pergunta só.
ARANDIR —Não. Selminha, não! Eu não
estou em estado, compreende? Eu
não estou em estado de.
SELMINHA (doce, mas irredutível)
—Arandir, olha pra mim, olha.
ARANDIR (com sofrida docilidade)
—Fala!
SELMINHA — O que o jornal diz. É só
isso que eu quero saber. Só isso, meu
bem. O que o jornal diz é verdade?
ARANDIR (dando-lhe as costas) —Saí do
emprego.
SELMINHA —Te despediram?
ARANDIR — Eu me despedi. (andando de
um lado para outro, com uma
excitação progressiva) Hoje, cheguei
no emprego. Logo que
cheguei, começaram com piadinhas.
(mais exaltado) —
piadinhas. (subitamente em pânico,
pondo-se à escuta) Parou um
automóvel! na porta! Não parou um
automóvel na porta?
(crispando a mão no braço da mulher)
Não está ouvindo?
SELMINHA —Não é aqui!
ARANDIR (quase sem voz) —Não é aqui?
SELMINHA (um pouco contagiada pelo
medo) — No vizinho! (com súbito
desespero, agarrando o marido) Mas que
piadinhas?
ARANDIR (de costas para a mulher e com
a voz nítida e vibrante) — Eles me
chamaram de viúvo!
SELMINHA —De quê?
ARANDIR (com desesperado cinismo) —
Viúvo! Do rapaz que morreu!
Entende? Você acha que depois disso?
SELMINHA (atônita) —E você?
ARANDIR —Eu?
SELMINHA (fora de si) —Você reagiu?
ARANDIR —Eu não podia! Eu não!
SELMINHA (furiosa) —Você devia lhe ter
quebrado a cara!
ARANDIR — Até o chefe. Falou comigo, e
olhava para mim. Estava
espantado. Espantado. Eu tive a
impressão. É um bom sujeito.
Um homem de bem. Não sei, mas tive a
impressão de que tinha
nojo de mim, como se eu!
SELMINHA (segurando-o com
energia)—Arandir!
ARANDIR —Querida!
SELMINHA — Como tua mulher, eu te
peço. Você vai lá amanhã e quebra.
Quebra mesmo! A cara do sujeito!
ARANDIR — Eu acho, entende? Acho que,
nunca mais, em emprego
nenhum. Acho que em todos os empregos,
os caras vão me olhar
como se. As mesmas piadinhas, em toda
a parte.
SELMINHA (frenética) —Ao menos,
responde!
ARANDIR —Senta comigo.
SELMINHA —É verdade quê?
ARANDIR —Um beijo.
SELMINHA (com surda irritação) —
Primeiro, responde. Preciso saber. O
jornal botou que você beijou.
ARANDIR —Pensa em nós.
SELMINHA —Com outra mulher. Eu sou tua
mulher. Você beijou na...
ARANDIR (sôfrego) — Eu te contei.
Propriamente, eu não. Escuta. Quando
eu me abaixei. O rapaz me pediu um
beijo. Um beijo. Quase sem
voz. E passou a mão por trás da minha
cabeça, assim. E puxou. E,
na agonia, ele me beijou.
SELMINHA —Na boca?
ARANDIR —Já respondi.
SELMINHA (recuando) —E por que é que
você, ontem!
ARANDIR —Selminha.
SELMINHA (chorando) — Não foi assim
que você me contou. Discuti com
meu pai. Jurei que você não me
escondia nada!
ARANDIR — Era alguém! Escuta! Alguém
que estava morrendo. Selminha.
Querida, olha! (Arandir agarra a
mulher. Procura beijá-la.
Selminha foge com o rosto) Um beijo.
SELMINHA (debatendo-se) — Não!
(Selminha desprende-se com violência.
Instintivamente, sem consciência do
próprio gesto, passa as costas
da mão nos lábios, como se os
limpasse)
ARANDIR —Você me nega um beijo?
SELMINHA —Na boca, não!
ARANDIR (sem se aproximar e estendendo
as duas mãos crispadas) —
Coração, olha. No emprego e aqui na
rua. Eu sei que aqui na rua.
Ninguém acredita em mim. E, hoje,
quando eu saí do emprego.
Meu bem, escuta. Fiquei andando pela
cidade. Tive a impressão
de que todo mundo me olhava. No
lotação, em todo lugar, eu
acho que me reconheciam pelo retrato.
Eu saltava de um lotação
e apanhava outro. A mesma coisa. Eu
então pensei: —“Bem: Mas
eu tenho Selminha!” Escuta, Selminha,
escuta! Eu quero sentir,
saber, entende! Saber que você está
comigo, a meu lado! Você é
tudo que eu tenho! (Selminha está
chorando com o rosto coberto
por uma das mãos)
SELMINHA (soluçando) —Oh, cala a boca!
ARANDIR (com súbito pânico) —Barulho.
Está ouvindo?
SELMINHA —Nada.
ARANDIR (recuando) —Abriram o portão.
Alguém entrou.
SELMINHA (com surda irritação) —Não é
ninguém. (Dália aparece)
ARANDIR —Oh, Dália.
DÁLIA (surpresa para a irmã) —Chorando
por quê?
ARANDIR —Nervosa.
DÁLIA (para Arandir) — Eu não vou
mais, Arandir. (para a irmã) Sua
boba! Parece até nem sei! Faz como eu.
Olha! Agora mesmo, eu
disse à d. Matilde. Ouviu, Arandir?
Quando eu vinha voltando da
igreja, encontrei a d. Matilde. D.
Matilde, essa de. Disse a ela o
que não se diz a um cachorro. Quase
que. Disse: —Olha! Limpe a
boca, limpe a boca. E fique sabendo
que meu cunhado é muito
mais, mas muito mais homem que seu
marido! (toca a
campainha)
ARANDIR (sob o impacto) —Agora estão
batendo!
SELMINHA (também em sobressalto) —
Dália, vai atender, vai. Arandir não
está.
DÁLIA —Não está?
ARANDIR —Ninguém, pra ninguém!
SELMINHA —Anda. (Dália abandona a
sala)
ARANDIR (sôfrego) —Diz que me ama!
SELMINHA (saturada) —Você sabe.
ARANDIR Mas eu queria que você
repetisse. Me ama? Você não é capaz de
repetir que me ama? (entra Dália)
DÁLIA —Polícia!...
TREVAS
FINAL DO SEGUNDO ATO
TERCEIRO ATO
(O delegado Cunha e Amado Ribeiro
estão na casa de um amigo, em Boca do Mato.
Entram o investigador Aruba e
Selminha. (Esta vem assustadíssima) Só vê-la, o delegado
Cunha, em mangas de camisa, os
suspensórios arriados, um vasto revólver na cinta, vem
ao seu encontro. Exuberante e sórdida
cordialidade de cafajeste.)
CUNHA —Tenha a bondade, minha senhora!
Tenha a bondade!
SELMINHA (quase chorando) —O senhor
que é o comissário?
CUNHA (numa mesura subserviente)
—Delegado!
ARUBA —O doutor!
SELMINHA (fremente) —Eu fui ameaçada!
Ameaçada!
CUNHA —Mas minha senhora!
SELMINHA (apontando) —Esse moço me
ameaçou!
ARUBA (numa gesticulação de cafajeste)
— Ela quis botar banca! Não
queria vir! Resistiu, já sabe!
SELMINHA (ora para um, ora para outro)
—Mentira. (para delegado) Doutor,
eu apenas, olha. Apenas perguntei: —
“Pra onde o senhor me
leva?”
CUNHA (com um descaro grandiloquente)
— Aruba! Você maltratou essa
senhora, hem, Aruba?
ARUBA —Não!
SELMINHA (chorando de humilhação)
—Disse que. Disse! Que se eu gritasse,
que eu apanhava na boca! E me torceu o
braço. (para
investigador) —torceu!
AMADO (intervindo pela primeira vez)
—Minha senhora, isso é um cavalo!
Uma besta!
ARUBA (impulsivamente) —Besta é você!
AMADO —O cara não dá uma dentro!
CUNHA (aos berros e espetando o dedo
na cara do auxiliar) —Cala a boca!
(muda de tom, para Selminha) —
Infelizmente, minha senhora, a
polícia tem elementos que, (para
Aruba, com uma falsa cólera)
Retire-se! (para Selminha, com
humildade) —Peço-lhe, creia que
(para Aruba) —Saia!
ARUBA —Mas doutor!
CUNHA —E olha! Vou lhe meter uma
suspensão!
ARUBA (numa confusão total) —Cumpri
ordens!
CUNHA — Eu não admito, entende? Não
admito! Cai fora! (Aruba sai.
Cunha volta-se para Selminha.
Falsíssima humildade. Selminha
olha em torno)
SELMINHA —Eu reclamei porque (mais
incisiva) —Isso aqui não é distrito!
AMADO —Calma, d. Selminha!
SELMINHA (próxima da histeria) —Isso é
uma casa!
CUNHA (melífluo) — Exato, exato. Casa.
Não nego. Escuta, minha
senhora.
SELMINHA —Mas doutor!
AMADO (apaziguador) —Um momento!
CUNHA — Pra evitar escândalo. Escuta.
Pra evitar escândalo eu preferi
que fosse aqui.
SELMINHA (olhando em torno) —Aqui
onde?
CUNHA (com um princípio de irritação e
já insinuando uma ameaça) —
Aqui, d. Selminha, aqui! Na delegacia,
propriamente, não se
pode trabalhar. Está assim de
repórter, de fotógrafos! Não há
mistério, d. Selminha. Estamos em São
João de Meriti. Essa casa
é de um amigo do Amado Ribeiro.
(voltando-se para o repórter)
Amado Ribeiro, da Última Hora!
AMADO (cínico) —Prazer.
SELMINHA (disparando, numa
volubilidade febril) — O senhor é que é
Samuel Wainer?
AMADO —Amado Ribeiro.
SELMINHA (desorientada por um detalhe
imprevisto) —Mas o Samuel Wainer
não trabalha na Última Hora?
AMADO —Exato.
SELMINHA (confusa) —Ah, é. E o Carlos
Lacerda na Tribuna da Imprensa[4].
CUNHA (de sopetão e chocado pela
surpresa) — D. Selminha, onde está
seu marido?
SELMINHA (crispando-se) —Meu marido?
CUNHA (mudando de tom e com uma
satisfação gratuita, exagerada) —
Não responda já! (sem transição)
Amado, escuta. (para Selminha)
Temos um barzinho, ali. A senhora não
toma nada? Por exemplo:
—não quer tomar um.
SELMINHA —Nada.
AMADO —Nem aguinha?
CUNHA —Apanha lá, Amado.
SELMINHA (vivamente) —Não, não!
(sôfrega) Muito obrigada.
CUNHA (para Amado) —Não precisa,
Amado. (para Selminha, novamente
melífluo) Mais calma?
SELMINHA —Sim.
CUNHA (com um riso surdo) —Ou tem
medo?
SELMINHA (realmente apavorada) —Um
pouco. (Cunha faz, ali, um pequeno
e divertido escândalo. Estava sentado,
ergue-se)
CUNHA (com um riso exagerado e
bestial) — Medo de mim? (abrindo os
braços para o repórter) —Tem medo de
mim, Amado! De mim!
AMADO —D. Selminha, com licença!
SELMINHA (desorientada) — Não é isso!
O senhor não me entendeu.
Nervosa!
CUNHA (rindo ainda, com certa
ferocidade) —Diz pra ela, Amado. Conta!
(andando de um lado para outro e
sempre exagerando) Medo de
mim, qual!
AMADO (incisivo) — D. Selminha, aqui o
Cunha. Ouviu, d. Selminha?
Está ouvindo? O Cunha não é como os
outros!
CUNHA (andando de um lado para outro,
numa agitação jocunda) — Fala,
Amado, fala!
AMADO — Posso falar porque. Tenho
metido o pau na polícia. Mas o
Cunha é um dos raros. Um dos raros,
entende? (cínico e enfático)
—Humano! (Cunha vem sentar-se,
novamente, com os dois)
CUNHA —Menina, escuta. Pra mim você é
uma menina. Mas escuta.
SELMINHA (querendo desculpar-se) —Em
absoluto, eu!
CUNHA —E, de mais a mais, eu sou pai.
Antes de tudo, sou pai. O Amado
sabe. Eu tenho uma filha. Única.
AMADO —Noiva.
CUNHA —Noiva. Vai se casar. E quando
eu olho pra você, penso na minha
filha. Nunca se sabe o dia de amanhã.
Vamos que o meu genro.
Essas coisas, sabe como é. Casamento é
loteria, mas eu, quero
que você, entende? (para o repórter)
Você não acha, Amado?
(para Selminha novamente) Quero que
você me veja como um
pai. Agora responda: —ainda tem medo
de mim?
SELMINHA —Não.
AMADO —Natural.
CUNHA (com um riso surdo e ofegante)
—Podemos conversar?
SELMINHA (com uma docilidade de
menina) —Podemos.
AMADO (baixo e persuasivo) —Pode
confiar no Cunha.
CUNHA (docemente) — É uma pergunta.
Uma perguntinha só. O
seguinte.
SELMINHA (olhando ora um, ora outro)
—Pois não.
CUNHA (de sopetão e com uma
agressividade inesperada) —Onde está seu
marido? (pausa. Selminha olha um e
depois outro)
SELMINHA (crispada) —Não sei.
AMADO (persuasivo) —Sabe. D. Selminha.
CUNHA (já ameaçador) —Ai o meu cacete!
(mudando de tom) Menina, eu
lhe falo como um pai! Como um pai! E
se você!
SELMINHA —Juro! (Cunha vira-se para
Amado. Agarra-o pelos dois braços)
CUNHA — Oh por que é que eu tenho uma
filha! É minha filha que me
impede de! (larga o repórter e
volta-se para Selminha) Menina,
pense bem antes de responder!
SELMINHA (numa espécie de histeria)
—Eu não sei onde está meu marido!
CUNHA — Você está diante da polícia. E
olha! Vai dizer a verdade. A
verdade! (muda de tom, novamente
caricioso) Não se engana a
polícia!
SELMINHA —Escuta, doutor! Meu marido
saiu de casa...
CUNHA (furioso) —Seu marido fugiu!
SELMINHA —Fugiu como?
CUNHA —Fugiu, entende? Está fugindo!
Fugindo da polícia!
AMADO — Não lhe parece que a fuga é.
D. Selminha, escuta. A fuga é a
confissão. Confissão!
SELMINHA —Mas meu marido! Afinal de
contas!
CUNHA (apertando a cabeça entre as
mãos) —Não é possível!
SELMINHA (erguendo-se e com exaltação)
—O senhor está enganado.
CUNHA (num berro) —Fugiu!
AMADO (para o delegado) — Cunha,
calma! (para Selminha) Um
momento! (para Cunha) Calma!
SELMINHA —Fugir por quê, se ele não
fez nada? Nem conhecia o morto!
CUNHA (rápido e agressivo) — Tem
certeza? Note bem: — certeza?
(elevando a voz) Tem!?
SELMINHA (afirmativa, embora desconcertada)
— Tenho! (Cunha tem um
lance teatral)
CUNHA (exultante) —Amado, manda entrar
a moça! (para Selminha) Vou
lhe provar que. Ri melhor quem ri por
último.
AMADO (faz um gesto para dentro) —Pode
vir! Vem, vem!
CUNHA (para a moça que vem entrando) —
Tenha a bondade. (a viúva do
atropelado é moça) — Aqui é a viúva do
rapaz, o atropelado. A
viúva. O tal que seu marido beijou. O
tal!
AMADO — A senhora vai repetir aqui.
(indica Selminha, sem dizer-lhe o
nome) A senhora conhece o Arandir?
VIÚVA —Conheço.
AMADO (para Selminha) —Conhece! (para
a viúva) E conhece de onde?
VIÚVA —De minha casa.
AMADO — Frequentava a sua casa. Muito
bem. (para Selminha) Ia lá!
(para a viúva) Agora conta aquilo.
Aquilo que a senhora me
contou. Aquilo, sim!
CUNHA (para Selminha) —Presta atenção.
VIÚVA — De fato. Uma vez, ele foi lá
em casa. Foi lá em casa e os dois.
(para, em pânico, olhando para o
delegado, ora o repórter, ora
Selminha)
AMADO —Os dois. Continue!
VIÚVA (sôfrega de um jato) —Os dois
tomaram banho juntos.
SELMINHA (atônita) —Meu marido?
AMADO (já despedindo a viúva) —Madame,
muito obrigado. Pode ir.
SELMINHA (precipitando-se) — Mas
escuta. Vem cá! (Cunha barra a
passagem de Selminha)
CUNHA — Não, senhora. Quem interroga
somos nós! A senhora não se
mete!
AMADO (feroz e exultante) —D.
Selminha, o banho é um detalhe mas que
basta! Pra mim basta! O resto a
senhora pode deduzir.
SELMINHA (lenta e estupefata) —O
senhor quer dizer que meu marido!...
AMADO (forte) —Exatamente!
CUNHA (também feroz) — Seu marido,
sim! Seu marido! Batata!
(Selminha olha, ora um, ora outro.
Está lívida de espanto)
AMADO (ofegante) —Ou a senhora prefere
que eu fale português claro?
SELMINHA (que se crispa para uma crise
de histeria) —Prefiro. Fale, sim! Fale
português claro!
AMADO —Bem. É o seguinte.
CUNHA (bestial) —Escracha! Escracha
que eu já estou de saco cheio!
AMADO — A polícia sabe que havia.
Havia entre seu marido e a vítima
uma relação íntima.
SELMINHA (no seu espanto) —Relação
íntima?
AMADO — Uma intimidade, compreendeu?
Um tipo de intimidade que
não pode existir entre homens. Um
instante, Cunha. A viúva já
desconfiava. O negócio do banheiro,
entende? E quando leu o
beijo no asfalto, viu que era batata.
Basta dizer o seguinte: —ela.
Sim, a viúva! (triunfante) não foi ao
cemitério!
CUNHA (com uma satisfação bestial)
—Menina, olha. Está na cara que seu
marido não é homem. (Selminha vira-se
com súbita agressividade)
SELMINHA —Eu estou grávida!
AMADO —Quem?
SELMINHA (feroz) — Eu! É homem! Eu
estou grávida! (para um e outro) E
outra coisa. Agora vocês vão me ouvir.
Vão me ouvir. O meu
marido foi à Caixa Econômica. Um
momento! Foi lá pôr uma joia
no prego!
CUNHA —Escuta.
AMADO (para o delegado) —Deixa ela
falar!
SELMINHA — E falo, sim! Foi pôr a
joia, sabe pra quê? Porque ele me pediu
pra tirar. Tirar o filho. Meu marido
acha que a gravidez estraga a
lua de mel! Prejudica! E como eu. Eu
nunca tive barriga. Seria
uma pena que a gravidez. Ele então
preferia que mais tarde e já
não. Foi na Caixa Econômica apanhar o
dinheiro do aborto.
AMADO —Mas e daí?
SELMINHA (desesperada com a ironia ou
incompreensão) — Ou o senhor não
entende quê? Eu conheço muitas que é
uma vez por semana,
duas e, até, 15 em 15 dias. Mas meu
marido todo o dia! Todo o
dia! Todo dia! (num berro selvagem)
Meu marido é homem!
Homem! (Selminha está numa histeria
medonha. Soluça. Cunha a
segura pelos dois braços e a domina,
solidamente)
CUNHA (com um riso sórdido) — Você
nunca ouviu falar em gilete? Em
barca da Cantareira?
SELMINHA (subitamente hirta) —O quê?
CUNHA (num total achincalhe) — Gilete!
Barca da Cantareira[5]!
(Selminha desprende-se com violência.
Desfigurada pela cólera,
esganiça a voz)
SELMINHA — Seus indecentes!
Indecentes! E você! (marcando o delegado)
Você que é pai! Sua filha é noiva e
olha! Tomara que o noivo de
sua filha seja tão homem como o meu
marido! (Cunha atira-se
contra Selminha)
CUNHA —Ó sua! Lhe quebro os cornos!
AMADO (interpondo-se) — Espera! Calma!
(para Selminha, feroz) Tira a
roupa! Fica nua. Tira tudo!
(Trevas. Casa de Selminha. O pai
entra. Dália precipita-se.)
DÁLIA —Oh, papai!
APRÍGIO (sôfrego) —Onde está tua irmã?
DÁLIA (soluçando) —Presa!
APRÍGIO —Quem?
DÁLIA (num começo de histeria) —Presa!
APRÍGIO (estupefato) — Prenderam?
(furioso) Não chora! (muda de tom)
Fala!
DÁLIA —A polícia esteve aqui!
APRÍGIO (repetindo) —Não chora! A
polícia?
DÁLIA (repetindo) — Esteve aqui e
perguntou, primeiro. Primeiro
perguntou por Arandir. (tomando
respiração) Eu disse que
Arandir não estava. Então, levaram a
Selminha!
APRÍGIO (agarrando a filha e com
energia) — Pra onde? (Dália reage como
uma menina realmente traumatizada)
DÁLIA (numa explosão) —Sei lá! Papai!
Sei lá!
APRÍGIO (novamente furioso) — Menina
chata! Para de chorar! (sem
transição e desviando a sua fúria) — E
meu genro? Onde é que
está o meu genro?
DÁLIA —Papai, quando a polícia chegou!
Ouviu, papai?
APRÍGIO (praguejando sem sentido) —O
cúmulo!
DÁLIA —Arandir escondeu-se no meu
quarto!
APRÍGIO —Escondeu-se?
DÁLIA —Escuta, aqui. Ficou lá até que.
(incoerente e com veemência) Ou
o senhor queria que Arandir fosse
preso?
APRÍGIO (furioso) —Meu genro não pode
ser preso, minha filha pode!
DÁLIA (desorientada) —Papai, não é
isso!
APRÍGIO (ameaçando não se sabe o que
ou a quem) —Mas olha! Olha!
DÁLIA (agarrando o velho) —Papai,
escuta!
APRÍGIO (urrando) —Onde está o canalha
do meu genro?
DÁLIA (recuando como diante de uma
blasfêmia) —O quê?
APRÍGIO (mais forte) —O canalha de meu
genro!
DÁLIA (ressentida) —Arandir não é canalha.
APRÍGIO (ofegante e sem completar)
—Você ainda!
DÁLIA —O senhor não! Não pode chamar!
APRÍGIO (triunfante) — Chamo! Posso
chamar! Perfeitamente! Um
canalha que. Se esconde e larga a
mulher! Dá o fora, a mulher
que se dane! E tudo por quê? Porque
esse pulha!
DÁLIA (quase sem voz) —Não, papai,
não!
APRÍGIO — Esse pulha. Na minha frente.
Nem respeitou a minha
presença. Na minha frente, sim! Na
frente de toda a cidade. Toda
a cidade estava lá, vendo, espiando!
(exultante e feroz) E ele
beijou na boca um homem! Por isso,
Selminha. Selminha foi
presa!
DÁLIA —Papai, o senhor não entende!
APRÍGIO (estrebuchando) —Um genro que!
(Dália atraca-se com o pai)
DÁLIA (desesperada) —Ouve, papai.
Arandir explicou!
APRÍGIO (violento e cortante) —Mentira!
DÁLIA —Conheço, papai! E Arandir,
olha. Se fez isso. Papai, escuta. Fez
isso porque. Teve pena! Foi a
caridade. Arandir tem um coração,
papai!
APRÍGIO (como se desse cusparada)
—Humilhou a minha filha.
DÁLIA — E o rapaz antes de morrer. Ele
não podia recusar. Antes de
morrer, o rapaz pediu o beijo. Antes
de morrer.
APRÍGIO (agarra a filha. Está
sinistramente divertido) —Antes de morrer?
DÁLIA —Pediu.
APRÍGIO (com súbita energia) —Agora
você vai me ouvir.
DÁLIA —Papai, eu!
APRÍGIO (desesperado) — Cala a boca!
(muda de tom e falando com súbita
ferocidade) Eu estava junto de meu
genro. Quando ele se abaixou,
eu estava ao lado. Juntinho, ao lado.
E vi e ouvi tudo. (baixo e
violento) Olha! Ninguém pediu beijo!
(radiante) O rapaz já estava
morto!
DÁLIA (quase sem voz e num espanto
brutal) —Morto?
APRÍGIO — Morto. Meu genro te contou
que. Mentira! O rapaz não disse
uma palavra. Estava morto. De olhos
abertos e morto.
DÁLIA (ainda sem voz) —Não acredito.
APRÍGIO (exultante) —Meu genro mentiu
pra ti e pra Selminha.
DÁLIA (cara a cara com o pai) —Arandir
não mente!
APRÍGIO —Beijou porque quis e não era
um desconhecido. (agarra a filha
pelos dois braços. Fala cara com cara)
Eram amantes! (pausa)
DÁLIA (sussurrando) —Não! Não!
APRÍGIO (triunfal) — Amantes! (Dália
desprende-se com inesperada
violência)
DÁLIA (com súbita ferocidade) —Papai,
descobri o seu segredo.
APRÍGIO (realmente em pânico) — Que
segredo!? (rápido, segura a filha
pelo pulso)
DÁLIA —Descobri!
APRÍGIO (desatinado) — Não tenho
segredo nenhum! (com um esgar de
choro) —Nem admito. Ouviu? Nem admito!
DÁLIA (cruel e lenta) —Quer que eu
diga?
APRÍGIO (num berro) —Cala essa boca!
(muda de tom. Quase sem voz) Ou,
então, diz. Pode dizer. Se você sabe,
diz. (com a voz estrangulada)
Qual é o meu segredo?
DÁLIA (lenta e má) —O senhor não gosta
de Selminha como pai.
APRÍGIO (assombrado) —Como o quê?
DÁLIA (hirta) — Gosta como. É amor.
Amor de homem por mulher.
(diante da afirmativa de Dália, o
velho tem uma reação que, de
momento, o espectador não vai
compreender. Essa reação é de uma
euforia brusca. Total, sem nenhuma
motivação aparente)
APRÍGIO (começando a rir) — Amor de
homem por mulher? E é esse o
segredo? (repete, recuando o espanto
para a filha) Meu segredo é
esse?
DÁLIA (esganiçando a voz, num
frenético desespero infantil) — Por isso o
senhor odeia Arandir!
APRÍGIO (na sua euforia) — Pensei que.
(abrindo o riso) Mas quem sabe?
Talvez você tenha. (muda de tom, com
uma seriedade divertida)
Realmente, quando uma filha se casa, o
pai é um pouco traído.
Não deixa de ser traído. O sujeito
cria a filha para que um
miserável venha e. (muda de tom,
novamente, com uma ferocidade
jocunda) Em certo sentido, Selminha
cometeu um adultério
contra mim! (numa gargalhada selvagem
e canalha, que ninguém
entende) Boa! boa! (termina a cena com
as gargalhadas do pai e os
soluços da filha)
(Trevas. Luz no quarto de Amado
Ribeiro. O repórter está sem paletó com a fralda da
camisa para fora das calças. Empunha
uma garrafa de cerveja. De vez em quando bebe
pelo gargalo com uma sede feliz. O
repórter está, na melhor das hipóteses, semibêbado.)
AMADO — Quem? Quem? Falar comigo?
Olha! Manda subir. Sobe,
sobe!... (Aprígio entra)
AMADO (incerto) —O senhor é?
APRÍGIO (formal) —O sogro de.
AMADO — O sogro, exatamente. Eu estava
reconhecendo. Graças a Deus,
sou bom fisionomista.
APRÍGIO (com uma grave amabilidade) —
Boa noite. (Amado faz um gesto
circular, que abrange todo o quarto)
AMADO —Desculpe a esculhambação. O
quarto está uma bagunça.
APRÍGIO —Absolutamente.
AMADO — Estou safado da vida. Imagine
que a arrumadeira, uma preta
gorda. (baixo e sórdido) Emprenhou.
Ela faz aborto em si mesma.
Com talo de mamona. (com fina malícia)
Não deixa de ser uma
solução. (muda de tom) Mas parece que,
desta vez, houve
perfuração. Perfuração. Está morre,
não morre. Vai morrer.
(pigarreando e com certo quê de
culpado) Mas olha cá: — eu não
tenho nada com o peixe. O filho não é
meu! (muda de tom, um
pouco perturbado) Vamos nós. Qual é o
drama?
APRÍGIO —Seu Amado, eu desejava,
aliás.
AMADO —É sobre o beijo do asfalto?
APRÍGIO (incerto) —Propriamente.
AMADO — Meu amigo, com licença. Um
momento. O senhor veio me
cantar?
APRÍGIO (perturbado) —Mas cavalheiro!
AMADO —Veio me cantar. Um momento.
Claro. Veio me cantar. E eu não
quero. Em absoluto. Meu amigo, eu sou
batata, entende? E não
me vendo!
APRÍGIO —O senhor não me entendeu.
AMADO —Sou macaco velho!
APRÍGIO (sôfrego) — Queria apenas,
entende? Ter uma conversa. Uma
conversa a propósito de...
AMADO — Escuta, nossa amizade, escuta!
Fala um de cada vez. Essa
conversa, é velha pra chuchu! Mas
olha: — dinheiro não me
compra.
APRÍGIO (incisivo) —Nem eu, ora!
AMADO Com licença. O senhor está aqui
por causa de seu genro e de sua
filha. Batata! Mas escuta! A única
coisa que me compra é mulher!
(faz o adendo rápido e incisivo) E
magra!
APRÍGIO —Seu Amado.
AMADO (no seu deslumbramento erótico)
— As magras! As magras.
(retifica) Sem alusão à sua filha.
(com uma amabilidade obscena
de bêbado) Magrinha, sua filha. (muda
de tom) Vou lhe contar
uma passagem. Eu tive uma dona, uma
cara, nem sei que fim
levou. (novamente, exultante) O corpo
de sua filha, direitinho.
Sem barriga nenhuma. (com um riso vil)
Na cama, era bárbara!
(ri) Subia pelas paredes assim como
uma lagartixa profissional!
Magrinha, ossuda!
APRÍGIO (com surda irritação) —O
senhor quer me ouvir?
AMADO —Como é mesmo sua graça?
APRÍGIO —Aprígio.
AMADO —Aprígio, agora é tarde! Tarde!
APRÍGIO —Mas eu ainda não disse nada!
Eu queria, justamente.
AMADO — O senhor vai dizer que é
mentira. Que é uma mistificação
colossal, não sei o que lá. Não
adianta. O jornal está rodando.
Rodando. Tem uma manchete do tamanho
de um bonde. Assim:
—“O Beijo no Asfalto foi crime!
Crime!”
APRÍGIO (apavorado) —Crime?
AMADO — Crime! E eu provo! Quer dizer,
sei lá se provo, nem me
interessa. Mas a manchete está lá, com
todas as letras: —
CRIME!
APRÍGIO —Mas eu não entendo!
AMADO (exultante e feroz) — Aprígio,
você não me compra. Pode me
cantar. Me canta! Canta! (rindo,
feliz) Eu não me vendo! (muda de
tom) Eu botei que. Presta atenção. O
negócio é bem-bolado pra
chuchu! Botei que teu genro esbarrou
no rapaz. (triunfante) Mas
não esbarrou! Aí é que está. Não
esbarrou. (lento e taxativo) Teu
genro empurrou o rapaz, o amante,
debaixo do lotação.
Assassinato. Ou não é? (maravilhado)
Aprígio, a pederastia faz
vender jornal pra burro! Tiramos,
hoje, está rodando, trezentos
mil exemplares! Crime, batata!
APRÍGIO —Tem certeza?
AMADO —Ou duvida?
APRÍGIO (mais incisivo) —Tem certeza?
AMADO (sórdido) — São outros
quinhentos! Sei lá! Certeza,
propriamente. A única coisa que sei é
que estou vendendo jornal
como água. Pra chuchu.
APRÍGIO (saturado de tanta miséria)
—Já vou.
AMADO (fazendo uma insinuação evidente
de miserável) —Vem cá. Escuta
aqui. Sabe que. Sinceramente. Se eu
fosse você. Um pai. Se
tivesse uma filha e minha filha
casasse com um cara assim como
o. Entende? Palavra de honra! Dava-lhe
um tiro na cara!
APRÍGIO —Você quer vender mais jornal?
AMADO (com a sua seriedade de bêbado)
— Fora de brincadeira. Não é
piada. Sério. E olha. A absolvição
seria a maior barbada. Nenhum
juiz te condenaria, nenhum!
(caricioso) Escuta, Aprígio. O
Arandir não é homem pra. Não é homem
pra tua filha. Ela é
magra e tão sem. Sem barriga. Um certo
histerismo na mulher. E
d. Selminha. (enfático) Esse cara não
aguenta o repuxo com tua
filha.
APRÍGIO (desesperado de ódio) — Bêbado
imundo! (Aprígio abandona o
quarto, como se fugisse. Sempre com a
garrafa na mão, Amado
avança cambaleante)
AMADO — Vem cá, seu! Vem cá! (vendo o
outro sumir) Filho da. (rindo
surdo) Seu bêbado. Bêbado e pau de
arara. (Amado tem um súbito
rompante triunfal)
AMADO (num berro) — Mas parei a
cidade! Só se fala do “Beijo no
Asfalto”! Eles têm que respeitar! Têm
que respeitar! Eu não dou
bola! Não dou pelota! (Amado parte o
grito num soluço)
(Trevas. Luz na casa de Selminha.
Dália vai entrando. Sente-se em tudo o que Selminha
diz ou faz, o trauma da polícia. Ela,
que está lendo um jornal, ergue-se ao ver Dália.)
SELMINHA (sempre em tensão) —Quem era?
DÁLIA (sôfrega) —Arandir!
SELMINHA (frenética e esganiçando) —E
só telefona agora?
DÁLIA (querendo acalmá-la) —Selminha,
você está nervosa.
SELMINHA (anda de um lado para outro
numa angústia de insana e na sua
cólera) —Passa uma noite e um dia sem
telefonar!
DÁLIA (gritando também) —O telefone
aqui está desligado!
SELMINHA (mais contida) —Fala!
DÁLIA —Arandir telefonou.
SELMINHA (varada de arrepios)
—Arandir.
DÁLIA —Escuta. Está num hotel.
SELMINHA (repetindo por um mecanismo
de angústia) —Hotel?
DÁLIA (sôfrega) —Mandou dizer que.
SELMINHA (com brusca irritação) —Mas
que hotel?
DÁLIA —E te espera lá. Disse que.
SELMINHA —Onde?
DÁLIA —O endereço. Eu tomei nota. É
no. (sente-se, pouco a pouco e de
uma maneira cada vez mais nítida, que
Selminha não quer ir)
SELMINHA (para si mesma com voz surda)
—E quer que eu vá lá!
DÁLIA — Arandir pediu. Olha, Selminha,
pediu que você fosse
imediatamente. Agora. Fosse agora. O
endereço. Está escondido
num hotel. A rua é.
SELMINHA (cortando) — Dália, escuta. É
claro que eu. Mas todo o mundo!
Todo o mundo acha, tem certeza.
Certeza! Que os dois eram
amantes!
DÁLIA (com desprezo) —É uma gente que
nem sei!
SELMINHA (na sua obsessão) —Amantes!
DÁLIA — Mas, o Arandir mandou dizer
que o hotel. O hotel é pertinho
do Largo de São Francisco. Olha.
Escolheu, de propósito, está
ouvindo, Selminha? Selminha, ouve,
escolheu um hotel
ordinário, porque dá menos na vista.
Agora vai, Selminha, vai.
SELMINHA —Vou.
DÁLIA (sôfrega) —Apanha um táxi.
(Selminha não se mexe)
SELMINHA (com súbita revolta) —E se a
polícia me seguir?
DÁLIA (com irritação) —Arandir está
esperando!
SELMINHA (com certa malignidade) —E
daí?
DÁLIA —Você é a mulher!
SELMINHA (gritando) —Mas se eu for
presa. (desatando a chorar) Você quer
que eu seja presa. (com desespero) E
que façam outra vez aquilo
comigo, outra vez?
DÁLIA (conciliatória) —Selminha!
SELMINHA (trincando os dentes) — Nunca
pensei que. Me puseram nua!
Fiquei nua pra dois sujeitos!
DÁLIA —Mas não vá contar isso pra o
Arandir!
SELMINHA — E o miserável, o cachorro
ainda me disse que me queimava o
seio com o cigarro! (soluçando) Nua!
Nua! (Dália agarra a irmã
pelos dois braços com súbita energia)
DÁLIA —Você vai?
SELMINHA (ofegante e caindo em si)
—Vou. Claro que vou. Eu disse que ia e
vou. Mas olha. (muda de tom) E se ele
quiser me beijar?
DÁLIA (sem entender) —Ora, Selminha!
SELMINHA (com angústia) — Vai me
beijar e eu! (continua sem coerência)
Quando a viúva disse, cara a cara
comigo, que tinham tomado
banho juntos.
DÁLIA (com violência) —Nem se
conheciam!
SELMINHA (sem ouvi-la e só escutando a
própria voz interior) — Uma coisa
que me dá vontade de morrer. Como é
que um homem pode
desejar outro homem. (veemente e
voltando-se para a irmã) Dália,
você entende? Entende eu? Sei que,
agora, quando um homem
olhar para o meu marido. Vou
desconfiar de qualquer um, Dália!
(com uma brusca irritação) Aliás,
Arandir tem certas coisas.
Certas delicadezas! E outra que eu
nunca disse a ninguém. Não
disse por vergonha. (com mais
veemência) Mas você sabe que a
primeira mulher que Arandir conheceu
fui eu. Acho isso tão!
Casou-se tão virgem como eu, Dália!
DÁLIA —Arandir só tem você!
SELMINHA (numa explosão) — Se eu for,
já sei. Ele vai querer beijar. Na
certa. Eu não quero um beijo sabendo
que. (hirta de nojo) O beijo
do meu marido ainda tem a saliva de
outro homem!
(Trevas. Quarto de hotel ordinário,
onde Arandir está hospedado. Jornais pelo chão.
Supõe-se que Dália acaba de chegar.
Arandir segura a cunhada pelos dois braços.)
ARANDIR (na sua angústia) —Selminha
não veio?
DÁLIA (sem saber como dar a notícia)
—Arandir, olha.
ARANDIR (fora de si) —Não vem?
DÁLIA (meio atônita e diante do
desespero iminente) —Eu acho que.
ARANDIR (violentíssimo) — Minha mulher
não vem? Não quer vir? Fala!
(muda de tom) Olha pra mim. (com voz
súplice, entre o desespero e
a esperança) Ela não vem? Diz pra mim?
Não vem?
DÁLIA (a medo) —Espera.
ARANDIR (com violência) —Dália, eu
preciso de minha mulher. Preciso. O
jornal me chama de assassino.
Assassino, Dália! (com um esgar de
choro) Você acha que eu sou assassino?
DÁLIA —Arandir, eu só acredito em
você.
ARANDIR —Mas eu preciso de Selminha!
Vai, Dália e diz à Selminha. Pede.
Traz Selminha. Não tenho ninguém.
Estou só.
DÁLIA —E eu?
ARANDIR (brutal) —Ninguém! Olha o que
o jornal diz. Está aqui. (Arandir
apanha o jornal)
DÁLIA (exasperada) —Joga fora esse
jornal! (Arandir atira fora o jornal)
ARANDIR —Diz lá que eu empurrei o
rapaz. Como se eu. E não entendo a
viúva. (falando para si mesmo) Será
que esbarrei no rapaz? Sem
querer, claro. Mas, nem isso. Tenho
certeza, Dália. Não toquei no
rapaz. (memorizando para si mesmo) Uma
senhora vinha em
sentido contrário. O rapaz estava em
cima do meio-fio. Aqui. Eu
me desviei da senhora. Mas não cheguei
a tocar no rapaz. (num
repente) Dália, vai chamar Selminha! É
minha mulher! Quero
Selminha aqui!
DÁLIA (muito doce) —Não vem.
ARANDIR (com um mínimo de voz) —Quem?
DÁLIA —Selminha.
ARANDIR —Não vem.
DÁLIA (mais incisiva) — Arandir,
Selminha mandou dizer. Não vem.
(Arandir agarra a cunhada pelos dois
braços)
ARANDIR (estupefato) —Nunca mais?
DÁLIA (com pena e medo) —Arandir,
olha.
ARANDIR (violento e gritando) — Responde!
(estrangulando a voz) Nunca
mais?
DÁLIA (chorando) — Nunca mais. (Dália
desprende-se. Afasta-se
ligeiramente do cunhado)
ARANDIR (repetindo para si mesmo) —
Nunca mais. Quer dizer que. Me
chamam de assassino e. (com súbita
ira) Eu sei o que “eles”
querem, esses cretinos! (bate no peito
com a mão aberta) Querem
que eu duvide de mim mesmo! Querem que
eu duvide de um
beijo que. (baixo e atônito, para a
cunhada) Eu não dormi, Dália,
não dormi. Passei a noite em claro! Vi
amanhecer. (com fundo
sentimento) Só pensando no beijo do
asfalto! (com mais violência)
Perguntei a mim mesmo, a mim, mil
vezes: — se entrasse aqui,
agora, um homem. Um homem. E. (numa
espécie de uivo) Não!
Nunca! Eu não beijaria na boca um
homem que. (Arandir passa
as costas da mão na própria boca, com
um nojo feroz) Eu não
beijaria um homem que não estivesse
morrendo! Morrendo aos
meus pés! Beijei porque! Alguém
morria! “Eles” não percebem
que alguém morria?
DÁLIA (muito doce e muito triste) —Eu
vim para.
ARANDIR (sem ouvi-la) —Mas eu acredito
em mim! (brutal sem transição)
Por que Selminha não vem?
DÁLIA —Não gosta de você!
ARANDIR (com uma certeza cândida e
fanática) — Gosta! Ama! (sôfrego e
ingênuo) É um amor de infância! De
infância! Eu era menino,
menino. E ela garotinha. Já gostava de
mim. E eu dela. Dália, você
não entende, ninguém entende. Selminha
só teve um namorado,
que fui eu. Só, Dália. E eu nunca,
nunca. Deus me cegue se.
Nunca tive outra namorada. Só gostei
de Selminha.
DÁLIA —Selminha não quer mais ser tua
mulher!
ARANDIR (sem entender) —Não quer?
DÁLIA —Arandir, escuta. Selminha me
disse. Ouve, meu bem.
ARANDIR (estrangulado) —Selminha tem
que!
DÁLIA (violenta) — Selminha disse que
você e o rapaz eram amantes.
Amantes!
ARANDIR (numa alucinação) — Dália, faz
o seguinte. Olha, o seguinte: —
diz a Selminha. (violento) Diz que, em
toda minha vida, a única
coisa que se salva é o beijo no
asfalto. Pela primeira vez. Dália,
escuta! Pela primeira vez, na vida!
Por um momento, eu me senti
bom! (furioso) Eu me senti quase, nem
sei! Escuta, escuta!
Quando eu te vi no banheiro, eu não
fui bom, entende? Desejei
você. Naquele momento, você devia ser
a irmã nua. E eu desejei.
Saí logo, mas desejei a cunhada. Na
Praça da Bandeira, não. Lá, eu
fui bom. É lindo! É lindo, eles não
entendem. Lindo beijar quem
está morrendo! (grita) Eu não me
arrependo! Eu não me
arrependo!
DÁLIA — Selminha te odeia! (Arandir
volta para a cunhada,
cambaleante. Passa a mão na boca
encharcada)
ARANDIR (com voz estrangulada) —
Odeia. (muda de tom) Por isso é que
recusou. Recusou o meu beijo. Eu quis
beijar e ela negou. Negou
a boca. Não quis o meu beijo.
DÁLIA —Eu quero!
ARANDIR (atônito) —Você?
DÁLIA (sofrida) —Selminha não te
beija, mas eu.
ARANDIR (contido) — Você é uma
criança. (Dália aperta entre as mãos o
rosto de Arandir)
ARANDIR —Dália. (Dália beija-o, de
leve, nos lábios)
DÁLIA —Te beijei.
ARANDIR (maravilhado) —Menina!
DÁLIA (quase sem voz) —Agora me beija.
Você. Beija.
ARANDIR (desprende-se com violência)
—Eu amo Selminha!
DÁLIA (desesperada) —Eu me ofereço e.
Selminha não veio e eu vim.
ARANDIR —Dália, eu mato tua irmã. Amo
tanto que. (muda de tom) — Eu
ia pedir. Pedir à Selminha para morrer
comigo.
DÁLIA —Morrer?
ARANDIR (desesperado) —Eu e Selminha!
Mas ela não veio!
DÁLIA (agarra o cunhado. Quase boca
com boca, sôfrega) —Eu morreria.
ARANDIR —Comigo?
DÁLIA (selvagem) —Contigo! Nós dois!
Contigo! Eu te amo!
ARANDIR (num sopro) —Morrer.
DÁLIA (feroz) — Eu não te julgaria
nunca. Eu te perdoaria sempre!
Acredito em ti. Só eu acredito em ti.
ARANDIR (violento) —Oh, graças!
graças!
DÁLIA (macia, insidiosa, com uma leve,
muito leve malignidade) — Diz
pra mim. Eu não te julgo. Não te
condeno. Responde: — Você o
amava?
ARANDIR (atônito) —O quê?
DÁLIA (numa espécie de histeria) —
Amava o rapaz? Pode dizer. Escuta.
Você era amante do rapaz? Do
atropelado?
ARANDIR (recuando) —Amante?
DÁLIA — Querido! Pode dizer a mim. A
mim, pode dizer. Confessar.
Escuta, escuta! Meu bem, eu não sou
como Selminha. Selminha
não compreende, nem aceita. Eu aceito.
Tudo! Fala. Eu não
mudo. Serei a mesma! Fala! (Dália quer
abraçar-se ao cunhado.
Arandir desprende-se com violência)
ARANDIR (gritando) — Você é como os
outros. Igual aos outros. Não
acredita em mim. Pensa que eu. Saia
daqui. (mais forte num berro
de louco) —Saia! (Aprígio entra)
APRÍGIO — Saia, Dália! (Dália abandona
o quarto, correndo, em desespero.
Sogro e genro, face a face) Vim aqui
para.
ARANDIR (para o sogro, quase chorando)
—Está satisfeito?
APRÍGIO —Vim aqui.
ARANDIR (na sua cólera) — Está
satisfeito? O senhor é um dos
responsáveis. Eu acho que é o senhor.
O senhor que está por
trás...
APRÍGIO —Quem sabe?
ARANDIR — Por trás desse repórter. O
senhor teve a coragem, a coragem
de. Ou pensa que eu não sei? Selminha
me contou. Contou tudo!
O senhor fez insinuações. Insinuações!
A meu respeito!
APRÍGIO —Você quer me.
ARANDIR (sem ouvi-lo) — O senhor fez
tudo! Tudo pra me separar de
Selminha!
APRÍGIO —Posso falar?
ARANDIR (erguendo a voz) —O senhor não
queria o nosso casamento!
APRÍGIO (violento) — Escuta! Vim aqui
saber! Escuta! Você conhecia esse
rapaz?
ARANDIR (desesperado) —Nunca vi.
APRÍGIO —Era um desconhecido?
ARANDIR —Juro! Por tudo que há de
mais! Que nunca, nunca!
APRÍGIO —Mentira!
ARANDIR (desesperado) —Vi pela
primeira vez!
APRÍGIO — Cínico! (muda de tom, com
uma ferocidade) Escuta! Você
conhecia o rapaz. Conhecia! Eram
amantes! E você matou.
Empurrou o rapaz!
ARANDIR (violento) —Deus sabe!
APRÍGIO — Eu não acredito em você.
Ninguém acredita. Os jornais, as
rádios! Não há uma pessoa, uma única,
em toda a cidade.
Ninguém!
ARANDIR (com a voz estrangulada) —
Ninguém acredita, mas eu! Eu
acredito, acredito em mim!
APRÍGIO —Você, olha!
ARANDIR —Selminha há de acreditar!
APRÍGIO (fora de si) — Cala a boca!
(muda de tom) Eu te perdoaria tudo!
Eu perdoaria o casamento. Escuta!
Ainda agora, eu estava na
porta ouvindo. Ouvi tudo. Você
tentando seduzir a minha filha
menor!
ARANDIR —Nunca!
APRÍGIO — Mas eu perdoaria, ainda. Eu
perdoaria que você fosse espiar o
banho da cunhada. Você quis ver a
cunhada nua.
ARANDIR —Mentira!
APRÍGIO (ofegante) — Eu perdoaria
tudo. (mais violento) Só não perdoo o
beijo no asfalto. Só não perdoo o
beijo que você deu na boca de
um homem!
ARANDIR (para si mesmo) —Selminha!
APRÍGIO (muda de tom, suplicante) —
Pela última vez, diz! Eu preciso
saber! Quero a verdade! A verdade!
Vocês eram amantes? (sem
esperar a resposta, furioso) Mas não
responda. Eu não acredito.
Nunca, nunca, eu acreditarei. (numa
espécie de uivo) Ninguém
acredita!
ARANDIR —Vou buscar minha mulher.
(Aprígio recua, puxando o revólver)
APRÍGIO (apontando) —Não se mexa!
Fique onde está!
ARANDIR (atônito) —O senhor vai.
APRÍGIO — Você era o único homem que
não podia casar com a minha
filha! O único!
ARANDIR (atônito e quase sem voz) —O
senhor me odeia porque. Deseja a
própria filha. É paixão. Carne. Tem
ciúmes de Selminha.
APRÍGIO (num berro) — De você!
(estrangulando a voz) Não de minha
filha. Ciúmes de você. Tenho! Sempre.
Desde o teu namoro, que
eu não digo o teu nome. Jurei a mim
mesmo que só diria teu
nome a teu cadáver. Quero que você
morra sabendo. O meu ódio
é amor. Por que beijaste um homem na
boca? Mas eu direi o teu
nome. Direi teu nome a teu cadáver.
(Aprígio atira, a primeira
vez. Arandir cai de joelhos. Na queda,
puxa uma folha de jornal,
que estava aberta na cama.
Torcendo-se, abre o jornal, como uma
espécie de escudo ou de bandeira.
Aprígio atira, novamente,
varando o papel impresso. Num espasmo
de dor, Arandir rasga a
folha. E tomba, enrolando-se no
jornal. Assim morre)
APRÍGIO Arandir! (mais forte) Arandir!
(um último canto) Arandir!
(Cai a luz, em resistência, sobre o
cadáver de Arandir. Trevas.)
FIM DO TERCEIRO E ÚLTIMO ATO
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