PERSONAGENS
ALICE • ARETUSA • EVELYN • RENATO • BRUNO.
PROFESSOR • BERTA • ALICE MENINA • ARETUSA
MENINA • EVELYN MENINA • RENATO MENINO•
MARIDO DE ALICE • FILHO DE ALICE • PADRE •
ENFERMEIRO DE CORÁLIA • MÃE DE ALICE • CORÁLIA
(Nos flash-backs, podem ou não ser usados atores, mais jovens, para as
mesmas personagens. De qualquer maneira, o Professor e Berta serão sempre
representados pelos mesmos atores — eles sempre foram velhos —,talvez com
pequenas mudanças de postura. As figuras do Padre e doEnfermeiro podem ser
vividas pelos mesmos atores que fazem o Marido e o Filho de Alice. Para as
rápidas aparições de Corália e da Mãe de Alice, podem ser usados bonecos ou,
bem caracterizadas, outras atrizes.)
CENÁRIO
(Tudo se passa durante um fim de semana — tarde e noite de sábado,
o dia todo de domingo e a manhã de segunda-feira —, quando Alice vai
visitar
a família. Na casa da família, é indispensável uma grande mesa onde são
feitas as refeições. O resto se passa em vários planos, no presente ou
no
passado, caracterizados por um ou outro elemento — como uma poltrona
antiga (no quarto do Professor), uma penteadeira (no quarto de Evelyn,),
e
assim por diante. Deve haver também um outro Plano — que chamaremos de
Inconsciente/Memória —, onde acontecem certas alucinações ou lembranças
do passado. A idéia é de que uma cena interpenetre a outra — isto é,
quando
uma termina, a próxima já começou —, sem pausa, sendo a mudança indicada
pela luz e a troca de planos.)
I ATO
CENA 1
ALICE, MARIDO e FILHO
Na casa de Alice. É sábado, por volta do meio-dia. Tudo é muito
arrumado e limpo.
A mesa está posta. O almoço, terminando.
ALICE— Deixei pronto o almoço de amanhã. Está na geladeira, é só
esquentar. Acho que daria menos trabalho se vocês comessem num
restaurante. (Dá de ombros. Para o marido, com certo carinho coquete.)
Mas
você só gosta da comida que eu faço... (Para o filho.) E o seu irmão,
onde
anda?
FILHO — Está no clube. É sábado. Só vem de tardezinha.
ALICE (Reprovadora e maternal.) - E claro que só vai comer um
sanduíche, não é? Sanduíche não alimenta. Sanduíche, refrigerante, essas
porcarias que vocês comem por aí.
MARIDO (Interrompendo.) - Você tem mesmo que ir?
ALICE (Um pouco brusca.) — Tenho. Aretusa insistiu tanto.
MARIDO (Com ironia, sacudindo a cabeça.) — Aretusa... Essa sua
cunhada... ALICE (Ignorando.) — Faz tantos meses que não vejo meu pai. E
agora apareceu esse problema com Evelyn.
FILHO - O que é que há com tia Evelyn?
ALICE (Preocupada.) — Ela está doente. Muito doente. Parece que
é.... qualquer coisa mental, não sei bem.
MARIDO - Evelyn com um problema mental? Sua irmã é a mulher mais
sensata que conheço.
ALICE - Eu sei, eu sei. Mas depois que Cristiano morreu... Ela não se
conforma.
FILHO — Mas será que nós temos o direito de querer que ela se cure?
ALICE (Sem compreender.) - O que?
FILHO — Isso mesmo, mãe. Será que não seria pior para ela enfrentar
a realidade de Cristiano ter morrido?
MARIDO (Ignorando o espanto de Alice.) — Passa a água?
FILHO (Levantando-se.) - Bom, eu já vou indo. Dá um beijo em todos
lá. (beija Alice distraidamente, sem afeto.) Boa viagem, velha. (Sai. O
Marido
apanha os óculos e, sem sair da mesa, começa a ler o jornal. Alice fica
em
silêncio por um momento, meio confusa.)
ALICE (Pensativa.) — O que será que ele quis dizer com isso?
MARIDO (Distraído.) - O que?
ALICE — Que... que a realidade pode não ser o melhor? Pode não ser
preferível à normalidade?
MARIDO - Não está na hora do seu ônibus?
ALICE (Levantando-se.) - É. E melhor eu ir indo também. (Olha o
relógio.) Não vai dar nem tempo de lavar os pratos.
MARIDO — Pode deixar. Eu dou um jeito.
ALICE (Apanha a bolsa e uma sacola de viagem a um canto. Remexe
na bolsa, conferindo o dinheiro e a passagem de ônibus.) — Será que não
esqueci nada? (Olha em volta devagar, como se refletisse.) Você não acha
que
um dia a gente podia mandar colocar um espelho grande aqui na sala?
MARIDO (Baixa o jornal e olha-a por cima dos óculos admirado.) -
Espelho grande? Para que?
ALICE (Arrependida de ter falado.) - Nada. É bobagem minha. Eu li
numa revista que dá a impressão de mais espaço. A sala é pequena.
MARIDO (Voltando a ler.) — A sala é ótima assim.
ALICE (Curvando-separa beijar o marido.) — Claro, claro. Você tem
razão. A sala é ótima. (Encaminhando-se para aporta.) Segunda, então,
estou
de volta.
MARIDO (Sem levantar os olhos do jornal.) — Boa viagem. Cuide-se
direito. Você não está acostumada a viajar sozinha.
CENA 2
ALICE, BERTA, A MÃE e ALICE MENINA
Alice está parada num ponto que deve ser a parada de ônibus.
ALICE (Dirige-se ao público, enquanto acende um foco no marido que
lê o jornal.)
Meu marido. Desde o começo a gente se acostumou a não ter grandes
ardores, eu preferia assim. Achava meio esquisito aquele homem um pouco
gordo, calvo, dizendo e fazendo coisas desajeitadas e brutais. Agora me
procura raramente e sem emoção. E eu prefiro vê-lo ao meu lado, de
chinelo,
lendo jornal, sem imaginar sequer quem é a sua verdadeira mulher...
(Levando
a mão aos cabelos.) Esqueci de colocar o meu perfume. (Olha o relógio,
depois
dá de ombros e tira da bolsa um pequeno espelho. Começa a examinar o
rosto
com ar crítico. Enquanto isso, acende-se a luz no plano do
Inconsciente/Memória, onde estão Alice Menina, Berta e, dentro de um
caixão
de defunto uma figura de rosto disforme e barriga enorme, que pode ser
uma
atriz ou uma boneca).
ALICE MENINA (Aproxima-se do caixão, distraída, talvez pulando
corda, cantarolando. De repente para e chama.) — Mamãe? Mamãe, onde é
que você está? Mamãe, não se esconda de mim. Sou eu, Alice. (Acende-se a
luz sobre o caixão. Ela recua, assustada. Depois torna a se aproximar e
tenta
colocar a figura no colo.) Mamãe, o que é que você tem? Você está
doente?
Pode deixar que eu cuido de você. Fala comigo, mãezinha!
BERTA (imóvel.) - Ela não vai responder. Ela não pode falar. Ela só
pode chorar.
ALICE MENINA (Gritando.) - Não é verdade, Berta! Você está
mentindo!
BERTA — Não estou mentindo. Você não vê como ela está inchada?
Olha só a barriga dela, Alice.
ALICE MENINA — Eu não quero olhar. (Para o caixão.) Mãezinha, fala
comigo.
BERTA — Todos os dias vem um médico e tira água da barriga dela
com uma agulha enorme. Uma agulha deste tamanho.
ALICE MENINA ( Vai-se afastando enquanto Berta repete as mesmas
coisas. Apanha um espelho pequeno, igual ao de Alice adulta e olha-se.
Fala
para si mesma, como se estivesse hipnotizada.) — Alice, Alice você é má.
Você é muito má. Você é louca, é suja. Você mente, Alice. Por isso está
sempre de castigo. Por isso leva esses tapas. Por isso ninguém gosta de
você.
(Começa a sorrir como uma mulher adulta e repete.) Ninguém gosta de
você,
Alice.
CENA 3
ALICE, ALICE MENINA e RENATO MENINO
No jardim de entrada da casa da família. Alice Adulta aproxima-se do
lugar onde resta o tronco de uma grande árvore cortada. A luz acende-se
sobre
o tronco, perto do qual brincam Alice Menina e Renato Menino. Renato
mexe
com pedaços de madeira, barbantes, facas, latas velhas. Alice Adulta
mergulha
nas sombras.
ALICE MENINA - Renato, vem brincar comigo.
RENATO MENINO - Agora não posso. Estou ocupado.
ALICE MENINA - O que é que você está fazendo?
RENATO MENINO (Com ódio.) - É uma arma secreta.
ALICE MENINA - Uma arma? Pra que?
RENATO MENINO (Hesitando.) - Para matar ele.
ALICE MENINA - Ele quem?
RENATO MENINO - O Professor.
ALICE MENINA - Não chama ele assim. Ele é seu pai. Você não pode
matar seu pai.
RENATO MENINO (Obstinado.) - Ele é seu pai também. Mas ele não é
meu pai.
Ele é o Professor.
ALICE MENINA (Assustada.) — Você vai preso, Renato!
RENATO MENINO - Que me importa. (Decidido.) Eu vou matar o
Professor com minha arma secreta. (A gravação de uma gargalhada
infantil,
estridente, corta a cena. A luz apaga sobre Alice Menina e Renato Menino
para
acender-se novamente sobre Alice Adulta. Ela está parada, a bolsa nas
mãos,
olhando para cima.)
CENA 4
ALICE e ARETUSA (Na entrada da casa da família, junto ao tronco
cortado da árvore.)
ARETUSA (Entrando, com um cigarro aceso, abraça Alice.) — Alice,
que bom que você veio! Há quanto tempo, não? (Afasta-se para vê-la
melhor.
Com uma ponta de ironia.) Mas você engordou, hein?
ALICE — (Sem se ofender, tentando ser natural, com certo carinho.) E
você continua com cheiro de cigarro. De cigarro e de jasmim. E eu, saí
tão
apressada que esqueci meu perfume. (Muda de tom, como se estivesse se
justificando.) Meu marido não pode vir. Coitado, ele trabalha demais.
Chega a
trazer serviço para casa no fim de semana.
ARETUSA (Displicente.) — Renato também não vem. Mas não é por
trabalhar demais, você sabe... (Rindo.) Ah, Alice, você é tão eficiente,
tão
trabalhadeira. E o seu irmão me saiu um grande folgado!
ALICE (Olhando com tristeza o tronco da árvore.) — Acho uma pena
Bruno ter mandado cortar esta árvore. Era um álamo tão bonito.
ARETUSA (Sem dar importância.) — Ele estava cheio de raízes.
Imagine que para arrancar o tronco teriam que tirar todas as lajes e
abrir um
buraco enorme.
ALICE (Triste.) — Ele está cheio de brotos.
ARETUSA — Qualquer dia acaba rachando as paredes da casa. Mas
por enquanto, você sabe, ninguém aqui tem cabeça para pensar nesse
problema. Berta é passa o dia todo arrancando os brotinhos.
ALICE (Preocupada.) - Aretusa, tem alguém dormindo no quarto do...
do menino?
ARETUSA - Não. Não tem ninguém, não. Evelyn conserva tudo como
quando ele estava vivo. Todo dia arruma as roupinhas dele sobre a cama.
Depois guarda, mais tarde tira outra vez.
ALICE (Intrigada.) — Mas tinha uma pessoa lá quando eu cheguei, eu
vi. Parecia uma criança, tinha um rosto pequeno. E me examinava.
ARETUSA (Um pouco irritada.) - Só pode ter sido aquele boneco
horroroso, lembra? Aquele palhaço que o Cristiano não largava nunca. Sua
irmã agora vive agarrada com ele. As vezes senta o palhaço na janela,
diz que
ele fica espiando a rua e conta tudo o que acontece por lá. Aonde vai,
leva o
boneco. (Preocupada.) Alice, corta temos que conseguir que ela ponha
essa
coisa no lixo. Não sei, tudo aqui ficou esquisito demais desde que o
menino
morreu.
CENA 5
No quarto de Evelyn. A luz sobre ela acendeu-se lentamente, enquanto
Aretusa ainda fala. Ela está parada, sozinha, com o boneco nos braços.
EVELYN (Dirigindo-se para o público.) — Evelyn levava Cristiano de
carro para a escola quando o acidente aconteceu. Chovia muito; talvez
tenham
derrapado o carro bateu num poste e ficou destruído. Evelyn não se
machucou
muito, mas Cristiano teve as duas pernas esmagadas. Depois de alguns
dias
precisaram amputá-las, uma depois da outra, logo abaixo do quadril.
Restou
apenas um pedaço de menino. Viveu ainda algumas semanas, mas não
resistiu. Ainda bem que na hora de encomendar o caixão calcularam o
tamanho dele como se as pernas ainda existissem. (Após a fala, a atriz,
já
como a personagem, apanha o Palhaço e começa a niná-lo, como se fosse
Cristiano.)
CENA 6
ALICE e ARETUSA
No quarto que pertencia a Cristiano. Alguns elementos — talvez um
móbile bem colorido, uma bicicleta, etc. — que caracterizem bem um
quarto de
criança.
ALICE (Arrumando uma das camas.) — Morte é uma coisa muito triste.
Ainda mais morte de criança. (Cansada.) Até o cheiro da casa mudou.
Agora
tem cheiro de umidade, mofo. Tudo fechado, tudo escuro. Evelyn era tão
caprichosa.
ARETUSA (Penalizada.) — E que ela anda doente. Bem doente.
Insistiu tanto no telefone para que eu viesse. Bruno não ajuda muito.
Ele é tão
apaixonado pela mulher que só pensa num jeito dela não sofrer mais
ainda. Dá
até pena de ver. E agora, francamente, deixa que ela fale cada bobagem...
(Como se revelasse algo importante.) Sabe, Alice, na verdade acho que
sua
irmã ainda não percebeu que o menino está morto.
ALICE (Meio distraída.) — É. Ela não aceita.
ARETUSA (Dura.) — Não é que ela não aceite. É diferente. Ela não
percebe. É muito mais grave.
ALICE (Abatida.) — Isso não é nada saudável.
ARETUSA — Saudável? Isso não é normal, Alice!
ALICE (Angustiada, mudando de assunto.) - Eles deviam mudar para
um apartamento, com papai e Berta. E menor, mais seguro, mais prático.
Dá
muito menos trabalho. O aluguel seria o mesmo. (Suspirando.) Casa só é
bom
quando tem criança.
ARETUSA (Mostrando uma mancha na perna.) — Está vendo isso
aqui? De manhã, quando cheguei, levei um tombo. Tropecei num carrinho de
plástico na sala. Faz meses que o menino morreu e as coisas dele
continuam
aparecendo em todos os cantos da casa.
ALICE (Impressionada.) — Que coisa, Aretusa.
ARETUSA (Um pouco cruel.) - O pior não é isso. Quando fui ver Evelyn
hoje de manhã, ela estava com aquele boneco no colo. Sabe qual é? O
Palhaço, aquele boneco que Cristiano adorava. Parece que nunca se separa
dele. (Em voz mais baixa.) Bruno me contou que às vezes ela diz que
Cristiano
passou a noite com os pés gelados.
ALICE (Abalada.) — Os pés? (Meio sem sentido, como se falasse para
si mesma.) Logo os pés... Não pode ser. Cortaram os pés dele, junto com
as
pernas. Eu fiquei tão impressionada, não podia parar de pensar nisso.
Mas
ainda bem que no caixão não se notava nada. Com aquele monte de flores,
nem se notava que o corpo terminava tão depressa. (Noutro tom.) O que é
que
nós vamos fazer agora, Aretusa?
ARETUSA (Dolorida.) — Não sei. Não sei lidar direito com as pessoas.
Nunca sei ajudar, só atrapalho. (Cúmplice.) Você sabe muito bem disso.
ALICE (Sonolenta, querendo mudar de assunto.) - Você já viu meu pai?
ARETUSA (Seca, numa espécie de censura.) - Claro. Logo que
cheguei, de manhã. E você sabe que venho vê-los seguidamente. Agora ele
deu para pedir comida no quarto. Não quer mais descer. Berta reclama, se
queixa, mas acaba levando. E ele fica lá, o tempo todo. Sozinho com seus
bichos.
ALICE — Meu Deus, mas ele continua com essa história?
ARETUSA - Continua. E cada vez pior.
ALICE — Mas o médico disse que poderia ser um problema de
circulação.
ARETUSA - O Professor diz que não. Que tem insetos no ouvido. Um
ninho de insetos.
ALICE (Ainda tentando mudar de assunto.) - E Evelyn... Pelo menos,
come direito?
ARETUSA - Quase nada. Feito um passarinho. Logo ela vai acordar e
você fala com ela. Mas não se assuste: Evelyn mudou muito. Envelheceu
tanto,
Alice. (Caminha até a janela e espia para fora.) Era tão bem disposta.
Nem
parece a mesma.
ALICE - O que é que você está olhando?
ARETUSA- Berta. Berta não pára de arrancar os brotos do álamo.
Crescem por toda a parte.
(Voltando-se, brusca.) Aquela árvore também não quer morrer.
CENA 7
ALICE MENINA e EVELYN MENINA
No Plano do Inconsciente/Memória.
EVELYN MENINA (Aproximando.se.) - Alice, vamos brincar de mãe e
filha?
ALICE MENINA — Vamos. Vem que eu embalo você. (Começa a
cantar uma cantiga de ninar enquanto embala Evelyn. Interrompe-se de
repente.) E eu? Quem é que vai ser a minha mãe?
EVELYN MENINA - Pode ser Renato. Por que é que você não pede
para ele?
ALICE MENINA - Renato não. Ele é menino. Menino não pode ser
mãe.
EVELYN MENINA - Então posso ser eu.
ALICE MENINA (Começa a chorar.) - Você também não. Você é muito
pequena
EVELYN MENINA (Com certa crueldade.) - Então já sei. Pode ser
Berta, ora! ALICE MENINA (Chorando.) - Berta não quero. Ela tem cheiro
de
cebola!
EVELYN MENINA (Começa a girar em torno de Alice, cantarolando e
batendo palmas.) — Alice é filha de Berta-tá-tá! Berta tem cheiro de
cebola-lá-
lá! Alice também tem! Cheiro de cebola-lá-lá!
CENA 8
BERTA e RENATO MENINO
No quarto de Berta. À medida em que a luz apaga sobre a cena
anterior, acende-se sobre Berta. Ela está sentada na cama, cercada de
revistas
coloridas, recortando figuras.
RENATO MENINO (Na porta.) Berta, posso entrar?
BERTA (Guardando apressada a tesoura, os recortes e as revistas.) —
O que é, menino? Será que não tenho um segundo de paz nesta casa?
RENATO MENINO (Entrando.) - O que é que você estava fazendo?
BERTA (Brusca.) — Nada. Não estava fazendo nada. Nada que te
interesse. O que é que você quer?
RENATO MENINO (Indeciso, encabulado.) - Você... Você quer brincar
comigo?
BERTA (Ríspida.) — E eu lá tenho tempo para brincadeiras? Vai
procurar alguém da sua idade.
RENATO MENINO (Persuasivo.) - Mas é só um pouquinho, você
deixa? (Aproxima-se.) Posso deitar a cabeça no seu colo? (Berta não
responde. Renato ajeita-se no colo dela.) Agora você passa a mão na
minha
cabeça. Assim, bem devagarinho. Eu te mostro como é. (Pega a mão de
Berta
e coloca sobre sua própria cabeça. Ela hesita, mas acaba fazendo o que
ele
pede.) Faz eu dormir, Berta. Como se você fosse minha mãe. Você é minha
mãe, Berta? Diz que é, diz.
BERTA (Depois de hesitar, comovida.) - Sou. Sou sua mãe, Renato.
Pode dormir. Isso.
Dorme, filhinho, a sua mãe está aqui. Pode dormir sem medo.
RENATO MENINO (Quase dormindo.) — Você não vai deixar o
Professor me bater?
BERTA (Continua a niná-lo.) - Claro que não. Ninguém vai bater em
você enquanto eu estiver aqui.
CENA 9
PROFESSOR, BERTA, RENATO, MENINO, ALICE MENINA, EVELYN
MENINA e ARETUSA MENINA
Na seqüência da cena anterior. Enquanto Renato adormece, acende-
se a luz sobre o Professor. Ele está parado ao lado de um vaso
sanitário. Berta
abandona o menino dormindo e caminha em direção ao Professor.
BERTA (Apontando o vaso.) — Professor, o Renato urinou outra vez
fora do vaso e sujou todo o banheiro.
PROFESSOR (Chamando.) — Renato, Renato! Onde é que se meteu
esse diabo de menino?
RENATO MENINO (Entrando, cabisbaixo, andando de lado.) — O que
foi, papai?
PROFESSOR (Segura-o pela gola da camisa.) - Como o que foi? Ainda
pergunta? Se fazendo de inocente, seu animal? Você sujou todo o banheiro
de
novo, seu porco sujo. RENATO MENINO (Com medo.) - Foi sem querer, pai.
Eu juro que não faço de novo.
PROFESSOR (Empurrando-o para o vaso.) — Te ajoelha. Não quero
saber de promessas. Você é um porcalhão. Sujou? Pois agora vai limpar
tudo
com a língua.
RENATO MENINO (Debatendo-se.) - Não, não, papai! Eu não faço
nunca mais!
PROFESSOR (Empurrando a cabeça do menino contra o vaso.) —
Tudo, você vai limpar tudo com a língua. (Dá-lhe um tapa e sai.)
RENATO MENINO (Soluçando, abraçado ao vaso.) — Por que é que o
pai tem tanta raiva da gente?
ALICE MENINA, EVELYN MENINA e ARETUSA MENINA (Entram em
fila indiana e circulam, saltitantes, em torno de Renato, cantarolando.)
—
Renato é um porcalhão! Renato é um porcalhão! Renato lambe o mijo!
Renato
lambe o mijo!
CENA 10
ALICE e ARETUSA
No ex-quarto de Cristiano. Alice está sentada na cama quando
Aretusa entra.
ARETUSA (Irritada.) — Não adianta. Cansei de telefonar, ninguém
atende. Seu irmão não deve estar em casa. O idiota não vem mesmo.
ALICE (Em tom de recriminação.) — Não fale assim do seu marido,
Aretusa. Você o conhece desde criança e sabe muito bem como ele era
tímido
e infeliz. Ele foi quem mais apanhou de papai. Uma pessoa como Renato
precisa de carinho. De estímulo. Mas você só humilha ele o tempo todo.
(Aretusa parece magoada. Cobre o rosto com as mãos, como se fosse
chorar.
Alice aproxima-se.) Desculpe, Aretusa, desculpe. Eu não quis. Você sabe,
a
culpa não é sua. Papai era muito severo. As vezes eu apanhava até por
coisas
que nem me lembrava mais que tinha feito. (Aretusa vai responder, mas
ouvem-se três batidas fortes — uma bengala batendo na madeira. Alice se
assusta.) O que é isso?
ARETUSA (Cansada.) - É o seu pai. Quando ele quer alguma coisa,
bate com a bengala no assoalho e Berta tem que atender.
ALiCE (Quase sorrindo.) - O velho Rasputin...
ARETUSA - O quê?
ALICE — Rasputin, o velho Rasputin. Era assim que Renato chamava
ele. Uma vez viu uma figura num livro e achou muito parecido com papai.
Eu
também achei. Aqueles olhos que furavam a alma da gente. Tão frios.
Pareciam uma faca.
As pancadas tornam a soar, três vezes. Aretusa e Alice ficam imóveis,
enquanto acende a luz sobre o Professor.
CENA 11
ALICE e PROFESSOR
Quarto do Professor. Ele está sentado, um cobertor sobre os joelhos.
Uma das mãos segura a bengala. De vez em quando, curva a cabeça sobre o
ombro e a move devagar. A roupa está muito desalinhada.
ALICE (Entrando devagar.) — Dá licença, papai? O senhor está bem?
PROFESSOR (Sacudindo afirmativamente a cabeça e fazendo um
gesto para que Alice se aproxime.) — Bem, bem. E os filhos, Alice?
ALICE (Em tom de justificativa.) — Não puderam vir, pai. O senhor
sabe como é. Eles estudam, trabalham. Só nos fins de semana têm algum
tempo para descansar, se divertir um pouco. Eu mesma não podia vir.
Estava
tão ocupada... Mas fiquei.. fiquei muito preocupada com Evelyn.
PROFESSOR (Cortando, brusco.) — Evelyn? Ela não vai nem ao
cemitério. Não foi nem uma vez, desde que o menino morreu. E não fica
nada
bem uma mãe não cuidar da sepultura do filho.
ALICE — Ela está doente, pai.
PROFESSOR (Sem ouvir.) — Bruno bem que podia obrigá-la a ir. (Em
tom de desprezo.) Mas você sabe como ele é condescendente.
ALICE (Tentando ser gentil.) - O senhor melhorou daquele barulho no
ouvido?
PROFESSOR (Seco.) - Não. Não melhorei nada. Ando até pior. Muito
pior. E não é um barulho. São insetos. E um zumbido de insetos.
ALICE (Paciente.) — Mas, pai, se fossem insetos o médico conseguiria
vê-los. E aí poderia.., não sei, abrir, retirar.
PROFESSOR (Obstinado.) - São insetos. Eu tenho certeza. Insetos
daninhos. (Entorta um pouco a cabeça. Presta atenção, como se pudesse
ouvir
alguma coisa.) Você não ouve? Agora eles estão começando a se mexer...
(Bate com a bengala no chão, violentamente, três vezes. Alice estremece.
O
velho choraminga.) Berta, vá chamar Berta.
CENA 12
ALICE, ALICE MENINA, PROFESSOR, BERTA e ARETUSA
ALICE (Sozinha, o foco de luz apenas sobre ela.) — Uma velha casa,
um velho pai, uma velha empregada: que tem isso demais? E só uma velha
casa. Mas essa velhice me deprime; sem sabedoria, sem paz. E por todos
os
cantos a lembrança de Cristiano. Perto da árvore ficava a gaiola grande
com os
dois porquinhos-da-índia que lhe dei. Iguais ao que eu tive na infância
e que
tratei com carinho de mãe.
Enquanto ela fala, no Plano do Inconsciente/Memória acendeu-se a luz
sobre Alice Menina e Berta. Alice Menina tem uma caixa de sapatos nas
mãos,
dentro da qual está o porquinho-da-índia.
ALICE MENINA - Ele é tão bonzinho, não é, Berta? Olha a carinha
dele, sempre franzindo o focinho. Será que o pai deixa eu ficar com ele?
BERTA —Você sabe muito bem que seu pai detesta bichos, Alice.
Outro dia ele até bateu a janela quando o canário da vizinha começou a
cantar.
Bateu com força. Chegou a quebrar um vidro.
ALICE (Insistindo.) — Mas ele é tão bonitinho. E se a gente mentisse
que ele é seu?
BERTA - Meu, menina? Mas o que é que eu vou fazer com um
porquinho-da-índia?
ALICE MENINA - Nada, ué. Você tem nojo dele?
BERTA (Curva-se para olhar o porquinho.) — Não. Nojo não. Até
gosto.
ALICE MENINA (Animada.) - Pois então? Você diz que ele é seu. É de
mentirinha, Berta. Assim ele fica no seu quarto. Eu garanto que ele não
vai dar
trabalho nenhum.
BERTA (Relutante.) — Mas e se ele fugir? Se entrar dentro de casa?
Esse bicho é que nem rato. Rói tudo que encontra pela frente.
ALICE MENINA (Insistindo.) - Ah, deixa, Berta. Ele não vai entrar
nunca dentro de casa (para a caixa), não é, porquinho? E só vai comer
restos
de verduras velhas. (Choramingando.) Eu nunca tive um bichinho.
BERTA (Cedendo, comovida, mas meio brusca.) - Tá bem, tá bem,
menina. Não precisa chorar. Que coisa. Eu digo que é meu. (Vai saindo.
Pura.)
Mas se der algum problema depois, não diga que eu não avisei.
ALICE MENINA (Muito feliz.) — Obrigado, Berta. (Para a caixa.) Acho
que vou chamar ele de Horácio. Tem uma cara de Horácio. Só falta os
óculos.
(Senta no chão.) Primeiro vou contar uma história para você dormir,
Horácio.
Era uma vez um porquinho-da-índia que um dia foi bater numa casa bem
igual
a esta. Era um porquinho todo quentinho e fofinho, assim que nem você,
com
dois olhinhos vermelhos arregalados de medo porque ele achava que não
tinha
casa.
BERTA (Saindo.) — O Professor tem verdadeiro horror de bicho. Não
suporta nem passarinho.
Alice continua brincando. Enquanto Berta sai, já está acesa a luz sobre
o Professor.
PROFESSOR (Apanha um jornal dobrado do chão, abre-o e examina.
Estd todo furado. Furioso, encaminha-se para Alice e joga-lhe o jornal
na cara.)
— Alice, este jornal está todo roído. Um jornal novo. Eu ainda nem tinha
lido.
ALICE (Tentando escondera caixa.) - Roído, pai? Deve ter sido algum
rato.
PROFESSOR — E desde quando tem rato nesta casa?
ALICE (Assustada.) — Uma barata, então. Outro dia vi uma barata na
cozinha.
PROFESSOR (Avançando para Alice.) - Além de tudo é mentirosa. Me
dá essa caixa. Faz dias que você anda escondendo alguma coisa dentro
dela.
ALICE (Apavorado.) - Não, a caixa não!
PROFESSOR (Fora de si.) - Me dá esse bicho imundo, Alice. (Começa
a puxá-la pelos cabelos, violentamente. Arranca-lhe a caixa das mãos.
Alice
tenta alcançá-la, sem conseguir.) — Animal nojento. Quantas vezes tenho
de
repetir que não quero nenhum bicho dentro desta casa?
ALICE (Gritando.) — Me dá ele, pai! Eu prometo que nunca mais ele
vai roer o seu jornal, eu prometo!
PROFESSOR - Cala a boca, menina. (Joga a caixa no chão.) E isso é
para você aprender a me respeitar. (Começa a pisotear a caixa. Alice
grita. Ele
sai.)
Alice Menina fica sozinha com os pedaços da caixa, chorando.
Enquanto isso, volta a luz sobre Alice Adulta.
ALICE ADULTA - Como é que um corpo tão pequeno pode espirrar
tanto sangue? Até hoje o guincho do animalzinho perfura meu cérebro
quando
penso nisso. Um único guincho, que morreu gorgolejante enquanto o
Professor
torcia o pé para esmagar melhor.
Acende-se a luz sobre Aretusa Adulta, sozinha em outro plano.
ARETUSA (Irônica e divertida,fumando.) — No mundo da lua, Alice?
Evelyn acordou e quer ver você. Suba!
CENA 13
ALICE, ARETUSA e EVELYN
No quarto de Evelyn. Quando Alice entra, Evelyn está sentada com o
boneco no colo, muito composta. Aretusa está ao lado dela, como se
tivesse
acabado de penteá-la e arrumá-la.
ALICE (Beija Evelyn, fingindo ignorar o boneco e procurando ser
natural.) — Fiz uma viagem tão boa, Evelyn. Com esses ônibus modernos,
agora ficou tudo mais rápido. Mesmo assim me cansei um pouco. Você vai
bem?
EVELYN (Sacudindo a cabeça, num tom monótono e automático, como
se recitasse algo decorado.) — Estou. Estou, sim. Estou bem. Estou muito
bem.
ALICE (Nervosa, depois de olhar um momento para Aretusa, que fuma
em silêncio.)
— Olha, meu marido e os rapazes mandaram lembranças. Não
puderam vir, sempre tão ocupados. Você sabe. Eu até ia trazer um bolo,
mas
acabei deixando. (Ri, insegura.) Saí correndo, esqueci até o perfume. E
uns
chinelos, eu ia comprar uns chinelos novos. O meu está tão velho, você
reparou, Aretusa?
ARETUSA — Nem prestei atenção. (Volta-se e fica olhando pela
janela.)
ALICE (Pega uma escova e começa a escovar o cabelo de Evelyn,
tensa.) — Seu cabelo continua tão bonito, Evelyn. Tão louro. Seus
colegas
devem estar com saudades, querida. Garanto que você faz muita falta no
escritório. Quando é que você volta?
EVELYN (Remota.) - Quando der. Um dia, não sei. Quando der, eu
volto.
ALICE (Maternal.) - Você tem comido direitinho, querida?
EVELYN (Falando como uma criança.) — Sim. Eu como tudo e limpo o
prato, Alice.
ARETUSA (Da janela.) - Bruno está chegando. Faz séculos que ele
anda só do trabalho para casa, da casa para o trabalho. Tive que
insistir para
que saísse hoje e se distraísse um pouco. Já que Evelyn tem companhia.
(Aproxima-se e coloca a mão no ombro de Evelyn.) Não é, querida? (Evelyn
não parece ouvir.)
ALICE (Um tanto apressada e aliviada, curva-se para beijar Evelyn.) -
Então eu vou lá embaixo receber o seu marido. Faz muito tempo que não
vejo
o Bruno. (Vai saindo. Na porta, volta-se e sorri para Evelyn, que
continua
imóvel.)
CENA 14
ALICE, BRUNO, RENATO MENINO e BERTA
Sala da casa. Bruno está jogado no sofá quando Alice entra. Levanta-
se para beijá-la, depois cai de novo no sofá.
BRUNO - Como vai, Alice?
ALICE — Bem, graças a Deus. E você? (Examinando-o.) — Parece
cansado, Bruno. E mais magro.
BRUNO (Indiferente.) — Pode ser. Faz tempo que não me peso.
ALICE (Tentando parecer animada.) — Então, passeando um pouco?
BRUNO — Aretusa insistiu tanto. Fui ao cinema.
ALICE — E gostou do filme?
BRUNO (Distante, acendendo um cigarro.) — O filme?
ALICE - É. O filme que você viu.
BRUNO (Desinteressado.) — Era... bom. O filme era bom.
ALICE (Depois de uma pausa em que não sabe o que dizer, sentando-
se no sofá.) — Acabei de ver Evelyn. Ela não parece nada bem.
BRUNO — Eu sei. Concordei com Aretusa em chamar você porque
não sabia mais o que fazer.
ALICE — Aretusa me disse que Evelyn parece não aceitar a morte de
Cristiano. BRUNO (Como se não ouvisse.) — Ela não quer mais falar com o
médico. Não quis ir no psiquiatra. E quase não come.
ALICE — Mas isso é perigoso, Bruno! E aquele boneco... o Palhaço?
Você tem que tirar aquilo dela. Que coisa mais macabra!
BRUNO (Paciente.) — Mas é só assim que ela fica mais calma. Ela
segura o boneco e fala como se... como se o menino estivesse vivo. No
começo, tentei fazer com que aceitasse a realidade. (Amargo.) Mas realidade
é
uma coisa que ela não agüenta mais.
ALICE (Meio distraída.) — Engraçado, meu filho disse que...
BRUNO (Interrompendo, em voz baixa.) — Descobri que Evelyn anda
com uma gilete em baixo do travesseiro.
ALICE (Horrorizada.) - Uma... uma o que?
BRUNO (Em voz muito baixa.) - Uma gilete. Já botei fora duas ou três.
Mas sempre quando vou ver, tem outra lá.
ALICE Que horror, Bruno. Será que ela...
BRUNO (Interrompendo.) - Alice, o que é que você acha que devemos
fazer?
ALICE (Recostando.se para trás, no sofá, cansada, depois de pensar
um momento.) — Não sei. Não consigo raciocinar direito.
BRUNO (Angustiado.) — Não quero que ela seja internada num... num
hospício. Ela não está louca, só desesperada. Nós não temos dinheiro
para
uma boa clínica particular. E psiquiatra... Bem, ela tem de querer
também.
Ninguém pode forçar.
ALICE (Para mudar de assunto.) — Meu pai também está tão esquisito.
BRUNO — Péssimo. Fazia meses que você não o via, não?
ALICE — Fazia. Fazia tempo, sim.
BRUNO — Então deve ter-se assustado. E ele agora deu para se
queixar a toda hora dos tais bichos. Quando esquece, fica quase normal.
Depois começa tudo outra vez.
ALICE - Que coisa horrível. E o médico, o que diz?
BRUNO (Batendo de leve com o indicador na testa.) — Que é a idade.
Precisamos ter paciência. Essas coisas.
ALICE (Pensativa.) — Deus que me perdoe. Mas até parece castigo.
BRUNO (Intrigado.) — Castigo por que?
ALICE — É uma história antiga. Quando a gente era criança, Renato
sofria de infecções nos ouvidos. Berta pingava azeite morno, mas não
adiantava. Uma noite ele não parava de chorar. Devia doer muito. Papai
levantou umas duas vezes e mandou que ele calasse a boca. Que não
fizesse
fita. Na terceira vez, abriu a porta com um empurrão e deu um tapa na
cabeça
de Renato, com toda a força. (Enquanto Alice fala, acende-se a luz sobre
Renato Menino. Ele prepara a arma, no Plano do Inconsciente/Memória,
como
na Cena 3.)
BRUNO - O Professor sempre foi muito violento.
ALICE (Como se não ouvisse.) - Quando entramos no quarto, tinha um
líquido grosso, amarelo, escorrendo do ouvido de Renato. Era pus. No dia
seguinte, Berta levou ele ao médico. O bofetão de papai tinha feito
rebentar um
abscesso no ouvido dele.
RENATO MENINO (No outro Plano.) — Uma arma. Uma arma secreta.
Para matar o Professor. (Ouvem-se as três bengaladas do Professor. A luz
se
apaga no Plano do Inconsciente/Memória.)
BERTA (Entra, acende a luz.) — Está na hora de servir o jantar.
BRUNO (Levantando-se.) — Vou ver se Evelyn quer descer. (Sai.)
BERTA (Pondo a mesa, para Alice.) — O Professor também vai descer
hoje. Porque você está aqui.
ALICE (Distraída, meio para si mesma.) — Será que na cama, quando
eles dormem, o boneco fica no meio dos dois?
BERTA (Como se não tivesse escutado.) — Louça toda velha. Tantos
pratos rachados.
CENA 15
ALICE, PROFESSOR, ARETUSA, BRUNO, EVELYN, BERTA e
RENATO
Na sala. Estão todos sentados à mesa do jantar. À exceção de Renato,
que ainda não chegou, e de Berta, que serve a mesa. Evelyn tem o boneco
no
colo. A cena é lenta e difícil, entremeada de silêncios longos.
BRUNO (Para Evelyn, paciente.) — Você está com frio, Evelyn?
ALICE - Ela não comeu quase nada.
BRUNO (Para Evelyn) - Vamos, querida. Você não almoçou hoje. Tem
que comer mais um pouquinho.
EVELYN (Como criança.) - Eu não quero. Por que você quer me
obrigar a comer?
BRUNO — Para ficar forte, Evelyn. (Dando-lhe comida na boca.) — Só
um pouquinho. Assim. Agora, mais um pouquinho.
ALICE (Para o Professor.) — Quer mais vinho, pai?
BRUNO (interrompendo o Professor, que estende o copo.) - Ele não
pode. O médico proibiu.
PROFESSOR (Com desprezo.) - O médico... O médico não sabe nada.
ALICE (Conciliadora.) - Deixa, Bruno. Hoje é um dia especial. Estamos
todos juntos. ARETUSA (Mentindo.) —A carne está ótima. (Para Alice, que
cruzou os talheres, repugnada, depois de encontrar um vermezinho na
salada.)
E você, não vai comer mais nada? Está de regime? Olha, bem que você
precisa, hein?
ALICE — Estou sem fome. Acho que foi a viagem.
ARETUSA — Pois eu não. Até pelo contrário. Quando mudo de
ambiente, me abre o apetite. (Para Bruno.) Passa o arroz?
Silêncio espesso. Constrangimento. Berta tira e coloca coisas na mesa.
De repente, o barulho da campainha.
PROFESSOR - Quem pode ser numa hora dessas?
BRUNO — Visita é coisa rara por aqui.
PROFESSOR — Deve ser algum mendigo. A cidade está cheia deles.
ALICE (Para o Professor.) — Quer que eu veja quem é?
BERTA (Para Alice.) — Pode deixar que eu mesma vejo. (Berta sai e
volta acompanhada de Renato, com uma bolsa de viagem.) Olha só quem
chegou.
RENATO (Contrafeito.) — Boa-noite para todos. (Beija Aretusa no
rosto.)
ARETUSA (Agressiva.) — Ué, achei que você não vinha. Até telefonei
hoje à tarde. Liguei acho que umas dez vezes. Tocou, tocou e ninguém
atendeu.
RENATO - Eu mudei de idéia. Quando você telefonou, provavelmente
eu já tinha saído. (Aperta a mão do pai, muito formal.) Como vai, papai?
PROFESSOR (Seco.) - Boa-noite.
RENATO (Beija Alice.) - Então, Alice? Tudo bem? (Ela sorri. Ele aperta
a mão de Bruno,faz um carinho na cabeça de Evelyn e senta-se ao lado
dela.)
ALICE (Para Renato.) — Você já jantou?
RENATO - Não. Não tenho fome. Comi no caminho. Um sanduíche.
ALICE (Maternal.) - Eu sempre digo que sanduíche não alimenta.
ARETUSA — Pelo menos tome um café. (Pega o bule e serve. Renato
bebe e fica remexendo na xícara com a colherinha, olhos baixos.)
EVELYN (De repente, sem ninguém esperar, para alguém invisível,
olhando Renato e o boneco.) — Vocês não acham que ele se parece com o
Palhaço? (Ninguém ri. Silêncio constrangido. O Professor começa a mexer
lentamente a cabeça.)
ALICE (Para o Professor.) — Que foi, pai? O senhor está sentindo
alguma coisa?
PROFESSOR — São os insetos. (Pára por um instante, como se
escutasse. Olha para todos, um por um, com desprezo. Depois recomeça os
movimentos com a cabeça.) Eles estão se mexendo agora.
A luz apaga. No escuro, ouve-se a gravação de uma gargalhada
estridente de criança.
II ATO
CENA 1
ALICE,RENATO e BRUNO
Na sala de refeições, de manhã cedo. A mesa está posta para o café
quando Alice entra. Renato, que já está sentado, brinda distraidamente
com
bolinhas de pão.
ALICE (Entrando.) - Bom-dia, Renato. Tudo bem? (Senta-se à mesa.)
Fiquei preocupa com você aqui em baixo. Não passou frio durante a noite?
RENATO (Distraído.) - Não, não. Tudo bem, Alice. Berta me trouxe um
cobertor Mas nem era preciso. Estava quente.
ALICE — Tem razão. Está tão abafado. Parece que vai chover.
RENATO - É possível. Esse calor não é normal de manhã cedo.
ALICE — Me passa o café? (Renato passa e ela se serve.) E além do
mais, com essa casa toda fechada. O calor fica pior. Berta devia
ventilar mais a
casa. (Prova o café e faz uma careta.)
RENATO - O que foi?
ALICE (Meio repugnada.) — O café. Está quase frio. E muito fraco.
(Toma mais um gole.) Péssimo.
RENATO (Dando de ombros.) - Berta está muito velha.
ALICE — Acho que ela nem enxerga mais direito. (Afasta a xícara.)
RENATO - Você não vai tomar café?
ALICE (Suspirando.) - Não. Não tenho vontade.
BRUNO (Entrando.) - Bom-dia. (Renato não responde. Continua a
fazer bolinhas de pão.)
ALICE - Bom-dia, Bruno. E Evelyn, passou bem à noite?
BRUNO (Abatido.) - Não. Ela dormiu muito mal. Acordou várias vezes.
ALICE (Intrigada.) — Bruno... por acaso ela... ela riu durante a noite?
RENATO - o que?
ALICE (Meio envergonhada.) - Riu. Você não ouviu nada, Renato? Eu
tive a impressão de ter ouvido alguém rindo.
BRUNO (Cortando.) - Faz muito tempo que Evelyn não ri.
RENATO (Desinteressado.) - Eu não ouvi nada.
ALICE (Meio atrapalhada.) — Claro, claro. Devem ter sido os gatos.
Eles fazem muito barulho nos telhados. Acho uma coisa indecente.
RENATO - Ou algum babado na rua.
ALICE (Nervosa, tentando rir.) — Pode ser. Noite de sábado.
BRUNO (Para Renato.) — Me passa o pão?
ALICE (De repente, pondo a mão na testa.) — Acho que estou
pegando uma gripe daquelas.
RENATO (Para Alice.) — E Aretusa? Não vai descer?
CENA 2
ARETUSA, CORÁLIA e ENFERMEIRO
Quando Renato fala, apaga-se a luz sobre a cena anterior e acende-se
sobre Aretusa. Ela está na cama, deitada, fumando. A luz acende-se
também
no Plano do Inconsciente/Memória. Cruzam a cena Corália, numa cadeira de
rodas, empurrada por um Enfermeiro. Corália — uma atriz ou uma boneca -
tem os cabelos todos brancos e a cabeça caída sobre o peito. Enquanto
eles
passam, ouve-se apenas a voz de Aretusa.
ARETUSA - Ela era linda. Tinha um jeito de menina. Uns olhos tão
grandes e inocentes.
CENA 3
ALICE, ARETUSA, CORÁLIA e ENFERMEIRO
É um flash-back, na casa de Alice, recém-casada. A cena pode ser
feita pelas atrizes que fazem Alice e Aretusa Adultas ou por Alice e
Aretusa
Meninas.
ARETUSA (Sonhadora.) — Linda, Alice, tão linda. Você nem imagina
como ela é linda. E tem uns olhos, o que mais me impressiona nela são os
olhos. Enormes, inocentes. Sem maldade nenhuma.
ALICE (Espantada.) — Será que eu entendi direito, Aretusa?
ARETUSA (Rindo, debochada.) — Claro que entendeu. Meu Deus,
Alice, você é uma mulher adulta, casada, mas continua a virgenzinha de
sempre. Atrasada, ingênua. (Implicante.) Ah, minha santinha, a filha do
Bicho-
Papão não sabe em que mundo vive?
ALICE (Meio irritada, mas paciente.) — No mesmo que você, Aretusa.
E não sou atrasada. Só acho um pouco estranho.
ARETUSA — Não tem nada de estranho. (Para si mesma.) E ela me
ama, sim. Ela me ama. Eu finjo que não percebo, mas vejo bem nos olhos
dela.
Lá no fundo, indisfarçável. Ela me ama. (Para Alice.) Não faz mal nenhum
assim, só de longe.
ALICE (Preocupada.) — Como não faz mal, Aretusa? Ela é sua aluna.
Imagina se alguém descobrir, no colégio, o escândalo que vai ser.
ARETUSA (Sem ouvir.) - Uma menina tão linda. Tão terna.
ALICE — Escuta, Aretusa, você vai acabar se metendo em
complicações. Depois não diga que eu não avisei.
ARETUSA - Ah, não se preocupe, minha querida moralista. Eu apenas
me deixo amar.
ALICE — Você tem que me prometer que vai tomar cuidado.
(Segurando Aretusa pelos ombros.) Prometa, Aretusa. Prometa que não vai
se
meter em nenhuma complicação com essa menina.
ARETUSA (Desvencilhando.se.) - Pára com isso, Alice. Que coisa mais
antiga!
ALICE (Insistente, séria.) — Prometa, Aretusa.
ARETUSA — Mas prometer o que, criatura?
ALICE — Que não vai se meter em nenhuma complicação. Que vai se
ver livre dela.
ARETUSA (Dando de ombros.) - Está bem, está bem. Se você fica
mais tranqüila assim.
(Fingindo solenidade.) Prometo solenemente me ver livre dela.
ALICE (Aliviada.) — Assim é que se fala. (Noutro tom.) Como é mesmo
o nome dela?
ARETUSA (De costas para Alice Enquanto ela fala, acende-se
novamente a luz no plano do Inconsciente/Memória, e o Enfermeiro torna a
passar com Corália na cadeira de rodas.) - Corália... Nome engraçado.
Parece
nome de flor. Corália-Rosália. Magnólia. (Num crescente, em desespero,
grita.)
Corália, Corália (Tapa a boca com a mão.)
CENA 4
ALICE e ARETUSA
Passaram-se alguns meses, mas a cena vem imediatamente na
seqüência da anterior, sem pausa. Quando apaga-se a luz sobre o Plano do
Inconsciente/Memória, acende-se novamente sobre Alice e A retusa.
ALICE — Fale mais devagar, Aretusa. Não entendo nada.
ARETUSA (Que ainda estava de costas, voltando-se.) — Ela tentou se
matar.
ALICE - Ela? Ela quem, meu Deus?
ARETUSA (Quase gritando.) — Corália. Corália tentou se matar.
ALICE (Chocada.) - O que? O que foi que você fez, Aretusa?
ARETUSA (Muito agitada.) — Nada. Não fiz nada. Pare de me acusar,
Alice. Você não sabe de nada.
ALICE — Não estou acusando ninguém. Fique calma e me conte tudo,
O que foi que aconteceu?
ARETUSA (Acendendo um cigarro.) — Nada, não aconteceu nada.
Só... aquelas coisas. Ambigüidades, olhares, promessas. Não tive coragem
de
desiludi-la. Ela era tão bonita, Alice. Eu não tive culpa. Foi ela quem
contou
para uma amiga. A idiota da amiga contou tudo para os pais de Corália. O
diretor da escola nos chamou para tentar evitar o escândalo. Eu ainda
consegui
consertar a história. Falei em calúnia, despeito, inveja.
(Envergonhada.)
Cheguei a insinuar que... que Corália não regulava bem, você me entende?
Que era imaginação dela. Que ela era meio louca. Não adiantou nada. Ela
ficou me procurando por toda parte. Telefonava, mandava cartas. Queria
que
nós fôssemos embora juntas. Eu comecei a fugir, a tratá-la mal. Eu não
queria
complicações.
ALICE (Tentando acalmá-la.) — Você agiu direito, Aretusa.
ARETUSA (Culpada.) - Não, não. Eu fiz tudo errado. Eu fiquei com
medo e disse que se ela não se afastasse eu contaria aos pais dela e ao
diretor. (Baixando a voz.) Hoje de manhã encontraram ela na cama, a boca
toda queimada de veneno. Foi só então que eu descobri o quanto gostava
dela.
ALICE (Colocando a mão na cabeça dela.) — Não fique assim,
Aretusa.
ARETUSA — Eu sei que você me entende, Alice. O que fiz foi só para
o bem dela.
Não queria que depois ela sofresse ainda mais.
ALICE — Fique calma, fique calma.
ARETUSA — Se ela morrer, não vou agüentar sozinha.
ALICE — Ela não vai morrer. Não vai acontecer nada.
ARETUSA (Lentamente.) -Juro que nunca mais vou amar ninguém.
Nunca mais vou me ligar a ninguém. Nunca mais. Eu acabo destruindo tudo
que toco.
CENA 5
ALICE e ARETUSA
Volta ao presente. No quarto, Aretusa está de camisola, fumando,
quando Alice entra.
ALICE — Ainda está aí? Você nem se vestiu.
ARETUSA - Estou com preguiça.
ALICE — E fumando em jejum. Faz mal. Você não vai tomar café?
ARETUSA - Não quero comer. (Agressiva.) E você bem que podia
cuidar um pouco da forma, não?
ALICE (Sem se ofender.) — Nem tomei café. Estava fraco e frio.
ARETUSA - Quer um cigarro?
ALICE - Você sabe que não fumo.
ARETUSA (Irônica.) — Bem, às vezes as pessoas progridem... (Depois
de uma pausa, de repente.) Esta semana fui ver Corália.
ALICE (Assustada.) — Corália? Você foi ver Corália?
ARETUSA - Fui. Sempre que eu venho aqui dou uma chegada lá.
(Melancólica.) É estranho... Ninguém sabe o que ela sente, mas parece
contente quando me vê. Acho que é só por isso que os pais dela permitem
que
eu a veja.
ALICE - E como ela está?
ARETUSA (Amarga.) — E como é que você queria que ela estivesse?
Ah, Alice, acho que a morte seria melhor para ela.
ALICE — Não fale assim.
ARETUSA (Irônica.) - E por que não? É a verdade. Todo mundo acha
isso mesmo. Mas eu sou a única que tem coragem de dizer.
ALICE (Confusa.) - Pode ser, mas. Não sei, não é bom. Não é bom
desejar a morte de ninguém. Ela não pode mesmo ficar boa?
ARETUSA (Cansada.) - Eu já disse mil vezes.
ALICE — Eu sei, eu sei. Mas as coisas às vezes mudam.
ARETUSA (Dura.) — Neste caso, não mudam nunca. Faz anos que ela
está assim. Ela não vai ficar boa, não vai melhorar nunca. Não tem
esperança
nenhuma, Alice. Você sabe muito bem: Corália não pode mais andar, não
pode
mais falar. Mal sustenta a cabeça. Parece uma velha. Ou um bicho. (Num
sussurro.) Sabe? O cabelo dela agora está branco como a neve.
ALICE (Agoniada.) - Quantos anos ela tem?
ARETUSA — Quarenta. Quarenta anos. (Ouvem-se as batidas do
Professor. As duas se sobressaltam.)
ALICE — É o papai. Já está na hora do almoço?
ARETUSA (Remota.) — Não. Ainda é muito cedo. Ele deve estar
chamando Berta.
ALICE — Coitada. Assim ela nem pode mais trabalhar direito. Vou ver
se precisa de ajuda. (Volta-se para sair. Da porta, de repente, torna a
encarar
Aretusa, levemente maldosa.) Que engraçado... Agora, de repente, lembrei
como a gente chamava você quando era criança. Você lembra?
ARETUSA (Desinteressada.) - Não. Como era?
ALICE (Bem devagar.) — Aretusa-Medusa... (Antes que Aretusa
retruque, ouve-se o barulho do vento, como folhas de arvore farfalhando.
As
duas ficam atentas, à escuta.) Se a gente não soubesse que cortaram a
árvore,
ia dizer que está farfalhando. Você ouviu?
ARETUSA - É só o vento. Mas você tem razão. Às vezes, parece que o
menino ainda está se embalando naquele galho. Ele gostava tanto do
balanço.
(Alice volta-se novamente para sair. Aretusa olha bem para as pernas
dela,
agressiva.) Você devia tratar dessas varizes...
CENA 6
ALICE MENINA, ARETUSA MENINA, EVELYN MENINA e RENATO
MENINO
Durante as últimas falas da cena anterior, acendeu-se a luz no Plano
do Inconsciente/Memória.
Lá estão parados Alice, Aretusa, Evelyn e Renato meninos. Falam sem
entonação infantil, estáticos, dando o texto como um coro de tragédia
grega.
ALICE — Há mais de vinte anos Aretusa carrega esse segredo
sombrio. Acho que não comentou com ninguém além de mim. No começo, me
procurava para desabafar. Tempos depois, quase repentinamente, casou-se
com Renato. Duas pessoas que nada tinham em comum. E não conseguem
viver em paz, porque Aretusa nunca escapará de Corália.
EVELYN — Mal Aretusa cochilava, a aranha cinzenta começava a
arranhar a porta, a parede, o pé da cama.
RENATO — Talvez Renato a amasse, mas de longe, como às vezes
amamos o que é mais oposto, mais diferente de nós. Ela insistia, não
saía de
perto dele, usava da sedução do seu olhar dourado, das maneiras
desinibidas,
da voz sensual. Como se ela se punisse fazendo-o sofrer. Assim, mostra a
si
mesma que é louca e má.
ARETUSA — Sempre que Aretusa se mira num espelho, talvez
enxergue por trás da imagem familiar aquele rosto inapagável, que lhe
cobra
uma pequena indenização. Debate- se entre o amor e a repulsa, e a culpa
não
a deixa dormir.
CENA 7
BRUNO e EVELYN
A última fala de Aretusa, na cena anterior, foi cortada pela gravação de
uma risada infantil. A luz acendeu-se sobre o quarto de Evelyn. Ela está
dormindo, com o Palhaço nos braços. Bruno está ao lado, com uma bandeja
nas mãos. O som da risadinha faz com que Evelyn acorde sobressaltada. A
cama está cheia de brinquedos espalhados.
BRUNO - O que foi, Evelyn? Calma, está tudo bem. Eu estou aqui.
EVELYN (Assustada.) - Você também ouviu?
BRUNO — O quê? As batidas? Deve ser o Professor chamando Berta.
EVELYN — Não, não. Não eram batidas. Era outra coisa. Vinha de
longe, mas era muito claro. Como... como uma...
BRUNO (Cortando, paciente.) - Você sonhou. Não era nada. Só um
sonho. Olha, eu trouxe café e pão para você.
EVELYN (Infantil.) - Eu não quero comer.
BRUNO — Mas não precisa comer. (Passa a mão no cabelo dela.)
Tome pelo menos um pouquinho de café.
EVELYN - Não, não. Eu não quero.
BRUNO (Falando como quem se dirige a uma criança, larga a bandeja
em cima da mesa e tenta devagarinho tirar o Palhaço de Evelyn.) — Só um
pouco. Vai fazer bem, você precisa ficar forte de novo.
EVELYN (Resistindo, até Bruno desistir.) — O Palhaço não! Me deixa
ficar com ele!
Me deixa!
BRUNO (Senta-se ao lado dela e tenta fazê-la beber da xícara.) — Só
um pouco de leite, então.
EVELYN (Com raiva.) - Não quero. Tenho nojo de leite.
BRUNO - Só um gole.
EVELYN (Jogando a xícara ao chão e gritando.) — Não quero, já disse!
BRUNO (Enquanto ela abraça o Palhaço.) — Está bem, está bem, se
você não quer... (Ele abraça e fica embalando-a durante algum tempo, sem
dizer nada, até que ela se acalme.) Você não quer descer um pouco? Toda
a
família está aí, reunida. Todo mundo quer que você desça. Até Renato
veio.
EVELYN (Infantil.) - Eu não quero comer.
BRUNO (Fingindo não ouvir.) — Você não quer descer um pouco e
conversar com eles?
EVELYN — Eu quero ficar aqui. Quero ficar cuidando dele.
BRUNO (Levanta-se e vai até a janela, enquanto Evelyn cuida do
Palhaço como se fosse um bebê, embala.o, beija-o, etc.) — Então eu vou
abrir
a janela. Está um dia bonito, tem sol.
BRUNO (Um pouco assustado, afasta-se da janela.) — Está bem, se
você não quer eu não abro. Mas fique calma.
EVELYN (Feliz, timidamente.) - Você é tão bom comigo... Sempre faz
tudo que eu quero... (Embala o Palhaço enquanto Bruno olha, desanimado.)
Por enquanto, só quero ficar aqui com ele. Mais tarde eu desço um pouco.
Se
Berta vier me buscar...
CENA 8
ALICE MENINA, EVELYN MENINA e BERTA
Luz sobre o Plano do Inconsciente/Memória.
ALICE — Berta, você nunca casou?
BERTA - Nunca. Graças a Deus.
EVELYN — Mas casamento não é bom?
BERTA - Depende. Pra uns, pode ser. Pra mim, não.
EVELYN — Como é que você sabe? Você nunca experimentou pra
saber.
ALICE — Berta, por que você não se casa?
BERTA - Menina, homem pra mim é peste!
CENA 9
ALICE e BERTA
No quarto de Berta. No final da cena anterior, acendeu-se a luz no
quarto de Berta, à porta do qual esta’ Alice adulta, parada.
ALICE (Chamando, não muito alto.) — Berta, Berta, você está aí?
(Bate à porta do quarto e torna a chamar.) Berta, Berta! Sou eu, Alice.
Ninguém responde Alice entra. A luz revela um quarto muito pobre. A
gaveta da mesinha de cabeceira está aberta e atulhada de papéis
recortadas.
Há também algumas revistas empilhadas sob a cama e também uma tesoura
grande. Alice começa a remexer e fica muito espantada: são recortes de
revistas, com fotografias de mulheres nuas. Alice abre a porta de um
guarda-
roupa e encontra uma colagem de mulheres nuas, bem vulgares, dessas que
se encontram em pensões de rapazes. Alice estd muito chocada. De
repente,
ouve passos que se aproximam. Rapidamente, fecha aporta do guarda-roupa
e
a gaveta.
BERTA (Entrando, levemente irônica.) — Procurando por mim, Alice?
ALICE (Embaraçada, mas fingindo naturalidade.) — Sim, eu... Você
não estava, eu bati, ninguém respondeu. Aí entrei, desculpe.
BERTA (Dando de ombros.) — Não tem importância.
ALICE — Eu queria conversar um pouco sobre... sobre a saúde de
meu pai.
BERTA — Então sente. Vamos conversar. (Ambas sentam na cama.)
ALICE — Estou com pena de papai. Ele não me parece nada bem.
BERTA - E não está mesmo. (Dura.) Mas eu não tenho pena. Ele é que
devia ter pena de mim, que trabalhei a vida toda. Mas que nada... Quanto
mais
velho fica mais exigente.
ALICE — Ele sempre foi exigente. Desde que eu era criança.
BERTA (Rancorosa.) — Mas está pior. Eu é que sei. Ele nem quer
mais tomar banho. E suja toda a cama. (Com nojo.) As vezes, pede a
comida
no quarto e depois despeja tudo no meio dos lençóis. De noite, quando
vai
deitar, diz que fui eu que fiz a sujeira toda. (Suspirando.) E um
inferno. E a
bengala, então? Você não ouviu as batidas da bengala?
ALICE — Ouvi. Há pouco ele tornou a bater.
BERTA - Ele fica batendo no chão. Batendo, batendo como um
desesperado.
Quando eu subo as escadas, se faz de desentendido e diz que não me
chamou.
ALICE (Penalizada.) — Mas Berta, ele está tão velho, coitado. Será
que tem consciência do que faz?
BERTA (Desinteressada.) — Metade do tempo acho que não sabe. Ele
está ficando caduco. (Com ódio.) Um velho caduco, um velho nojento.
ALICE — Mas ele não é mau. Só... (hesitando, como se procurasse a
palavra exata) ...só infeliz.
BERTA (Dando uma risadinha maldosa.) — Você sabe por que é
mesmo que eu continuo aqui, Alice?
ALICE (Sacudindo a cabeça, em voz muito baixa.) — Não.
BERTA (Em voz baixa, mas firme.) - Estou aqui para apreciar a morte
dele.
ALICE (Chocada.) — A morte dele? Mas para que, Berta?
BERTA (Triunfante.) — Vai ser a minha vingança.
ALICE (Sem entender.) - Vingança? A sua vingança. Berta? Mas
vingança de quê, meu Deus?
BERTA (Com ódio e mágoa.) - Sempre fui como um cachorro nesta
família.
ALICE — Não é verdade. Não fale assim.
BERTA (Calma, com ódio.) - Sempre fui como um cachorro.
ALICE — Não é bem assim. Você nos conhece tão bem, há tanto
tempo, desde crianças. Até parece que. Todos nós tivemos uma vida
difícil... e
sempre fomos muito retraídos. Você tem raiva de nós?
BERTA — Raiva? Raiva, não. Tenho pena. Evelyn, Renato, você:
tenho pena de vocês todos. Mas o velho.., ah, o velho, sim, esse vai me
pagar!
ALICE (Colocando com cuidado a mão no braço dela.) — Berta, você
quer ir embora daqui?
BERTA - Embora? Eu não! E para onde iria? Quem vai me querer,
agora que estou velha e imprestável? (Ouvem-se as batidas da bengala do
Professor. A luz acende-se sobre ele, parado na escada.)
CENA 10
ALICE, PROFESSOR, ARETUSA, BRUNO, RENATO e BERTA
A partir da cena anterior, o Professor caminhou até sentar-se na
cabeceira da mesa. A os poucos, os outros vão chegando. Bruno é o
último.
Berta fica parada atrás.
BRUNO (Sentando-se.) — Evelyn não vai descer para o almoço. Mas
não se preocupem. Conversamos um pouco hoje de manhã. Ela está melhor.
ALICE — Melhor? Mas Bruno, me disseram, e eu também notei, que
ela age como se o menino estivesse vivo.
PROFESSOR - Evelyn precisa ser internada.
BRUNO — Uma clínica particular é cara demais. Além disso, ela não
está louca, só... só desesperada.
ARETUSA (Impaciente.) — Se ninguém vai fazer nada, então por que
esse teatro de a gente se reunir aqui um fim de semana inteiro?
BRUNO (Seco.) — A idéia foi sua, Aretusa. Não foi minha.
ARETUSA (Agressiva.) — Bem, mas a responsabilidade é de todos,
não é? (Para Renato, que está desinteressado.) E você, também podia se
interessar um pouco, não acha? Afinal Evelyn é sua irmã, não minha.
RENATO (Irritado.) - O que é que você quer que eu faça? Eu pelo
menos estou aqui, não estou? E eu nem podia vir.
ARETUSA - Antes não tivesse vindo. Ficar aí parado não adianta nada.
ALICE (Cortando, para Bruno.) — Será que Evelyn não gostaria de
descer e almoçar com a gente? Se você quiser eu subo. Talvez consiga
convencê-la.
BRUNO — Não precisa, Alice. Ela já comeu, agora quer descansar.
Até comeu melhor, achei que estava mais disposta.
PROFESSOR (De repente, para Renato.) - E os negócios, como vão?
RENATO (Mexendo a mão no ar.) - Mais ou menos.
BRUNO (Procurando aliviar o ambiente.) — Renato tem um problema:
ele é bondoso demais, honesto demais para ser bom comerciante.
Comerciante tem que ser mais safado.
ARETUSA (Agressiva.) — Bondoso? Bondoso coisa nenhuma. Ele é
um frouxo, isso sim. (O Professor ri, sarcasticamente.)
RENATO (Em voz baixa e clara, depois de remexer no prato com o
garfo por alguns instantes.) — Um pai como o senhor acaba com a vida de
qualquer um. (Todos param de comer e voltam-separa ele.)
PROFESSOR - O que é que você quer dizer com isso, seu
fracassado?
ALICE (Tentando desviar o assunto.) — Pelo amor de Deus, será que
não se pode ter pelo menos uma refeição tranqüila nesta casa?
BERTA (Irônica e imóvel.) — E você já viu uma refeição calma por
aqui?
RENATO (Pouco a pouco mais exaltado.) — O senhor quer saber o
que eu acho mesmo? Acho que o senhor nos odeia. Odeia seus próprios
filhos.
Não sei como isso é possível, mas é verdade. (Quase gritando.) O senhor
nunca foi pai: é um carrasco.
PROFESSOR (Por um momento parece que vai reagir, mas encolhe a
cabeça sobre os ombros.) — Você nem sequer tem inteligência para
inventar
uma desculpa melhor.
ALICE (Ainda tentando aliviar o clima.) — Aretusa, me passa a água?
Está tão quente. (Alice serve a si mesma e a Aretusa.)
RENATO (De repente.) — A única pessoa de quem o senhor gostou
um pouco na vida foi Cristiano. Pior para o senhor que ele morreu.
(Aretusa
deixa cair o copo d’dgua. Bruno olha com mágoa e surpresa para Renato.
Aretusa estende a mão como se fosse tocar no braço do marido, mas
desiste.)
Nem de nossa mãe o senhor gostava. Ela morreu de tristeza, essa é a
verdade. Era quase uma menina, e o senhor nunca lhe deu amor nem
atenção.
Ela preferiu morrer.
ARETUSA (Gritando.) - Renato, pare!
RENATO (Levantando-se da cadeira, cheio de ódio.) - Lembra o dia
quando o senhor esfregou minha cara no mijo do chão, lembra? Não, acho
que
esqueceu, o senhor sabe esquecer. Que confortável, não? Pois eu me
lembro.
Berta lembra, foi ela quem lavou meu rosto depois. Alice também estava
lá.
Naquela vez, Berta me contou que nossa mãe morreu de desgosto, de
solidão.
Muitas pessoas comentavam isso. Para ela, o senhor também foi um
carrasco.
(O Professor derruba o copo de vinho na toalha. Aretusa faz menção de
levantar-se, mas permanece sentada.) Berta me disse também que logo
antes
de morrer nossa mãe pediu que ela tomasse sempre conta de nós, porque o
senhor não tinha coração. Foi o que ela falou: “O pai deles não tem
coração”.
ALICE — Renato, agora chega. Ele está doente. (O Professor começa
a balançar a cabeça.)
RENATO (Sarcástico.) — Me contaram que o senhor anda escutando
ruídos... Ruídos de bichos dentro dos seus ouvidos. Então os vermes
estão
comendo o senhor antes da morte? Que coisa mais bem feita! (Gritando.)
Que
maravilha! O senhor ainda nem morreu e já está cheio de bichos? Quero
que
apodreça, ouviu? Que apodreça!
Aretusa começa a chorar. Bruno levanta-se e coloca a mão no ombro
do Professor.
Renato caminha pela sala e, na janela, solta um grito incompreensível.
Junto com o grito, para torná-lo ainda mais indistinto, pode soar a
gravação da
risadinha infantil. Renato sai.
ARETUSA — Ele bebeu demais. Foi só isso, ele bebeu demais.
BRUNO — Berta, me ajude a levar o Professor para cima. (Berta
resmunga, mas vai. Os dois sobem lentamente a escada, amparando o
Professor.)
ALICE (Para Aretusa, que permanece sentada, esfregando os braços
como se tivesse frio.) .- Você não quer um café, Aretusa?
ARETUSA (Remota.) - Café?
ALICE — Então vamos até a cozinha. Lá deve ter café quente. Venha.
(Alice vai-se curvando para ela, como se fosse abraçá-la.
Enquanto isso, acende-se a luz no Plano do Inconsciente/Memória.)
CENA 11
ALICE e ARETUSA MENINAS (As duas brincam, sensuais e
inocentes.)
ALICE (Espantada.) — Na boca, Aretusa?
ARETUSA — Na boca, claro. Que é que tem? Depois põe a língua lá
dentro, bem devagarinho.
ALICE — A língua? Não é meio nojento?
ARETUSA (Rindo.) - Nojento nada. E ótimo. Você nunca viu no
cinema?
ALICE - Sim, mas no cinema é outra coisa.
ARETUSA (Maliciosa.) — No cinema é fingido. Na vida real é de
verdade. É muito melhor.
ALICE (Curiosa.) — E tem... tem gosto?
ARETUSA (Divertida.) — Gosto? Você quer saber se tem gosto? Ah,
Alice, como você é inocente... Se eu contar, ninguém acredita. Uma
santinha!
ALICE - Eu queria saber como é, ora.
ARETUSA - Saber pra que? Você nem tem namorado.
ALICE - Mas posso ter, um dia.
ARETUSA (Aproximando-se.) - Quer que eu te mostre?
ALICE (Meio assustada.) - Mostrar o que?
ARETUSA (Muito perto.) - Como se beija, ora.
ALICE (Indecisa.) — Não sei. Acho que não é direito.
ARETUSA — Não seja boba, Alice. Vem cá, deixa eu te mostrar. (Alice
aproxima-se, Aretusa abraça-a.) Feche os olhos, solta o corpo, isso,
assim.
(Beijam-se longamente, enquanto Aretusa acaricia os seios de Alice.
Alice
afasta-se, meio tonta, mas sem brusquidão.) Então, gostou?
ALICE (Confusa.) — Não sei bem... É engraçado.
ARETUSA (Rindo muito.) — Engraçado? Engraçado é o que vou te
mostrar agora, quer ver? (Levanta a saia, de costas para a platéia.)
ALICE — Aretusa, você é louca! Você... você pintou de louro!
CENA 12
ALICE e ARETUSA
No quarto. A cena se passa no presente. Aretusa está na janela,
fumando e olhando para fora.
ARETUSA - O céu está ficando cheio de nuvens escuras. Acho que vai
chover.
ALICE — Que dia mais triste. Nem parece domingo.
ARETUSA — Pois para mim domingo sempre é triste.
ALICE - Pensando bem, para mim também. Fico meio ansiosa quando
não tem nada para fazer.
ARETUSA (Irônica.) — Alice, a formiguinha laboriosa...
ALICE - É que eu gosto de estar ocupada.
ARETUSA (De repente.) — Estive com Evelyn há pouco. Deixei ela
quase dormindo. (Intrigada.) Sabe, Alice, é tão estranho: ela não diz
que
Cristiano está vivo, mas age como se estivesse. Até tenho medo de
começar a
escutar o menino correndo por aí.
ALICE (Impressionada, mas disfarçando.) — Não diga bobagens,
Aretusa. Você acha que ela está melhorando, como Bruno disse?
ARETUSA (Suspirando.) - Não sei. Faz apenas alguns meses que o
menino morreu. Depois, quem sabe, ela se recupera.
ALICE — Pode ser. O tempo, não é? O tempo é remédio para tudo.
ARETUSA (Ambígua.) - Ou quase tudo.
ALICE - O quê?
ARETUSA — Nada. Você está falando como uma velha.
ALICE (Divertida.) — Eu estou velha. Pelo menos é assim que estou
me sentindo agora. (Cansada.) Vou me deitar um pouco. Acho que tomei
vinho
demais na hora do almoço. Vinho me dá um sono. E aquela cena com Renato.
Não sei, fiquei abalada.
ARETUSA - Coitado dele.
ALICE - Você entendeu o que ele gritou naquela hora?
ARETUSA (Distraída.) - Ele quem?
ALICE - Renato. Na janela.
ARETUSA — Ele bebeu demais. Tem bebido muito, aliás. Seu irmão é
cheio de complexos, de problemas. Por causa do velho. Você sabe melhor
do
que eu.
ALICE (Insistente.) — Mas o que foi que ele gritou? Pode parecer
esquisito, mas tive a impressão que ele chamou nossa mãe. Você acha que
ele
chamou nossa mãe? ARETUSA (Segura.) — Não. Ele chamou Deus. Ouvi
muito bem. Ele gritou: “Deus!”
ALICE (Intrigada.) — Deus? Por que Renato se lembraria de chamar
logo por Ele? ARETUSA (Vaga.) — Ah, tanta coisa, sei lá. (Noutro tom.)
Você
sabia da história do enterro da sua mãe?
ALICE — Não, não sei de nada. Eu lembro que levaram nós três para a
casa de um vizinho, uma coisa assim. Aliás, é esquisito, fora isso não
lembro
nada daquele tempo. Acho estranho, porque já tinha uns cinco ou seis
anos.
Devia lembrar, não devia? Mas não lembro. E nós não vimos nada.
ARETUSA - Renato viu. Fugiu da casa do vizinho, ficou escondido e
viu tudo.
CENA 13
PROFESSOR, PADRE e RENA TO MENINO
Nas últimas falas da cena anterior acendeu-se a luz sobre o Plano do
Inconsciente/Memória
Ao lado de um caixão de defunto, estão o Professor e o Padre.
Escondido, Renato observa tudo.
PROFESSOR - O que é que o senhor está fazendo aqui? Não mandei
chamar padre nenhum.
PADRE (Brando, mas severo.) — Nessa hora, Professor, não precisa
chamar nenhum padre. O nosso lugar é perto dos que sofrem.
PROFESSOR O seu lugar é junto dos que acredita na religião. Não
aqui.
PADRE (Aponta o caixão.) - Preciso encomendar a Deus a alma desta
nossa irmã.
PROFESSOR (Sarcástico.) - Alma, o senhor disse alma? Encomendar
a Deus? Deus? (Ri.) Não acredito nessa fantasia, que só serve para
consolar
os fracos.
PADRE (Paciente.) - A fé é problema de cada um. No fundo de seu
coração.
PROFESSOR - No fundo de meu coração não existe fé nenhuma.
PADRE - Mas a sua esposa...
PROFESSOR (Cortando.) - Ela está morta. Acabou, só isso. E o
senhor, por favor, saia daqui.
PADRE - Mas Professor, eu tenho o dever de...
PROFESSOR- O senhor não tem dever de nada . Eu é que tenho o
dever de expu1sá-lo daqui .
Saia já. (O Padre queria insistir mais. O Professor faz um gesto
ameaçador e ele sai. O Professor fala sozinho, para si mesmo.) Deus...
Deus
nunca teve nada a ver comigo. Deus nunca entrou dentro desta casa!
(Cobre o
rosto com as mãos. A luz diminui sobre ele enquanto incide, mais forte
sobre
Renato escondido. Ele chora baixinho. A gargalhada infantil corta a cena
enquanto a luz acende sobre a próxima.)
CENA 14
ALICE, ARETUSA e EVELYN
No quarto de Evelyn. Evelyn mantém os olhos fixos e o boneco nos
braços. Alice e Aretusa procuram distraí-la.
ARETUSA — Mamãe? Coitada, está tão velha. E completamente
caduca. Lembra dela, Evelyn?
EVELYN (Embalando o Palhaço.) — A sua mãe? Lembro, lembro sim.
ALICE — Ela era cheia de manias. Carregava sempre um saco
abarrotado de coisas.
ARETUSA — E não perdeu a mania. Já está com um ombro mais
baixo que o outro, de tanto fazer força.
ALICE — Mas que tanto ela guarda lá dentro?
ARETUSA — Ah, sei lá, tudo. Ela não joga fora nada. Vai tudo para
dentro daquele saco. (Suspirando.) E Renato, bem, Renato é aquilo que
vocês
sabem. Tão inseguro. Acho até bom dar aulas. Pelo menos assim saio um
pouco, vejo outras pessoas.
ALICE - A gente tem que se manter ocupada.
ARETUSA — Se eu ficasse o dia todo em casa, acho que
enlouqueceria.
ALICE — Sabe, Aretusa, andei reformando aquele jardinzinho na frente
de casa, lembra dele? Era tão sem graça. Pois agora está ficando lindo.
Plantei
umas roseiras, umas margaridas. (Mostra as mãos.) Olha só as minhas mãos
como estão ásperas de tanto lidar na terra. (Rindo.) Sem falar na
cozinha.
ARETUSA - Adoro jardins. (Para Evelyn.) Quando arrancarem aquele
toco de álamo no pátio, você bem que podia fazer uns canteiros, plantar
algumas flores.
ALICE (Animada, para Evelyn.) — Posso te ensinar como se faz. Já
tenho alguma prática.
EVELYN (Distraída.) — Está bem. Quando arrancarem o toco.
ARETUSA - Você vai gostar.
ALICE — É tão bom mexer na terra. Depois ver as plantinhas
crescerem. Tem umas que crescem tão depressa. Você planta num dia e no
dia seguinte já tem um verdinho brotando.
ARETUSA (Sonhadora.) - A vida brotando... Jardim é uma coisa tão
linda.
ALICE (De repente.) — Aretusa, você lembra do Jardim das
Hespérides?
ARETUSA - Jardim de que?
CENA 15
ALICE, ARETUSA, EVELYN e RENATO MENINOS
Enquanto elas falam, na cena anterior, acendeu-se a luz no Plano do
Inconsciente/ Memória. Talvez essa cena possa ser feita também junto ao
tronco decepado da árvore. As três estão sentadas, brincando. A parte,
Renato
observa disfarçadamente, enquanto finge estar absorvido com outro
brinquedo
— por exemplo, um ioiô ou um carrinho.
ALICE — Das Hespérides. Jardim das Hespérides.
EVELYN - Mas o que é isso, Hes... Como é mesmo?
ALICE (Paciente e um pouco exibida.) — Hes-pé-ri-des. Eram umas
bruxas, fadas, princesas, não sei bem. No livro não explica direito. Só
diz que
elas cuidavam dum jardim onde tinha uma árvore com pomos de ouro. Ah:
tinha também um dragão de cem cabeças.
ARETUSA - Como? O que é isso?
ALICE - E uma fruta. Assim que nem maçã, laranja. Mais ou menos
isso. E uma delas tinha o seu nome. Aretusa.
ARETUSA - Deus me livre! Eu tenho horror desse nome. No colégio
todo mundo me chama de Aretusa-Medusa.
EVELYN — Medusa não era aquela que tinha cabelo de cobrinha e
matava as pessoas só de olhar para elas?
ALICE (Exibida.) — Ela não matava as pessoas. Ela olhava as pessoas
e daí as pessoas se transformavam em pedra. Era muito má.
ARETUSA (Querendo mudar de assunto.) – Mas o que mais essas
Hespérides aí faziam?
ALICE - Nada, cuidavam do jardim com a árvore.
EVELYN — Mas então devia ser muito chato. Imagine, ficar o dia
inteiro cuidando duma árvore. Ainda mais com um dragão do lado.
ALICE (Meio irritada.) — Bom, acho que elas não faziam só isso.
Decerto bordavam também, dançavam, cantavam.
ARETUSA - De dançar eu gosto.
EVELYN — E que árvore era essa? Árvore do Paraíso?
ARETUSA (Maliciosa.) — Não, essa era outra. Vai ver, era a Árvore do
Pecado, aquela da cobra... (As três dão risadinhas e cochicham. Alice e
Aretusa muito cúmplices, unindo as cabeças, Evelyn sem entender muito
bem.)
EVELYN (Impaciente.) — Então tá. Vamos brincar logo.
ARETUSA - Mas eu acho que não quero brincar disso.
ALICE — Mas por quê, Aretusa? Você não gostou da história?
ARETUSA — Da história, gostei. O que eu não quero é me chamar
Aretusa. Senão me chamam de Aretusa-Medusa.
ALICE — Ninguém chama. Você tem que ser Aretusa.
ARETUSA (Para Evelyn.) - Você jura que não chama?
EVELYN (Beijando os dedos em cruz.) - Por esta luz que me alumia.
Juro.
ARETUSA - Então está bem. E o álamo pode ser a árvore dos pomos
de ouro.
RENATO (Aproximando-se.) - Eu?
EVELYN (Agressiva.) - Você o quê?
RENATO - Eu quero brincar também. O que é que eu sou?
ALICE - Não pode. Esta brincadeira é só de meninas.
ARETUSA (Maliciosa.) — Deixa ele brincar. Eu sei o que ele pode ser.
RENATO (Animado.) - Um guarda do castelo? Um pomo de ouro?
ARETUSA (Rindo.) — Não. O dragão de cem cabeças. (Ouvem-se as
batidas da bengala do Professor.)
CENA 16
ALICE e ARETUSA
No quarto. As duas estão se preparando para o jantar. Alice já está
vestida e arruma os cabelos, mas Aretusa, de combinação, fuma
preguiçosamente.
ALICE — Acho que estou pronta. E você, não vai se vestir?
ARETUSA — Calma, calma, já vou. (Crítica.) Alice, por que é que você
ainda usa esse penteado? Envelhece uns dez anos, sabia?
ALICE (Dando de ombros.) — E o que tem isso? Eu não me importo.
ARETUSA — Bem, se quer parecer mais velha ainda, o problema é
seu.
ALICE (De repente, em tom misterioso.) — Aretusa... você não ouviu
alguém correndo aqui em cima, logo depois que Renato deu aquele grito?
ARETUSA - Não ouvi nada.
ALICE - Pareciam uns.., uns passos.
ARETUSA - Que passos, Alice? (Não parece impressionada e começa
a vestir-se.)
ALICE (Misteriosa.) — Uns passinhos... rápidos, leves. Pareciam
passos de criança.
ARETUSA (Dando de ombros.) — Deve ter sido sua irmã. Só pode ter
sido ela. O resto da família estava lá em baixo, almoçando.
ALICE (Disfarçando a perturbação.) — Claro. Só pode ter sido Evelyn.
ARETUSA (Implicante.) — Cuidado, Alice, cuidado. Você ainda não
tem cinqüenta anos e já vai começar a caducar? (Ambas já estão
completamente vestidas. Alice ri, um pouco nervosa.) Estou pronta.
Então,
vamos descer? (‘A risadinha gravada finaliza a cena.)
CENA 17
TODOS PRESENTES
No final da cena anterior, a luz acendeu-se sobre a sala de jantar.
Enquanto Alice e Aretusa descem, Berta ajuda o Professor a sentar-se.
Bruno,
Renato e Evelyn também sentam. Berta coloca-se à parte, em pé Tudo é
lento.
Talvez meio ritualístico. Evelyn tem o Palhaço no colo. Comem devagar,
passando-se os pratos em silêncio e, a princípio, em paz.
ALICE (Sorridente.) — Que bom que estamos todos juntos. Pena que é
por tão pouco tempo. Amanhã de manhã já tenho que voltar.
ARETUSA (Para Renato.) — E nós, quando vamos?
RENATO (Distraído.) — Acho que amanhã também, não sei.
ARETUSA (Irritada.) - Como não sabe? Eu tenho que dar aula amanhã
à tarde.
RENATO (Imperturbável.) - Tudo bem. Amanhã a gente vai.
ARETUSA (Irônica, imitando.) — Tudo bem, tudo bem... Para você está
sempre tudo bem. Claro, não é você quem se mexe. Mas se não fosse eu,
queria só ver se ficava tudo bem.
ALICE (Irritada, mas com certa delicadeza.) — Aretusa, você não pode
parar com isso?
Já tem tanto problema aqui, ao menos vamos comer em paz.
ARETUSA (Agressiva.) — Não se meta, Alice.
ALICE (Agressiva.) — Você não desconfia que sempre estraga os
encontros da família? Não desconfia que está destruindo a vida de meu
irmão?
RENATO (De repente, parando de comer.) — Alice, acho bom você
não se intrometer.
ALICE (Espantada.) O que? Você está contra mim? Mas Renato, eu
estou tentando defender você!
ARETUSA (Cortante.) Não queira ser a palmatória do mundo, Alice.
Você tem a obsessão de julgar os outros, já notou?
ALICE - Eu não julgo ninguém.
ARETUSA (Lenta e cruel.) - Nem ama ninguém. Nunca amou. Nem o
seu marido e os seus filhos você ama de verdade. Faz tudo por eles,
banca a
escrava deles, apenas porque tem medo da solidão. (Mais alto.) Você não
ama
ninguém, Alice.
ALICE (Chocada.) — Eu? Logo eu, que tenho dedicado aos outros a
minha vida toda, esfolando as mãos, esquecendo a aparência, levantando
cedo
todos os dias — e apesar de tudo me sentindo feliz com essa vida.
(Desafiadora.) Isso mesmo: feliz.
ARETUSA (Debochada.) — Ora, Alice, não venha se fazer de santa,
não venha. Você, sempre cheirando a fritura... A galinha choca dos
filhos... E
seu pai aqui, apodrecendo! Onde foi que você andou esse tempo todo,
hein?
(Cada vez mais alto.) Sua irmã meio louca de dor e você por pouco nem
vinha.
Senti na sua voz, não tinha vontade de vir. Apenas aceitou porque pegava
mal.
Pegava mal você se desinteressar completamente.
ALICE (Indignada.) - Você não sabe o que está falando. Como pode
falar assim diante de papai?
ARETUSA - Seu pai conhece você há muito tempo. Ele conhece a
família que tem. Quantas vezes você o visitou nesses anos todos, desde
que
se casou? E quando Cristiano estava no hospital, quantas vezes ficou à
noite
com ele, hein?
ALICE — Fiquei, sim. Fiquei duas noites inteiras.
ARETUSA (Irônica.) — Duas noites? Duas noites inteiras? Mas que
sacrificada...
Pois eu fiquei cinco, dez, quinze noites. Até perdi a conta.
ALICE (Levantando-se e derrubando a cadeira.) - Pare de me acusar!
Afinal, quem é você? Pensa que só porque teve outra educação, porque é
independente e trabalha fora, é melhor do que eu? Você uma vez me disse
que
destrói as coisas ao seu redor, e é verdade. Você estragou a vida de
Renato. E
não foi só isso. (Lenta e cruel.) Você acabou também com aquela menina,
Corália, que se transformou numa morta-viva por sua culpa. Agora quer
outra
vítima, Aretusa? Não basta Corália?
ARETUSA (Gritando.) — Não diga esse nome, Alice. Você não tem
direito!
ALICE (Fora de si.) — Digo e repito quantas vezes eu quiser: Corália!
Corália!
ARETUSA (Cobre o rosto com as mãos, como se fosse chorar. Mas
recompõe-se.) — E você, Alice? A doméstica, a patetinha. Enganou a
todos,
até o marido, com essa história de que só faço que ele quer. (Imitando.)
O
maridinho não quer isso, não deixa aquilo... Ele só come a comida que eu
mesma faço... Que ridículo!
ALICE — Você tem inveja de mim. Inveja, é isso. Tem inveja porque
levo uma vida decente.
ARETUSA (Vulgar.) — Você, decente? Decente... logo você? Como é
hipócrita! Já esqueceu o que você fazia comigo no quarto, antigamente,
esqueceu? Quando a gente ficava sozinha? A santinha esqueceu, mas bem
que gostava... Ah, como gostava!
ALICE - Cale-se!
ARETUSA - O que a gente fazia, hein? Não vá me dizer agora que era
brincadeirinha de criança, porque não éramos mais crianças! (Aretusa
levanta-
se e sai de repente. Todos olham para Alice que, parada, começa a
chorar.)
EVELYN (Passando a mão no braço de Alice.) — Não chore, Alice.
Não foi por mal...
ALICE (Afastando brusca a mão de Evelyn) - Evelyn, quer saber de
uma coisa? Estou farta do seu teatro. (Evelyn recua, assustada.) Acha
que é a
única mulher do mundo a perder um filho? Cristiano está morto, Evelyn.
Convença-se: ele está morto. (Aponta para o Palhaço, como se fosse
tomá-lo.
Evelyn aperta-o mais nos braços.) E esse boneco nojento não vai
substituí-lo.
(Evelyn encolhe-se, atemorizada. Bruno a abraça protetoramente.)
BRUNO - Alice, tenha cuidado com o que fala.
EVELYN (Afastando Bruno.) — Acabou, Alice, agora tudo acabou.
Você pensava que estaria segura na sua vidinha confortável enquanto os
outro
iam se desgraçando? Não, você não está segura. Ninguém está. Pensa que
Aretusa já revelou tudo? Ela é louca, sim, é uma ordinária. (Olhando em
volta,
um por um.) Mas o que é que todos somos? (Lentamente.) Sei de tudo,
Alice.
Sei de tudo, você mesma me contou. Sei a história de Matias.
ALICE (Gritando.) — Tirem ela daqui! Ela está louca! (Ninguém se
move.)
EVELYN - Sei a história de Matias. Está vendo, Alice? Até o nome dele
guardei.
ALICE - Pare com isso, Evelyn!
EVELYN (Para os outros.) - É a história mais ridícula do mundo. Vocês
não sabiam, mas eu sabia. Alice, a boazinha, a dona-de-casa honesta...
Ela
tem um amante! Isso mesmo: um amante. Pensam que não é possível, mas é
possível, sim, é verdade. Um amante que se chama Matias, ela me contou.
O
que faz com ele, a cada momento, o que sente. Uma vergonha! (Gritando.)
Ela
tem um amante. Finge de santa, mas foge de casa e vai trepar com outro
homem!
BRUNO (Tentando abraçá-la.) - Evelyn, fique calma, por favor.
EVELYN (Desvencilhando-se.) -Mas o mais engraçado vocês ainda
não sabem. Vocês nem adivinham. Tudo isso, esse amante, essa sujeira,
essa
traição, foi inventado. E invenção dela. Matias só existe na cabeça
dela.
(Levanta-se e joga o Palhaço na cara de Alice.) Cadela! (Sai correndo.
Bruno
sai atrás chamando. O Professor continua a comer como se nada tivesse
acontecido. Berta parada. Renato bate ritmada e irritantemente com a
faca no
copo.)
RENATO — Evelyn está doente. Ela tem que se tratar.
PROFESSOR (Batendo a bengala.) — Berta, está na hora de subir.
(Berta aproxima- se e ajuda-o nas escadas. Saem.)
RENATO (Levanta-se inibido, e por um momento é como se fosse
fazer um gesto em direção à Alice. Mas contém-se.) — Eu vou dar uma
volta.
Boa-noite, Alice. (Sai.)
Sozinha na sala, Alice hesita por uns momentos, depois senta-se.
Acende-se a luz no Plano do Inconsciente/Memória, onde há um caixão de
defunto e, parados nos quatro cantos do palco, Alice Menina, Aretusa
Menina,
Evelyn Menina e Renato Menino.
ALICE (Em voz baixa.) — Você teve mesmo um amante, Alice? Você
rolou com ele em leitos escusos, em lençóis alheios? Ah, Matias, Matias,
como
era doce com ele... Você teve um amante, Alice? Ou foi tudo invenção da
sua
cabeça? Faz diferença saber? (Levanta-se. Apanha o Palhaço e senta-o no
centro da mesa. Sai. Uma gargalhada infantil corta a cena.)
CENA 18
ALICE MENINA, ARETUSA MENINA, EVELYN MENINA e RENATO
MENINO
A luz mantém-se ainda sobre o Palhaço, no centro da mesa, enquanto
eles falam. E falam sem as características das suas personagens: são
como
fantasmas.
ARETUSA — Como feras. Feras encurraladas nesta sala, na moldura
do espelho rachado que aceita essas imagens tão placidamente, como se
ocultasse no fundo coisas muito mais terríveis.
RENATO — Fomos uma ninhada de cachorrinhos que brincam juntos,
mas logo são capazes de se dilacerar por um naco de carne. E na hora do
perigo correm cada um para o seu lado, sem olhar para trás, sem se
importar
se o outro conseguiu escapar.
EVELYN — Crias sem mãe, num terreno baldio. Umas crianças
solitárias, esquisitas, escorraçadas. Berta tentou nos acolher no seu
avental
fedorento, mas não deu certo. Somos bichos de focinho sujo, animais.
ALICE — Eu tinha outros planos para minha vida, mas acabei sendo
Alice, a coitada, a de mãos ásperas e coração agoniado. Troquei de dono
quando me casei, fui para um proprietário menos exigente, menos violento
—
mas meu dono. E a minha vida, o que eu fiz com a minha vida? O quê?
CENA 19
ALICE, ARETUSA, RENATO, BRUNO, BERTA, MARIDO e FILHO
Na sala. Manhã de segunda feira. Chove muito. Há uma toalha limpa
sobre a mesa onde estão Alice, Renato e Bruno, tomando café. Berta está
parada atrás. Todos estão calmos e compostos.
ALICE (Para Renato.) — Você não ficou dolorido? Duas noites
seguidas naquele sofá acabam com as costas de qualquer um.
RENATO - Não. Tudo bem, tudo bem.
BRUNO (Para Berta.) — Berta, pode levar a bandeja para Evelyn. Ela
não vai descer. (Berta apanha uma bandeja com café e sai.)
ALICE (Para Bruno.) - Evelyn não está bem?
BRUNO (Sorridente.) — Pelo contrário, está ótima. Ela dormiu melhor
essa noite.
A chuva forte dá vontade de dormir. Só precisa de repouso agora.
(Noutro tom.)
Você me alcança o açúcar?
Alice alcança. Aretusa desce a escada, de robe, com cara de sono.
Passa a mão no cabelo de Renato, que sorri sem levantar o rosto.
ARETUSA (Acendendo um cigarro, para Alice, afetuosa.) — Então,
Alice, feliz por voltar para casa?
ALICE (Tranqüila.) - Feliz. (Uma pausa. Todos sorriem e tomam seu
café. Alice olha devagar em volta.) Sabe, Aretusa, numa hora em que meu
marido estiver de bom-humor, vou pedir para colocarmos um espelho grande
na sala lá de casa. Dizem que dá impressão de mais espaço. O que é que
você
acha?
ARETUSA (Sorridente.) -. Passa o leite?
Alice estende-lhe o bule de leite. As duas se olham longamente. Em
outro plano, acende-se a luz sobre a sala da casa de Alice. O Marido e o
Filho
estão à mesa, tornando café, exatamente como na primeira cena do
primeiro
ato. Nos outros planos, acendem-se luzes e sobre algumas das cenas já’
vistas
- Corália na cadeira de rodas, o Professor no quarto, Evelyn embalando o
Palhaço, Renato Menino preparando a arma, Berta recortando revistas,
Alice e
Aretusa adolescentes, se acariciando, etc. Ninguém diz nada. São como
quadros vivos. Ou fantasmas do passado que continuam a habitar a casa. A
luz
apaga lentamente, em resistência. Ou de brusco, num soco - talvez com a
gargalhada infantil.
(Em fevereiro de 1984, Porto Alegre, calor de 40º.)
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