A Lenda do Menino do Pastoreio - 906 - Críticas da rainha

Teatro em meio a pandemia


                              Falar de temas de escravidão no Brasil (ultimo país onde os escravos foram oficialmente liberados) é extremamente audacioso, pois as questões raciais podem gerar debates acirrados e complexos. Cléber Lorenzoni dirigiu em quatro dias uma peça simples, mas singela, eficaz mas com um leve resbalão no melodrama. A Lenda do Negrinho do Pastoreio, aqui adaptada para "menino do pastoreio" quer realçar que antes de qualquer questão de raça trata dos sofrimentos de um menino, uma criança. 

                                            O espetáculo profundamente humano, carrega a estrutura medieval de sottie ou auto, tudo se encaminha para que uma figura religiosa se apiede dos sofrimentos do homem. Aqui, no caso, de um escravo, o que torna ainda mais emblemática  a lenda. Um grito certamente humanista em relação ao desumano tratamento relegado aos escravos. 

                                           A dramaturgia assinada por Lorenzoni revela um senhor de escravos que se apega ao menino domador dos cavalos e quase o considera como filho. Olga interpretada por Clara Devi faz a linha abolucionista que não compreende como alguém pode ser "dono de pessoas".  Mesmo na ação inicial Cléber Lorenzoni já troca os clichês gerados por nossos preconceitos, nos oferecendo uma realidade muito ousada, a afilhada da empregada é branca e os patrões são negros. 

                                             Porém é a poesia de Vitoria Santa Cruz que vai se transformando em outra coisa muito mais questionadora, que mais me atrai no espetáculo. Eu sou branca, e o homem ao meu lado é preto. São duas cores... Não é moreno, ou pardo, ou caboclo...  A raça branca subjuga até mesmo a cor do outro pois não a tolera enquanto raça... 

                                              Agora o que essa senhora precisa realçar é que esse trabalho, sensível, foi concebido em apenas quatro dias. No palco atores conhecidos ao lado de jovens iniciantes. Cléber Lorenzoni, Renato Casagrande e Alessandra Souza são atualmente a cara do Máschara, os três estão em praticamente todos os trabalhos da companhia. São atores tradicionais já, quando um deles está no trabalho você sabe que no mínimo haverá profissionalismo. Por isso é tão bom ver Clara Devi despontando, a Alice de Tem Chorume no Quintal nos oferece uma composição muito mais madura e definida. Seu jogo em cena com o ator Renato Casagrande é gostoso, ritmado. 

                                                No elenco mais jovem, Beraldo e Toninha estão de volta, dessa vez ele como protagonista. Nicholas Miranda recebeu o texto no domingo e na sexta ocupa espaço central da nova montagem do Máschara. Uma confiança delegada há poucos desde que conheço o grupo. Não sabemos se o jovem ator pretende continuar, se realmente sentiu a arte lhe escolher, mas nós enquanto plateia gostamos do que vimos. Laura Heger se destaca na pequena Xiquinha, mas pode e deve se dedicar mais para extrair tudo o que Pinguancha pode lhe oferecer.  Alessandra Souza pode buscar mais maturidade para sua personagem, talvez mais humanismo.

                                               A lenda do Pastoreiro já foi contada por muitos escritores, destacando-se a versão de Simões Lopes Neto e ainda Clarice Lispector. Lorenzoni nos dá nova versão, aqui o menino "Nerêncio" tem como inimigo o revoltado Neco que por inveja  acaba impondo sobre ele um terrível mal. 

                                         A grande dificuldade em assistir teatro através de plataformas ou redes sociais, é o fato de que na maioria das vezes os grupos que dominam tanto o palco, não estão preparados, ou não tem equipes técnicas capazes para executar um bom trabalho frente às câmeras. 

                                        O espetáculo passeia por algumas linguagens bastante distintas, a própria farsa  parece muito presente na dramaturgia e na atuação de alguns personagens. A maquiagem reflete isso de forma um tanto imprecisa, não funcional. Talvez a simbologia pudesse ser mais pontual. O cenário é bonito, mas os rasgões dos painéis precisam ser mais expressivos ou então tirados da peça. 

                                              A trilha sonora  é bastante eficaz, embora muitas vezes apenas sublinhe a cena. O figurino é repleto de acertos  típicos de Renato Casagrande e de sua assistente. Porém no prologo a escolha das roupas poderia ser mais precisa. Quanto a iluminação, o que posso dizer é que certamente houve uma rascunho de uma ideia, no entanto na filmagem que assisti, mais atrapalhou do que pontuou.                       

                                              A simbologia, o lúdico, a poesia, tudo converge para um bom efeito que será certamente objetivado com mais tempo de pesquisa e trabalho. As rápidas transformações, a corrida de cavalos de pau, a composição dos velhos, são méritos dessa capacidade do grupo em compor produtos rápidos, mas tudo deve ser mais ensaiado para chegar ao padrão do Máschara.

                                              Terminei o espetáculo tocada pela forma cândida como  o enredo foi fechado e parabenizo a atitude corajosa de manter viva a chama do teatro. O Máschara sempre desponta se reinventando e impedindo que esqueçamos a necessidade da arte.



                                                           Arte é vida


Clara Devi (***)

Laura  Heger (**)

Nicholas Miranda (***)

MArtha Medeiro (***)     

Kauane Silva (***)                                          

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