857/858-Tem chorume no quintal - (tomo 06/07)

         Ouvi dizer que muitos estão interessados em me conhecer pessoalmente. Não queiram conhecer a mim, queiram sim ouvir minhas ideias. As pessoas preocupam-se muito com aparências, com sentimentos, com sensações e muito pouco com ideias, com reflexões. Sou apenas uma senhora que ama teatro, que reverencia a arte. Uma senhora aposentada que quando jovem não teve coragem de fazer teatro, de mergulhar em seus sonhos, que foi deixando para depois movida talvez pelos áureos anos setenta e oitenta. Hoje olho os jovens, os românticos, os desiludidos, os velhos, os desempregados, os ricos e me pergunto onde residem nossos erros, por que tudo parece tão adverso, por que sofre-se tanto, por que reclama-se tanto se temos tanto a nossa disposição. Por que as escolas estão tão defasadas, por que lemos tão pouco, por que estamos cada dia mais violentos. Não será por que preocupa-se mais com o sentir do que com o pensar?
            Algumas pessoas sentiram-se frustradas quando o ator Marcus Caruso, quando ele revelou ao fim do seu monólogo, (o primeiro no qual se arriscou em sua carreira), que Philippe Dussaert não existia. Philippe era apenas um signo, um simbolo da hipocrisia. Um signo para denunciar a ilusão das aparências. Mas o público em sua maioria não quer pensar. Pensar dói, pensar custa, pensar na maioria das vezes revela, e quando revela, talvez não sejamos fortes o suficiente para enfrentar a conclusão do pensar. Caruso foi doce comigo, recebeu-me cedo no camarim, como quem recebe uma amiga em sua casa. Não tiramos fotos, na minha idade considero fotografias e espelhos invenções malignas. Mas deu um caloroso abraço a essa amiga que o assistiu em O vento do mar aberto, interpretando o malicioso "Rafa". Os anos passam depressa, e é muito gostoso ver seus ídolos amadurecendo, crescendo. 
           Hoje em dia quando vejo algum jovem ator, torço por ele, torço para ter forças para lutar, para enfrentar as dificuldades da profissão. Ser ator é gritar: "Sim eu posso ser o que eu quiser." Hoje pela manhã eu assisti "Chorume no quintal" com respeito pelos atores da Cia. Máschara. Que tanto se esforçam, que tanta garra tem. Que levaram ao palco um espetáculo tão lindo e que tão pouco foram respeitados e valorizados. Uma professora me disse que não pagaria o ingresso do espetáculo por que sempre colocava moedas na caixinha do calçadão. Ao que lhe respondi: Logo não mais terá onde colocar sua moedinha, afinal se esse grupo não é respeitado ou valorizado, não durará muito! -Mas sei que durará, foram vinte e sete anos. Um grupo que nasceu para permanecer. O Máschara é muito mais do que um grupo de teatro, é um espaço de luta, de aprendizagem, de reflexão. O Palacinho na esquina da Barão é como o sobrado do Terra Cambará, último reduto dos republicanos de Santa Fé. Ele pulsa, como diria José Lírio (o liroca), há algo de extremamente humano naquele casarão. Um marco. O velho e o novo. A arte que emana dali. 
           Dali surgiu Tem chorume no quintal. Das loucuras mentais do diretor Cléber Lorenzoni, das complexidades contraditórias de Alessandra Souza, das rabugentices de Renato Casagrande. Alí formou-se um grande diretor, exigente, profissional, genial. Dali surge uma atriz esforçada, surpreendente, intensa. Deli brota um artista sensível, multiforme, incansável. Por ali passam jovens que querem expressar-se, que tem sangue quente correndo nas veias. Clara Devi que mal contem-se dentro de si, tamanha sua fome de palco; Evaldo Goulart, espontâneo, indomável; Vagner Nardes, talentoso, observador, intenso; Stalin Ciotti, detalhista, perspicaz, reflexivo. Na ESMATE forja-se pontos de vista, ideias, ideologias. Os atores no palco hoje pela manhã e a tarde, contrastavam-se de forma equilibrada. Uns com mais garra, outros com mais conhecimento, mas todos unidos pelo objetivo de fazer dar certo. De tocar a platéia. As crianças que chegaram já conhecendo o Máschara, essa potencia de nome poderoso, foram para casa satisfeitas. Levaram mais do que vieram buscar, sejam os ensinamentos do diretor no interlúdio do diretor, seja nos diálogos lúdicos do seu Zeca, nos ensinamentos de Alice e LAércio, nos gracejos de Cremosina e Junior, ou nas colocações maldosas que não devem ser seguidas, de Office e MAdame Rafaela. 
              Parece que os atores do Máschara passaram anos estudando, para hoje nos dar esse agradável espetáculo. Cléber Lorenzoni, Renato Casagrande e Alessandra Souza estão prontos. Nada a declarar. É sem duvida a melhor criação de Alessandra Souza. Renato Casagrande está em sua maturidade, senhor da cena. Cléber Lorenzoni faz uma vilã forte, divertida, maquiavélica, engraçada. O fato de ser praticamente uma drag na cena,  faz um grande serviço a comunidade gay, ainda que sem levantar bandeiras lgbt, ora, as crianças das escolas apaixonam-se por madame Rafaela, e muitos jovens gays descobrem através do teatro que não há problema algum em ser gay, ouser drag, ou ser travesti, o problema é sim o caráter, esse sim é o erro de MAdame Rafela, não se ela é colorida, afeminada ou seja o que for. 
             O espetáculo da manhã foi emocionante, divertido, repleto de ritmo. A encenação da tarde foi mais lenta, parecia desconcertada. Alessandra Souza entrou na cena sem óculos, eu percebi por que já havia visto nas duas seções do dia anterior que a personagem usava óculos vermelho. Porém quando LAércio entrou com o óculos, pareceu que Cremosina desconcentrou-se inteira. O cachorrinho sobre o muro foi divertidíssimo, não me recordo o nome dele, mas seu salto nos últimos instantes pareceu fechar com chave de ouro. Clara Devi brilhou lindamente, ainda pode render muito mais, crescer mais, aprender mais. Mas me orgulha muito vê-la na cena. Foi um dia de altos e baixos como qualquer espetáculo. Público pequeno em comparação ao de Lendas da Mui Leal Cidade em 2018. Uma pena, os jovens saem perdendo. Mas não sei até que ponto os educadores pensam sobre isso. 
              Algumas piadas as vezes precisam ser mais cuidadosas, sem apelação. Os técnicos precisam estar atentos, receber o público com motivação. O fato de haver um compromisso após o espetáculo não deve desconcentrar os atores. Tudo isso esse brilhante elenco já sabe, mas as vezes parece esquecer.


Arte é Vida
   
                                 A   Rainha
             
Alessandra Souza (***)(*)
Cléber Lorenzoni (***)(*)
Renato Casagrande (**)(**)
Stalin Ciotti (**)(**)
Clara Devi (***)(**)
Evaldo Goulart (***)(**)
Vagner NArdes (***)(**)
Kauane Silva (***)(**)
Laura Hoover (*)

                    

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