DCCCXLI - Paixão de Cristo - Ano III (tomo I)

O começo de uma tournê


Após o espetáculo oferecido de bandeja pelos atores do Máschara ao público do carnaval de Cruz Alta, esperava ansiosa por nova incursão de tal talento aos palcos. O A Paixão de Cristo - Da última ceia a ressurreição - foi estrear em Ijuí, cidade vizinha a Cruz Alta. Eu como não podia deixar de ser, parti com um grupo de amigas até a praça da república. O espetáculo iniciou um tanto atrasado, mas dava para ver que sem preconceito algum os ijuienses decidiram prestigiar o teatro cruzaltense. Talvez para fazer comparações, talvez por curiosidade, talvez mesmo por um apreço ao teatro.
Dois palcos posicionados paralelamente à prefeitura tentavam estabelecer o universo bíblico das últimas horas de Cristo na terra.
A produção assinada por Cléber Lorenzoni e Renato Casagrande, une atores, alunos do ESMATE e entusiastas da arte. Todos eles acabam sendo figurinistas, cenógrafos, iluminadores, técnicos de áudio, projecionistas, cinegrafistas, profissionais de segurança, divulgadores, maquiadores, cabelereiros, coreógrafos, essa é a realidade do Máschara e sua maior escola, seu legado àqueles que se tiverem sensibilidade e percepção, carregarão para sempre as sabedorias praticadas advindas dali.
Soube pela boca do diretor que tudo o que fora ensaiado durante os quatorze ensaios do espetáculo foi mudado de lugar para adaptar-se ao espaço cênico. Eis aí o primeiro mérito da equipe. Quem observou cena à cena certamente julgou-as reflexo de meses de ensaios da forma apresentada. Aprofundando o trabalho proposto nos anos anteriores, o dramaturgo nos oferece cenas bastante bem desenvolvidas, além de belíssimo apelo visual, uma estética ímpar com relação à cores, distribuição equilibrada pelo palco e vibração. Lorenzoni  pareceu  agradar grandes e pequenos, jovens e velhos, mais e menos intelectualizados, o que se percebeu pelo caloroso aplauso ao final do espetáculo. Algo grandioso e apoteótico, digno do jeito épico com que Cléber Lorenzoni apresenta seu teatro.
O discurso socialista de Jesus poderia ser mais profundo, mas conheço e aprecio a forma Aristotélica com que Cléber nos traz a arte. Os pontos de vista políticos estão dispostos de forma muito sutil e podem sim levar a grandes reflexões.  A escolha pelo misto entre teatro italiano e palco de galeria em algumas vezes embolou os atores. Exemplo disso foi a cena dos romanos torturando Cristo nas escadarias da prefeitura. É preciso sempre levar-se em conta onde esta o foco de uma cena e nunca cobri-lo.
Paulatinamente a curva vai se estabelecendo e ainda que os áudios deem ao espetáculo um caráter gessado, o elenco consegue grandes interpretações. O Jesus de Cléber Lorenzoni está muito mais interessante do que o messias de 2018. Havia nele mais dor, mais desencanto com a humanidade. Aliás esse Cristo foi muito mais atenazado que os dos anos anteriores. O Soldado Romano de Stalin Ciottti esteve muito bem, e sugiro aos colegas de cena que interpretam Romanos, que se inspiram nele. Fábio Novello deveria optar por um elmo semelhante ao do romano misterioso que suponho fosse Casagrande. Pois vemos distintamente que trata-se de Pilatos que estaria presente nas cenas finais.
A atriz Eliani Alessio vinda de Panambi, concede ao espetáculo uma perfeita Claudia Prócula, resignada, servil e submissa. A atriz apenas deve cuidar para que a roupa de baixo, cinza ou azul não apareça no seu colo. A direção do espetáculo conseguiu dar um ótimo contraponto entre as patrícias e as mulheres árabes, representadas aqui pela Salomé de Laura Hoover. Eliane enxuga a face de Cristo, no entanto de alguma forma me pareceu que a cena nãos e concluiu, talvez falte ali algum arremate.
Os discípulos principais do Messias, apóstolos, ganharam nessa edição do espetáculo uma força cênica maior, e a cena estática dos homens de cristo enquanto ele chorava em primeiro plano foi de emocionar até o mais sético.
A rua tem sobre o teatro um poder de confrontar ficção e realidade. A ausência da rotunda, coxias e etc..., confere a cena uma veracidade assustadora e poderosa. Talvez até emocionando mais que em uma câmara fechada.
As mulheres bíblicas que foram por mais de mil anos relegadas às lágrimas e à anulação, ganham através do espetáculo uma profundidade marcante. O que pensa Maria sobre Deus, o que pensa Madalena sobre sua condição? Nunca saberemos, mas nesse espetáculo ousamos ao lado delas, nos questionarmos. A Maria de Dulce Jorge trouxe novamente a grandeza artística da primeira encenação em 2017. A Maria de Alessandra talvez tenha ficado mais revoltada, sua triangulação com a atriz Dulce Jorge funciona, mas na cena da crucificação ainda parece faltar algo. Algo das “mulheres aos pés do cristo”. Eu aprecio muito a força de Alessandra Souza, atriz que já observo a anos. Apreciaria ainda mais vendo-a interpretar uma vilã nessa peça.
O palco de Herodes foi uma revelação a parte. Um dos trunfos do espetáculo. Os quatro dançarinos foram exímios. Envolvendo-se no fundo do palco, dançando, provocando, torturando o apostolo Pedro. A Salomé de Laura Hoover elevou a cena de Antípas, as provocações, o olhar, seu jogo com Vagner Nardes. Laura Hoover nasceu para ser estrela sobre o palco. Pode e deve se dedicar e estudar sempre para nos dar cada vez mais personagens brilhantes.
Renato Casagrande é outro dos grandes atores dos quais nós devemos nos orgulhar. Uma cria do Máschara que nos dá em troca do aplauso seu talento versátil. Judas, uma construção mesquinha, um olhar de maldade e interesse escuso. Para completar ao lado de Gabriel Giacomini, ambos dão vida aos demônios, a surpresa genial dessa encenação, onde Lorenzoni culmina com a interpretação física e quase antropológica da possessão.
Os códigos e símbolos canônicos só poderiam ser tão bem observados com a plateia parada, sentada, observando através de uma quarta parede finíssima.
Chorei, confesso em três momentos e a plateia ao meu redor em tantos outros. A adultera de Clara Devi, a tortura sofrida por Cristo, e finalmente a ressureição. Em quantas situações não queremos que alguém nos defenda, nos compreenda nos estenda a mão. O Jesus do Máschara, perdoa, aceita, compreende, fraqueja, suporta. Uma linda mensagem de tolerância pela qual vale todo o espetáculo. Curvar-se submeter-se, aceitar, perdoar, relevar, não são sinais de fraqueza, e sim sabedoria.
Ricardo Fenner volta a personagem de Kaifaz e está muito mais maduro, seu monsenhor do templo me deixa apenas uma dúvida, o que  ele pensa sobre Jesus, não o que ele fala, o que ele sente? Em Fabio Novello fica mais clara a sua postura como Pilatos. Mas Fabio Novello precisa melhorar as dublagens já que seu personagem é tão centralizador. Rick Artemii e Romeu Waier, são muito dedicados, ouço isso do próprio diretor sempre, essa foi a primeira vez que os vi no palco.  E não deixam a desejar. Cumprem de forma profissional suas funções. É hora de canalizar energia, de estudar, etc...
Na cena ainda destacam-se Felipe Padilha, Gabriela Fischer e Antonia Serquevittio que está muito mais entregue, cênica. Sua presença no senáculo é sutil e firme. A cena do templo e o trecho das mulheres de Jerusalém pedindo “amor” “Paz, “Fraternidade” e “justiça”, são cenas dignas desse grupo.
Vagner NArdes deveria voltar ao Máschara, alí é seu lugar, um ator tão talentoso. Na Paixão de 2018 não o vi tão presente, tão vivo como agora. Um digno ator em três papéis. Um deles um tipo. Vagner nos deu um Herodes de meia idade. Cansado dos problemas de Jerusalém, hedonista e astuto. Como crítica diria que ainda pode diferenciar mais o corporal de seus dois velhos. Stalin Ciotti repete o João Batista de Renato Casagrande em 2017, mas muito mais maduro, repleto de chão e uma força profética, a altura de sua dedicação. Evaldo Goulart também merece aplausos pois ainda que não tenha um papel grandioso, ele ajuda a dar suporto em várias cenas, com percepção espacial e energia, típicas da velha guarda do Máschara. No palco ainda Antonio Longui, Alcídes Cossettin, Jesmar Peixoto e Gabriel Barbosa, voluntários, entusiastas da arte, muito intensos e verdadeiros.
Para encerrar, o anjo de Douglas Maldaner, acrescendo ao espetáculo outro momento de beleza estética único, mas que pode e deve valorizar com pesquisa corporal e mais códigos de cena. A resposta está em Barba e Meyerhold que acredito trabalhe-se na ESMATE. O ator por outro lado se saiu muito bem como Thiago e foi sem dúvida um dos melhores dubladores da noite.
Foi enfim passos e mais passos a frente das encenações do anos passados.  Muito menor em encenação e muito maior em interpretação. Um arrojo. 
Apesar de tantos momentos eloquentes e inesquecíveis, alguns deslizes podem ser melhor administrados para não por em perigo a mise en scène,por exemplo os encontros entre personagens nas entradas e saídas; as luzes acesas na prefeitura revelando o Cristo subindo as escadas antes da ressurreição, e ainda a falta de discrição por parte dos atores em sua movimentação nos bastidores. 
Na operação de som Ellen Faccin pode ser mais macia.
Quanto aos figurinos, impecáveis, talvez pudesse haver uma revisão apenas nas roupas do cristo. Na contra-regragem não sei quem operou, mas acho que menos fumaça daria um efeito melhor.



O melhor – A mudança de proposta do espetáculo bem como a ótima distribuição do elenco.
O pior – As dublagens que precisam ser mais ensaiadas.


P.S Curiosa para ver as próximas três e como a cada encenação o elenco irá ficar melhor.


Arte é Vida

(***)
Cléber Lorenzoni , Renato Casagrande , Vagner Nardes, Dulce Jorge, Laura Hoover, Laura Heger, Gabriel Giacomini, Alessandra Souza, Rick Artemii, Alcides Cossettin, Stalin Ciotti, Douglas MAldaner
(**)
Ricardo Fenner, Eliani Aléssio, Kauane Silva, Gabriel Barbosa, Antonia Serquevittio. Douglas Maldaner, Jesmar Freitas, Antonio Longhi, Fabio Novello, Nicholas Miranda, Felipe Padilha, Gabriela Fischer, Evaldo Goulart, Ellen Faccin, Clara Devi, Romeu Waier, 


  A Rainha


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