836 - Auto de Natal/2018 (tomo 1)

O impossível apenas demora um pouquinho mais...


               Já estava decidido, meu domingo a noite estava reservado para ver o Grupo Máschara com suas peripécias natalinas na praça da catedral de Cruz Alta. Agora também chamada erroneamente de praça Erico Verissimo e antigamente de praça da Matriz. Sabia que teria uma apresentação por que em um rápido colóquio o diretor me confirmara quinze dias antes. Se Lorenzoni me diz que fará algo, dificilmente ele  não cumpre. 
                 Na noite do dia 16 de dezembro fui surpreendida com uma singela e tocante crônica natalina. Algo que embora me digam que fora criado de qualquer jeito em poucos dias, passa longe de um trabalho mal acabado. E isso percebe-se pela comoção que abraçou toda a platéia ao meu redor. Imagino que umas mil almas. Eu já estava um pouco cansada de esperar, ouvindo algumas canções desafinadas, mas estava tocada pelas crianças vestidas de reisinhos, ora, o teatro está realmente em todos os lugares. 
                      O Deus absolutista interpretado por Renato Casagrande sentou-se em seu trono e talvez entediado, decidiu criar. E criou coisas magnificas. Não compreendi em primeiro momento a figura ali representada por Martha Medeiro, seu figurino um tanto confuso não nos dava os signos necessários. Somente após a aparição de Laura Hoover e Douglas Maldaner a gente consegue estabelecer as convenções da cena. Hoover esteve magnífica como água. Seu misto de sensualidade com mistério ofereceram a cena o tom exato e necessário.
                        Durante o período medieval surgiram muitos tipos de teatro, micro-gêneros: Auto, Jeux, Paixão, etc... Cléber Lorenzoni busca nesses micro-gêneros o "moralidade" um tipo de teatro onde no palco vê-se abstrações que personificam ideias, com finalidade didática ou moralizante. A mulher com o bebê nos braços, protegendo-o da diversidade de um mundo violento e plural, me emocionou, por alguns instantes imaginei que a direção pode ter nos dito: -Ei, por que Deus é sempre homem? Talvez Deus seja aquela mulher com o bebê nos braços.
                          A cena do tempo funcionaria melhor em um palco italiano, na rua, parte dos símbolos dispersam-se. Cléber Lorenzoni e Alessandra Souza precisam coreografar melhor o jogo da cena. No entanto o mágico é vê-lo envelhecer e logo tornar-se aquele homem curvado com energias e linhas equânimes distintas das do ator interprete. Logo na cena inicial compreendemos que aquele senhor é especial, pela sua postura para com as crianças e através da narrativa apresentada. Talvez ele seja a criança nos braços da Deus-mulher. Maria Eduarda Jobim e Filipe Padilha dão vida às crianças carentes que ajudam a emocionar o público. 
                                   Renato Casagrande como cobrador foi bastante corpóreo, mas lastimavelmente cobriu a boca e os olhos, o que nos tirou parte da compreensão da personagem. Talvez a direção devesse intervir, ou colocar outro ator para o papel, já que Casagrande precisava de composições distintas em suas várias personagens. Ao mesmo tempo elogio a capacidade de transformação e as facetas deste grande ator. 
                                   Alessandra Souza esteve magnifica em uma de suas melhores construções dos últimos tempos. E aí ressalvo que existem dois tipos de grandes composições, a que é grande para o ator, pois exigiu dele muita pesquisa e amadurecimento. E as que comovem o público e fazem de repente a platéia o olhar com maior admiração. As vezes as duas coisas andam juntas, as vezes não. 
                                   Fabio Novello mostrou ao público uma outra veia, mais realista, mais contida, mais humana. Ao lado de Eliane Aléssio, revelação nos palcos cruzaltenses, ambos compuseram um casal verossímil, e embora soubessemos na primeira cena que eles simbolizavam José e Maria, conseguiram nos surpreender na cena final com um diapasão religioso lindo. A cena em momento algum foi clichê. Ao contrário, assim como em Lili Inventa o Mundo, o casal religioso estava ali como um simbolo de fé, realçando que não se deve esperar pelas figuras divinas para se fazer o bem ou receber algum tipo de milagre. Eliane Alessio passeia com muita maturidade pelo palco, espero vê-la em breve em outros trabalhos do Máschara.
                                      Em meio a narrativa tão emotiva, um entremezo, típico também da idade média, os entremezos consistiam em encenações breves interpretadas quase sempre por típicos bufões, realizadas originalmente entre um prato e outro durante os banquetes, alegrando assim o rei ou os fidalgos. Mais tarde passou a designar toda peça curta em um ato, representada entre dois atos de uma peça longa. Sua função era preencher os intervalos, desanuviando o clima triste, acalmando um pouco a comoção. Essa prática oferecia ao público uma previa da esperança e do "final feliz" que alcançaria-se ao fim do espetáculo. A presença do entremez foi comum até o final do século XIX muito comum no período do romantismo. Os bufões aqui eram Renato Casagrande, Gabriel Giacomini e Stalin Ciotti. A cena contagiou a todos e preparou com maestria o final ainda mais triste que estava por vir. 
                                    A alegria intensa dos dois idosos e a chegada do filho pródigo, interpretado por Douglas Maldaner, arrancou lágrimas até dos mais fortes. O espirito natalino que sempre abusa do quesito família, cumpriu-se. Aliás Douglas Maldaner também foi muito feliz na sua construção. Martha Medeiro e Gabriele Fischer ajudaram a compor a família que chega para a ceia. Ambas muito naturais e orgânicas na cena.
                                 Outro brilho na encenação, foi a presença da pequena Vitoria Ramos, que triangulou páreo a páreo com Renato Casagrande. Sua presença cênica é memorável. 
                                 Cléber Lorenzoni encerrou com lindas palavras o espetáculo, e certamente tocou fundo em todo o público presente. Eu emocionada e admirada aplaudi em pé. O teatro sempre vai chegar mais fundo no público, pois é a representação da vida. Quantas famílias com problemas financeiros, distante de seus entes queridos, quantos idosos solitários. Lembremos apenas que família não significa ligações sanguíneas, mas aqueles que escolhemos para estarem ao nosso lado. 
                                   Clara Devi deu mais uma vez provas de sua capacidade técnica, ao lado de Antonia Serquevittio e Ellen Faccin ajudaram a pôr no palco, um espetáculo simples e complexo pelo espaço em que foi apresentado


                                 Arte é Vida

Medeiro (**)
Hoover (***)
Maldaner (***)
Novello (***)
Alessio (**)
Ramos (***)
Padilha (**)
Jobim (**)
Souza (***)
Fischer (**)
Devi (***)
Ciotti (**)
Giacomini (**)
Silva (**)
   
                                   

Comentários