820 - Esconderijos do Tempo (tomo 88)

O Vôo no abismo


        A levar em conta a forma calorosa como o público aplaudiu o espetáculo  no último domingo, pode-se dizer que Esconderijos do Tempo (2006) deveria ser mais apresentado. O público do Cena às 7, acostumado com comédias e peças infantis, tem tido pouco contato com textos dramáticos a essa altura e se surpreende positivamente com esse trabalho tão intenso e profundo no auditório Prudencio Rocha. Trata-se de um espetáculo simples, de pouca complexidade onde o que realmente pesa é o trabalho de atuação. Por sinal muito capaz. Cléber Lorenzoni é sem dúvida a estrela do espetáculo, já que interpreta, o infelizmente mortal, Mario Quintana. E sua interpretação é um vôo no abismo, de uma coragem admirável. Não sei até que ponto as pessoas compreendem que personagens muito intensos psicologicamente podem guiar, mudar, rumar a vida de um ator. Cléber Lorenzoni crava uma faca em seu Mario Quintana e destrincha seus órgãos em dores, em buscas dolorosas existenciais. Do começo ao fim do espetáculo há uma melancolia de pessoa solitária, um viver suspenso da vida, um pouco sorrir, um econômico ser feliz. Ao final do espetáculo Cléber Lorenzoni está visivelmente exausto, uma exaustão digna e maravilhosa de se ver, e que só se vê nos grandes. Atores que se permitem se sacrificar para o público. Desgosto de atores que saem de cena tranquilos, nada lhes percorreu, a interpretação pouco os afeta. Voar no abismo é aceitar a vida, aceitar os planos dos Deuses. 
           Esconderijos do Tempo é orquestrado de forma esmerada. O surrealismo está no texto, está na atuação, está na poesia onírica e por vezes apunhaladora. Certas frases nos vem como socos na boca do estômago. Eu já vivo solitária há bom tempo, meus filhos e netos há muito partiram para longe do ninho. Visitam-me muito pouco,quase nunca ligam. Mario falava comigo em cena, comigo e com tantos outros na platéia. Lorenzoni nos dominou, fazia-nos rir e chorar a seu bel prazer. E sempre de uma generosidade extrema. Generosidade com as estrelas que prefulgiam ao seu redor. Algumas brilhando há anos, outras começando a lucilar agora aos nossos olhos cá na terra. Alessandra Souza e Dulce Jorge estiveram belíssimas na cena. Souza carregava o espectro com elegância cênica que poucas vezes vi nela. Mas foi em Lili com uma partitura admirável que me conquistou. Acredito que nos últimos meses Alessandra melhorou muito como atriz, mais madura, mais relaxada, mais merecedora de toda a admiração.
           Dulce Jorge e Cléber Lorenzoni formam uma dupla pertinaz. Ele sabe quando silenciar, em seu mundo de quintana para dar espaço a grande atriz a seu lado, apontando o olhar do público para a interpretação de Dulce Jorge, essa cheia de força e excelente uso dos tempos, da voz, do corpo e principalmente, do significado das palavras. Tem-se aí uma bela dupla de interpretes, em que o jogo é equilibrado e por isso bem feito.
             Quando assisti Esconderijos em Arroio do Ratos impliquei muito com Fabio Novello. Um homem de teatro, um ator que admiro mais pela sua historia até do que propriamente pelo palco. Em cena seu Gouvarinho melhorou muito. Triangulou com Mario e preencheu a necessidade do espetáculo. Meu aplauso a esse interprete.
                 Renato Casagrande é grande, grande em sua dedicação, em cada década os deuses, as ninfas, as musas, enviam grandes revelações para os palcos. Da década de 2010 eu diria que Renato Casagrande foi a grande surpresa. O presente dos Deuses para o alicerce do Máschara. Grupo que acompanho desde os primórdios. Simone De Dordi, Angelica Ertel são grandes exemplos desse maravilhoso jogo dos Deuses. O homem anda um tanto descrente, agnóstico, pobre em sua fé. Mas basta olhar para os mistérios da arte. A mais pura forma do homem homenagear a existência. Olhe para as pirâmides, olhe para a torre Eifel, olhe para a Oréstia, para a obra de Shakespeare, para os salmos de Davi e Salomão, para os jardins suspensos da Babilônia ou para a 9ª de Bethoven. O homem é pequeno em seu poder em realção a natureza e a vida, mas grande quando gera a mais pura e verdadeira arte.
                     No palco ainda a jovem Laura Hoover, desabrochando, vívida, intensa, jogando magistralmente com atores de tempos. Surge uma pequena estrela. E ela se permite voar sobre o abismo. Fazer teatro é para os fortes. No inicio é uma deliciosa brincadeira. Mas o teatro te afasta dos entes queridos, o teatro te oferece o amor da platéia e te cobra um árduo preço. Todos podem fazer teatro, mas poucos sabem o preço e estão dispostos a pagar. Eu vi, acompanhando o Máschara, erguerem-se grandes atores, caírem outros. Engrandecer-se grandes atuações, empobrecer-se outros. Aplaudi em pé grandes promessas, e logo depois as vi fugindo do teatro e assumindo suas vidas comuns longes do aplauso... Escolhas... Dores... Fazer teatro é para poucos.Eu mesma escolho a segura proteção de lugar na platéia. Laura Hoover é uma interprete cheia de vida. Linda em cena. Um arrojo.
                          Ainda nos sagrados corredores do teatro, Kauane Silva, Stalin Ciotti e Gabriel Giacomini. Kauane deve orgulhar-se da seriedade com que cumpre seu oficio. O palco depende dela e de seu companheiro. Ele na luz fez processos que nem mesmo grandes atores do Máschara seriam capazes. Resta lembrar sempre da humildade em aprender. Quem diz que sabe, nada sabe, pois declara que nada mais há para saber. Gabriel Giacomini é esforçado, humilde, gentil, dedicado, disposto. Um orgulho para colegas e direção. A seriedade com que dedicou-se na cerimônia Dionisíaca é memorável.
                               Na portaria Ricardo Fenner que pouco esteve presente nesse Cena às 7, teve o auxilio de Douglas Maldaner, Felipe Padilha, Clara Devi e Maria Antonia Silveira Netto. Essa duas ultimas tão dispostas. Principalmente a maiorzinha, que tão devotadamente vem se destacando e levando altos comentários. Muitos precisam aprender que mais importante que ser bom no palco é ser alicerce do teatro.De nada, nada, nada adianta termos atores, se não tivermos quem mantenha viva e em pé a estrutura do palco.
                               Voltei para casa triste, realizada, catarseada, is aí uma peça que lembra o homem enquanto homem, aproximando uns dos outros na platéia pela sua relação com a velhice própria e alheia a partir de sugestões cheias de beleza, advindas do palco em forma de poesia. Um belo trabalho.

                                 O melhor: A interpretação de Cléber Lorenzoni e de seus belíssimos atores.
                                 O pior: Não ir assistir Esconderijos do Tempo
                                 P.S: Não pude dar meu parabéns ao ator Renato Casagrande pelos seus dez anos, mas espero que ele leia esse humilde ponto de vista e saiba de toda a minha admiração. Sei o quanto foi difícil chegar até aqui, dez anos. Muitos completam dez anos, mas sei que ele e Alessandra Souza viveram intensamente e lutaram para se manter fortes nesses dez anos.

Laura Hoover: ***
Gabriel Giacomini **
Stalin Ciotti **
Kauane Silva **
Douglas Maldaner **
Maria Antonia: **
Clara Devi ***
Felipe Padilha **

 Arte é vida

A Rainha


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