TEXTO - Maria Stuart de Schiller

SCHILLER


MARIA STUART



PERSONAGENS


ISABEL, rainha da Inglaterra.
MARIA STUART, rainha da Escócia.
ROBERTO DUDLEY, conde de Leicester.
JORGE TALBOT, conde de Shrewsbury.
GUILHERME CECIL, barão de Burleigh, tesoureiro-mor.
CONDE DE KENT.
GUILHERME DAVIDSON, secretário de Estado.
AUSIAS PAULET, cavaleiro, guarda de Maria Stuart.
MORTIMER, sobrinho de Paulet.
CONDE DE AUBESPINE, embaixador de França.
CONDE DE BELLIEVRE, enviado extraordinário do rei de França.
OKELLI, amigo de Mortimer.
DRUGÉON DRURY, segundo guarda Stuart.
MELVIL, mordomo do palácio.
ANA KENNEDY, ama de leite de Maria Stuart.
MARGARIDA KURL, aia de Maria Stuart.
O cherife do condado, oficiais da guarda, grandes do reino franceses e ingleses, soldados da guarda, pessoal do serviço da rainha da Inglaterra e da rainha da Escócia.

A cena passa-se na Inglaterra.



Ato Primeiro

Sala no Castelo de Fotheringhay

Cena 1

(Ana Kennedy discute acoloradamente com Paulet, que está abrindo um armário. Drugéon Drury, ajudante de Paulet, traz na mão uma alavanca de ferro)

      ANA — Que e que está fazendo, senhor? Mais uma indignidade? Não mexa nesse armário.
      PAULET — Donde vieram as jóias? Foram jogadas do primeiro andar com o fim de subornar o jardineiro. Malditos sejam os estratagemas das mulheres! Apesar das minhas precauções e das incessantes pesquisas, há ainda jóias e tesouros escondidos. (Arromba o armário). No lugar onde estavam, deve haver ainda mais alguma coisa.
      ANA — Para trás, audacioso! Estão aí os segredos da rainha.
      PAULET — É precisamente isso o que procuro eu. (revista vários papéis.)
      ANA — Papéis sem importância, simples exercícios de caligrafia, distração para suavizar as tristes horas de cativeiro.
      PAULET — O espírito do mal nos tenta nas horas de ócio.
      ANA — Estão escritos em francês.
      PAULET — Muito pior! É a língua dos inimigos da Inglaterra.
      ANA — São cópias de cartas dirigidas à sua rainha.
      PAULET — Pois vou levá-las. Que vejo? Que é que está brilhando ali? (Calca numa mola secreta e tira de uma prateleira um cofrezinho de jóias). Um diadema real cravejado de pedras preciosas e adornado com as flores de lis da França. (Entrega-o ao seu ajudante). Guarda-o, Drury, junta-o ao outro. (Drury sai.)
      ANA — Que afrontosa tirania nos obrigam a sofrer!
      PAULET — Enquanto lhe restar alguma coisa, dar-nos-á trabalho, pois nas suas mãos não há nada que não seja uma arma contra a qual temos que nos precaver.
      ANA — Seja generoso, senhor, não leve as últimas jóias que lhe restam! A infeliz rainha sucumbe se tudo lhe for tirado do seu antigo esplendor.
      PAULET — Está em boas mãos. Quando chegar a ocasião devida, tudo lhe será restituído.
      ANA — Quem poderá suspeitar que aqui, entre estas paredes nuas está morrendo uma rainha? Onde está o real tapete que rodeava o seu trono? É forçoso que os seus pés suaves e delicados se habituem a pisar este rude pavimento. Os pratos da sua mesa são de grosseiro estanho. Envergonhariam a mais humilde aldeã.
      PAULET — Em pratos assim comia seu esposo em Sterulyn, enquanto ela bebia em taças de ouro, cercada por seus cortesãos.
      ANA — Nem ao menos um espelho lhe deram.
      PAULET — Enquanto puder contemplar o seu vaidoso semblante não deixará de ter esperança e de ser audaciosa.
      ANA — Também não tem livros para entreter o espírito.
      PAULET — Porque se servia dele para acompanhar as suas canções de amor.
      ANA — Será este o destino digno duma mulher que desde o berço foi chamada rainha e cresceu rodeada de alegrias na corte ilustre dos Médicis? Não era bastante arrancar-lhe o poder? Invejam-lhe até o seu divertimento mais insignificante! Uma grande desgraça e uma grande lição para um coração elevado, que, por fim, acaba por se familiarizar com ela. Mas é triste, bem triste, ver-se privada dos mais humildes adornos da vida.
      PAULET — A senhora gasta todos os seus esforços em infundir cada vez maior vaidade num coração que devia cair em si e se arrepender duma vida de prazer, ou melhor, de vícios, que só podem ser expiados com a necessidade e com a humilhação.
      ANA — Se a sua mocidade tão cheia de ternura tem sido um tanto descuidada, é coisa que só Deus e o seu coração podem julgar. Para ela não há juízes competentes na Inglaterra.
      PAULET — Será julgada onde praticou o delito.
      ANA — Não pode ter praticado delitos, já que passou a sua vida encarcerada.
      PAULET — E mesmo assim soube fazer relações no mundo, atear no reino a guerra civil e armar contra a nossa rainha, maltas de assassinos. Estava sob vigilância entre estas muralhas e contudo soube excitar o malvado Parry e Dalington a tentar cometer o hediondo crime do regicídio. Foram porventura estas grades um obstáculo para deixar de seduzir o generoso coração de Norfolk? É ela a culpada da melhor cabeça desta ilha ter caído sob o machado do carrasco. E diante desse exemplo lamentável não se amedrontaram nem recuaram os insensatos, que por sua causa se lançaram no abismo. Mil criminosos, vítimas desgraçadas, mas que reaparecem a cada momento, por sua causa subiram ao cadafalso e tais execuções nâo acabarão enquanto ela não for sacrificada, pois é a mais culpada de todos. Oh! maldito seja o dia em que as hospitaleiras costas desta terra receberam essa nova Helena!
      ANA — Que? Acaso a Inglaterra recebeu-a hospitaleiramente? A infeliz Maria, no dia em que pôs o pé nesta terra, onde chegou desterrada e com o fim de obter o auxílio da sua parenta, foi presa contra o direito das gentes e a sua dignidade de rainha, e condenada a passar a sua preciosa mocidade no fundo de uma prisão estreita e sombria. E agora, depois de tê-la feito sofrer o que há de mais amargo no cativeiro, obriga-a, tratando-a como se fosse uma criminosa vulgar, a comparecer perante um tribunal, acusando-a miseravelmente de um monstruoso atentado... A uma rainha!
      PAULET — Veio para aqui como uma criminosa, perseguida pelo seu próprio povo, expulsa do trono que havia manchado com o seu procedimento infame. Usou de todos os recursos, ao seu alcance, com o fim de conspirar contra a tranqüilidade da Inglaterra, para nos fazer voltar à sangrenta época da espanhola Maria, tornando católicos os ingleses e vender-nos à França. Porque razão recusou ela a assinar o tratado de Edimburgo, a renunciar a todas as pretenções ao trono da Inglaterra e, dessa forma, com uma assinatura, livrar-se dos horrores deste cárcere? Prefere continuar prisioneira, prefere continuar mal tratada por todos, a renunciar ao vaidoso ornamento desse título. Porque procedeu assim? Porque tinha confiança nos seus estratagemas, na conspiração provocada pelas suas artimanhas ilícitas e mantinha a esperança de daqui, desta prisão, fazer cair toda a Grã-Bretanha nos laços que lhe haviam armado.
      ANA — Está gracejando, senhor. A crueldade junta a mais amarga zombaria. Como quer que ela acalente tais fantasias, vivendo, como vive, sepultada entre estas paredes, sem que lhe chegue aos ouvidos a mais leve palavra de consolo, nem uma voz amiga que lhe fale da sua estremecida pátria, se de há muito não vê outro rosto humano que não seja o do sinistro carcereiro, e se, desde que o seu intratável parente se transformou em seu guarda, dia a dia aumentam os que a vigiam.
      PAULET — E apesar disso não estamos ao abrigo das suas manobras. Temo sempre que estas grades se partam, que o pavimento desta sala ou as pedras destas muralhas se abram, enquanto durmo, franqueando a entrada à traição. Maldito posto o que me deram, de vigiar essa mulher astuta! O temor rouba-me o sono. Perco-me nas trevas da noite! Passo revista a todos estes escuros calabouços para me certicar tanto das fechaduras e das grades como da fidelidade daqueles que emprego em observar todos os seus movimentos. Quando surge a manhã, levanto-me cheio de receios, parecendo-me que vou encontrar confirmados os temores que pertubaram as minhas horas de insônia. Tenho, contudo, a esperança de que, para meu bem, em breve isto terminará. Preferia, em vez de vigiar essa rainha inquieta e astuciosa, montar guarda à porta do inferno, tomando conta de todos os condenados ao fogo eterno.
      ANA — Aí vem a rainha.
      PAULET — Com o crucifixo na mão, mas com a presunção e as misérias do coração humano.



Cena II

(Os mesmos e Maria Stuart, que entra coberta com um veu e com um crucifixo na mão.)

      ANA (dirigindo-se ao seu encontro) — Rainha, humilham-nos de modo inconcebível. A tirania e a maldade não suspendem por um instante sequer os seus tormentos. Um dia não se passa sem que outros sofrimentos e repetidos ultrajes não recaiam sobre a vossa cabeça coroada.
      MARIA STUART — Sossega. Dize-me: que houve de novo?
      ANA — Veja. Forçaram este armário. As suas cartas, o único tesouro, que tanto trabalho nos deu para salvar, e o resto das suas jóias nupciais de França estão em poder dele. Nada lhe resta mais de seus adornos reais; tudo lhe roubaram.
      MARIA — Calma, Ana. Não são essas mesquinharias que me fazem rainha. Poder-nos-ão tratar vilmente, mas nunca nos humilhar. Na Inglaterra tem-me sido preciso habituar-me a muitas coisas, mas tudo posso suportar. Levou pela violência, Cavalheiro Paulet, precisamente o que hoje lhe queria entregar. Entre essas cartas há uma dirigida a minha irmã, a rainha da Inglaterra. Prometa-me que a entregará pessoalmente e que não a deitará cair nas mãos desleais de Burleigh.
      PAULET — Pensarei nisso.
      MARIA — Vou dizer-lhe o que ela contém, cavalheiro. Suplico nessa carta que me façam um favor — o de ter uma entrevista com minha irmã, a quem não vi pessoalmente. Obrigam-me a comparecer ante um tribunal composto por pessoas que não reconheço como meus iguais e, portanto, não posso me sujeitar a tal julgamento. Isabel é da minha família, do meu sexo e minha igual. Somente perante ela, como irmã, como rainha e como mulher, posso me apresentar francamente.
      PAULET — Freqüentes vezes, milady, haveis confiado a vossa sorte e a vossa honra a homens que seguramente não eram dignos da vossa consideração.
      MARIA — Outro favor eu peço ainda que me faça, um favor que seria crueldade me negar. Desde que me prenderam, privaram-me das consolações da igreja e da graça divina dos sacramentos. E aquela que me tirou a coroa e a liberdade, e ameaça mesmo a minha própria vida, não quererá por certo fechar-me as portas do céu.
      PAULET — Atendendo ao vosso desejo, mandar-vos-emos um ministro de Deus.
      MARIA (interrompendo-o vivamente) — Não quero esse ministro! Exijo que seja da minha religião. Suplico também que me mandem um escrivão para que eu lhe dite a minha última vontade. A melancolia e a minha desgraça corroem-me a vida. Os meus dias estão contados. Considero-me moribunda.
      PAULET — Procedeis bem. São essas meditações e esses pensamentos que vos convêm no presente momento.
      MARIA — Tenho por acaso a certeza de que a dor não crave o seu punhal bruscamente na minha vida? Quero, portanto, ditar meu testamento e tomar algumas disposições sobre o que me pertence.
      PAULET — Tendes inteira liberdade para o fazer. A rainha da Inglaterra não quer se enriquecer com os vossos despojos.
      MARIA — Tiraram de junto de mim as minhas fiéis aias e todos os meus servidores. Onde estão eles? Que lhes aconteceu? Posso facilmente prescindir dos seus serviços, mas, para meu sossego, é preciso que saiba que os que me são leais não sofrem, nem passam necessidades.
      PAULET — Nada lhes falta. (Faz um movimento para sair.)
      MARIA — Vai-se embora? Deixa-me sem me tirar do coração oprimido e aflito o peso da incerteza? Estou, devido à vigilância dos seus espiões segregada do mundo; nenhuma notícia me chega através das paredes desta prisão; o meu destino está nas mãos dos meus inimigos. Trinta dias, tristes e pesarosos, se passaram depois que aqui vieram quarenta comissários que, sem complacência de espécie alguma, sem quaisquer formalidades, sem se concederem um advogado de defesa, constituíram um tribunal que não me permitiu alegar as minhas queixas, justificar-me, nem ao menos me desculpar ou demonstrar a retidão do meu procedimento. Apareceram como se fossem espíritos e como espíritos desapareceram. Desde esse dia ninguém me fala; em vão tenho me esforçado por conseguir ler-lhe no olhar a vitória da minha inocência, do zelo dos meus amigos ou do mau conselho dos meus inimigos. Quebre finalmente o silêncio que mantém, diga-me o que tenho a temer ou que esperanças posso acalentar.
      PAULET (depois de uma pausa) — Confiai em Deus.
      MARIA — Nele confio e também na justiça dos juizes deste mundo.
      PAULET — A justiça vos será feita, não duvideis disso.
      MARIA — O meu processo já foi julgado?
      PAULET — Não sei.
      MARIA — Já me sentenciaram?
      PAULET — Não sei, milady.
      MARIA — Neste país gostam de abreviar as coisas. Surpreender-me-á o assassínio como me surpreenderam os juizes?
      PAULET — Pensai sempre desse modo, porque assim, não estranhareis o que possa vos acontecer.
      MARIA — Nada me surpreenderá do que se resolver no tribunal de Westminster, à frente do qual estão Burleigh com o seu ódio e Halton com a sua baixeza. Não ignoro o que se atreverá a fazer a rainha da Inglaterra.
      PAULET — Os monarcas deste reino não precisam se inspirar senão na sua conciência e nos conselhos do seu parlamento. O que a justiça resolver será o que o poder executivo fará sem medo e aos olhos de todo o mundo.



Cena III

(Os mesmos e Mortimer; sobrinho de Paulet, que entra e, sem olhar para a rainha, se aproxima da tio.)

      MORTIMER — Procuram-no, meu tio. (Sai, sem olhar para a rainha, que o segue com um olhar no qual se lê o desgosto, e se volta para Paulet, que se prepara tara seguir o sobrinho.)
      MARIA — Um favor lhe peço. Quando tenha que me dizer seja o que for, diga-o sem receio; sofrerei tudo da sua parte, parque respeito os seus cabelos brancos, mas não posso suportar as maneiras descorteses desse jovem.
      PAULET — O que nele vos desgosta é justamente o que mais eu aprecio. Não pertence ao número desses loucos e levianos, que mudam de pensar ante as falsas lágrimas das mulheres. Viajou, esteve em Paris e em Reims, e voltou com o coração tão leal como quando partiu. Para ele é esforço perdido, milady, pôr em jogo as vossas manhas. (Sai.)



Cena IV

(A rainha e Ana.)

      ANA — Consentis em tão grande falta de respeito? É insuportáve!
      MARIA (perdida nos seus pensamentos) — Quantas vezes, nos nossos dias de esplendor, damos ouvidos à voz da adulação! É justo, portanto, agora, minha querida Ana, que me acostume a ouvir censuras.
      ANA — Que? Estais tão humilde, tão vencida, querida lady? Houve um dia em que vos mostrastes alegre, que tratastes de me consolar, e eu condenava a vossa alegria e a vossa melancolia.
      MARIA -— Lembro-me, O espectro ensangüentado do rei Darnleys levanta-se encolerizado do sepulcro e arranca~me da alma todo o sossego, até me fazer compreender onde chega a minha desgraça.
      ANA — Para que pensais...
      MARIA — Esqueceste-te de tudo, Ana, mas a minha memória é muito fiel. Passa-se hoje o aniversário desse terrível atentado, por isso o comemoro com a pemtência e o jejum.
      ANA — Expulsai da imaginação tais recordações. Para absolver-vos, bastam o arrependimento de tantos anos e os penosos sofrimentos por que havíeis passado. A igreja, que concede expiação para todos os pecados, conseguiu-vos o perdão do céu.
      MARIA — Mas esse delito, já perdoado, levanta-se, jorrando sangue quente ainda, do túmulo da vítima. E esse espectro agita-se clamando vingança e para o fazer voltar ao sepulcro não são bastante os toques do sino, que nos convocam à oração, nem as bênçãos do venerando sacerdote.
      ANA — Mas não fostes vós que o assassinastes. Foram outros que cometeram o crime!
      MARIA — Mas eu sabia-o. Consenti que o fosse praticado e atraí o infeliz à morte.
      ANA — A mocidade atenua a vossa culpa. ainda tão moça!
      MARIA — Tão moça e contudo manchei com monstruosa culpa a minha mocidade!
      ANA — Impulsionaram-vos, fatalmente, as ofensas que havíeis recebido e a maldade dum homem a quem vosso amor, com mão divina, ergueu e enalteceu, tirando-o da obscuridade. No vosso abraço nupcial elevaste-o ao trono, tornando-o feliz não tanto ao apresentar-lhe a vossa coroa hereditária como ao entregar-lhe vossa própria pessoa. Era porventura nobre que ele olvidasse que a sua invejável sorte era exclusivamente devida à escolha feita pelo vosso amor? E o miserável tudo esqueceu. Insultou-vos com as suas más suspeitas, ofendeu o vosso amor com o seu brutal procedimento, chegou a tornar repugnante. O encanto que vos cegava desvaneceu-se. Irritada, fugistes dos seus braços, que vos envergonhavam, e destes-lhe a conhecer o vosso desprezo. Tentou ele tornar a obter o vosso favor? Solicitou a clemência? Prometeu-vos corrigir-se, ajoelhando-se arrependido, a vossos pés? Não, e cada vez mais se tornou execrado. Era uma criação vossa e quis se tornar vosso rei. Na vossa presença mandou assassinar Rizio, o belo cantor, por vos cortejar. Mais não fizestes que vingar também com sangue o sinistro atentado cometido contra Rizio.
      MARIA — E também o assassínio será vingado na minha pessoa. Queres me consolar e em vez disso pronuncias a minha sentença.
      ANA — Quando o atentado se deu, não ereis senhora de vós e não tínheis conciência do que se fazia. O calor da paixão impulsionou-vos, estáveis sob o poder de um sedutor temível, o destitoso Bothwell! Esse homem execrável dominava-vos com a sua vontade rija e poderosa; extraviou-vos o espírito recorrendo a meios ocultos e diabólicos ardis.
      MARIA — Não houve nenhum ardil; houve apenas a sua vontade forte e a minha fraqueza.
      ANA — Não é tal, afirmo-o. Todos os espíritos diabólicos vieram em seu auxílio e cercaram-vos dos seus detestáveis laços. Não destes ouvidos à voz da amizade, que queria vos aconselhar, e os vossos olhos cegaram. Pusestes de lado toda a timidez e as vossas faces, antes coradas pelo rubor da modéstia e do recato, tornaram-se abrasadas, mostrando o fogo da mais devastadora paixão. Rasgastes o véu do mistério; os vícios daquele homem sem escrúpulos triunfaram da vossa reserva; e tivestes, então, de ostentar de cabeça erguida a vossa própria vergonha. Consentistes que ele cingisse a espada real da Escócia, ele, o assassino, que era amaldiçoado por todo o povo; permitistes que passeasse pelas ruas de Edimburgo, empregastes a força das armas contra o vosso parlamento e ali, no próprio templo da justiça, fizestes representar uma comédia, um simulacro de tribunal, para absolver o culpado dum crime de homicídio... E ainda mais longe fostes... meu Deus!
      MARIA — Acaba... Concedi-lhe a minha mão aos pés do altar.
      ANA — Oh, joguemos um véu sôbre tudo isso. É execrável, digno duma mulher sem honra. Mas vçSs não o sois. Conheço-vos muito bem, porque desde a infância que estou a vosso lado. O vosso coração é fraco, o vosso defeito único é a leviandade. Repito-o. Há espíritos do mal que se apossam dum coração descuidado, lhe imprimem a mancha do pecado e fazem com que ele se perca. Desde esse dia, de fatal lembrança, que tanto vos desprestigiou, todas as vossas ações têm sido impecáveis. Posso assegurá-lo. Coragem! Reconciliai-vos com a vossa conciência. Tende-vos mostrado tão arrependida, que não sois culpada na Inglaterra. Nem Isabel nem o parlarmento inglês podem ser os juízes que decidam da vossa sorte. Esforçai-vos por comparecer diante desse tribunal ilegítimo, mostrando assim a coragem da inocência.
      MARIA — Quem é que virá? (Mortimer surge à porta.)
      ANA — O sobrinho. Retirai-vos, milady.



Cena V

(Os mesmos e Mortimer, que entra com precaução.)

      MORTIMER (dirigindo-se a Ana) — Vá para junto da porta e fique ali de vigia. Tenho de falar com a rainha.
      MARIA (resolutamente) — Ana, não te afastes.
      MORTIMER — Nada receies, milady. Vai saber quem sou. (E entrega-lhe uma mensagem fechada.)
      MARIA (olha a mensagem e recua surpresa — Que é isto?
      MORTIMER (para Ana) — Retire-se, lady Kennedy. E fique de vigia para que meu tio não nos surpreenda.
      MARIA (dirigindo-se a Ana, que, hesitante, tem os olhos fixos nela) — Vai, vai, faze o que ele ordena.
      (Ana sai, demonstrando o maior espanto)



Cena VI

(Mortimer e Maria Stuart)

      MARIA — É de meu tio, o cardeal de Lorena! () “Confie em sir Mortimer, que é o portador desta carta. Não tem na Inglaterra um amigo mais leal do que ele!” (Olhando para Mortimer, muito surpreendida) Será possível? É um sonho, ou é realidade? Tenho tão perto de mim um amigo, quando pensava estar abandonada de todo mundo! Encontro um amigo no sobrinho do meu carcereiro, naquele em que acreditava ver o pior dos meus inimigos!...
      MORTIMER (caindo aos pés de Maria) — Peço-vos perdão, rainha, por ter me apresentado com um rosto que tantos desgostos me custou, mas que proporciona a alegria de poder me aproximar de vós, senhora, para vos trazer socorro e a salvação.
      MARIA — Levantai-vos. Surpreendeis-me, cavalheiro. Fazeis-me, de repente, afastar do abismo da desgraça para me entregar à esperança. Falai, fazei-me compreender essa ventura, para que eu possa acreditar nela.
      MORTIMER (levantando-se) — O tempo voa e em breve meu tio estará aqui, acompanhado de um ser execrado. Antes dele vos surpreender com sua sinistra missão, ouvi e sabereis de que maneira o céu vos manda a salvação.
      MARIA — Manda-ma por um milagre da sua onipotência.
      MORTIMER — Permiti, senhora, que comece por mim.
      MARIA — Falai, cavalheiro.
      MORTIMER — Tinha vinte anos, passados no cumprimento dos meus severos deveres e no mais profundo ódio ao papismo, quando me assaltou um irreprimível desejo que me levou a viajar pelo estrangeiro. Não dei importância às prédicas dos puritanos; saí da minha pátria, atravessei rapidamente a França, ansiando por chegar à Itália, que tantos encantos tinha para mim. Era a época em que a igreja celebra as grandes festas religiosas. Bandos de peregrinos tomavam todos os caminhos. As imagens do Salvador vinham rodeadas de coroas, parecia que toda a humanidade se dirigia em peregrinação ao céu. Arrastado por aquela multidão de almas crentes, entrei na cidade de Roma. Imaginai, rainha, qual não foi a minha admiração ao deparar com tantos soberbos monumentos; tantos arcos de triunfo, a grandiosidade do Coliseu!... julguei-me transportado a um mundo fantástico e magnífico. Nunca havia percebido o imenso futuro das artes, odiado pela igreja em que nasci, que não admite atrativo algum para os sentidos e que só respeita o severo influxo da palavra. Imaginai, portanto, o que senti quando penetrei naquelas igrejas e ouvi as harmonias do órgão, que parece rolarem do alto, e vi tantas imagens expressivas enfeitando as abóbodas e as paredes — na frente, a do Ser Supremo, cuja grandeza empolga os sentidos encantados; nas paredes laterais, as dos santos, a saudação do anjo, o nascimento do Filho de Deus, sua Santa Mãe, a celeste Trindade, a milagrosa transfiguração de Cristo, o Papa celebrando o ofício divino e abençoando o povo! Oh! que são o ouro e a pompa dos reis da terra comparado com tudo isso? Só ali tudo é cercado por um ar divino. Aquela mansão é um verdadeiro reino dos céus, não pertence a este mundo.
      MARIA — Não prossiga, não apresente à minha vista esse quadro de vida e de magnitude. Sou desgraçada e estou encarcerada.
      MORTIMER — Também eu o estive, rainha, mas sai de repente do meu cárcere e o meu espírito, livre, saudou de novo os maravilhosos dias da vida. Jurei ódio à mesquinhez dos nossos livros sagrados, prometi a mim próprio enfeitar de flores a minha cabeça e freqüentar a sociedade dos que sorriem de alegria. Alguns nobres escoceses e muitos amáveis franceses ligaram-se a mim e me apresentaram a vosso nobre tio, o cardeal de Guise. Que homem! Que inteligência tão grande e luminosa e que coração tão varonil! Parece que nasceu para dominar todas as almas. Ainda não vi outro como ele, um tão perfeito eclesiástico, um tão completo príncipe da igreja!
      MARIA — Viu essa pessoa tão amada de todos, esse homem ilustre que foi o guia da minha infância? Oh, fale-me dele! Ainda pensa em mim? Continua a ser feliz? A sua vida corre alegre? Essa coluna da igreja continua respeitada?
      MORTIMER — Esse homem admirável dignou-se explicar-me os mistérios do dogma religioso e aniquilar a dúvida no meu coração. Demonstrou-me que às subtilezas da razão humana segue-se sempre o erro, que os olhos devem ver o que o coração deve crer; que a igreja necessita de ter uma cabeça única e autorizada e que o espírito da verdade se alicerça nos raciocínios do pontífice. Ante a força da sua persuasão e da sua razão triunfante desapareceram as presunções da minha alma juvenil. Voltei-me para o seio da igreja e abjurei dos meus erros nas mãos do cardeal.
      MARIA — É então um desses milhares de pecadores a quem a divina força da sua palavra, como o sermão da montanha, dominou e indicou o caminho da eterna salvação.
      MORTIMER — Quando os deveres do seu cargo o chamaram à França, enviou-me a Reims, onde a Companhia de Jesus, ativa e piedosa, prepara os eclesiásticos que se destinam à igreja da Inglaterra. Aí encontrei Morgan, o velho escocês, o vosso leal Lesley, o sábio bispo de Rosse, todos eles passando os tristes dias do exílio em terra estranha. Liguei-me intimamente com homens tão dignos e a minha fé se robusteceu. Certo dia em que, em casa do bispo, olhava em redor de mim, fiquei surpreendido ao ver um retrato de mulher, cujas feições tinham expressão de encantadora atração. Aquele retrato ficou-me na imaginação e contemplava-o sem poder ocultar minhas impressões. Então o bispo disse-me: “Com razão vos seduziu esse retrato, porque é entre as mulheres a mais bela de todas e é também a mais dígna de lástina. A sua fé é a causa do seu sofrimento e é na sua pátria que ela está sofrendo.”
      MARIA — Homem leal! Não, não perdi tudo, visto que no meu infortúnio ainda me resta esse amigo.
      MORTIMER — Descreveu-me com rara eloqüencia todo o vosso martírio e o encarniçamento dos vossos inimigos. Mostrou-me a vossa genealogia e a origem da vossa família, que remonta à ilustre casa de Tudor. Fez-me compreender que, por direito de nascimento, ereis chamada a reinar na Inglaterra e não essa rainha hipócrita, filha de um amor adúltero e que seu próprio pai repetiu como filha ilegítima. Não quis confiar somente nesse testemunho; aconselhei-me com pessoas profundas conhecedoras de direito, estudei as velhas genealogias, e as minhas pesquisas e exames confirmaram a verdade das vossas pretenções. Sei que o direito que representais é a causa da vossa presença aqui, e que vos pertence este reino em que, inocente, apenas encontrais um cárcere.
      MARIA — Que triste direito! É ele a única causa dos meus sofrimentos e pesares.
      MORTIMER — Soube também que vos haviam trazido do castelo de Talbot para aqui e que a meu tio fora dado o encargo de vos guardar. Em tal circunstância julguei reconhecer a mão prodigiosa e salvadora do céu, chamava-me a voz do destino, que me dava ânimo para que erguesse o braço que havia de libertar-vos. Os meus amigos inspiraram-me confiança, o cardeal deu-me os seus conselhos e a sua bênção e ensinou-me a arte difícil da dissimulação. O plano foi rapidamente arquitetado; parti para minha pátria, onde cheguei dez dias depois. (Faz uma pequena pausa). Vi-vos, rainha... Ereis vós em pessoa e não o vosso retrato... Que tesouro encerrava este castelo! Não é de forma alguma um calabouço, estando vós aqui; é a morada dos deuses, mais esplêndida, mais soberana que a régia corte da Inglaterra. Oh! ditosos aqueles a quem é permitido respirar o mesmo ar que Maria respira! Muita razão tem aquela que vos guarda tão oculta! Se os ingleses conseguissem ver a sua rainha, toda a mocidade se levantaria, nenhuma espada ficaria na bainha e a revolução alteando a gigantesca cabeça, alastraria por toda a Grã-Bretanha.
      MARIA — Assim o pensais, mas todos os ingleses pensam do mesmo modo?
      MORTIMER — Não haverá dúvida se, como eu, fossem testemunhas da vossa desgraça e da paciência e nobre fé com que sofreis uma sorte que não haveis merecido. Não haveis por acaso saído de todas as provações do infortúnio como uma verdadeira rainha? A vergonha deste cárcere tira porventura alguma coisa ao esplendor da vossa beleza?... Falta-vos tudo o que torna agradável a vida e apesar disso inundam-vos a vida e a luz. Nem uma única vez pus o pé neste edifício que não sentisse o coração partir dentro do peito e ao mesmo tempo se encher de uma profunda alegria por poder contemplar-vos. O momento decisivo e terrível se aproxima; o perigo aumenta à medida que correm as horas. Não posso me demorar mais tempo... não quero ocultar-vos a terrível notícia...
      MARIA (inferrompendo-o) — Já foi pronunciada a minha sentença? Diga-o francamente, estou pronta a escutá-lo.
      MORTIMER — Sim, já foi. Quarenta e dois juizes declaram que sois culpada. A câmara dos lordes, o conselho secreto e a cidade de Londres instam vivamente porque se cumpra a sentença. A rainha Isabel resiste. Não por qualquer sentimento de humanidade ou de compaixão, mas por malícia — quer que a obriguem a dar o seu régio consentimento.
      MARIA (com firmeza) — Cavalheiro Mortimer, não me causa surpresa, nem me amedronta. De há muiLo que estou preparada para receber essa notícia. Sei quem são os meus juizes. Compreendo perfeitamente que, para remate do tratamento que me tem sido infligido, não queiram me restituir a liberdade. Sei que é isso o que pretendem fazer. Querem que eu fique encarcerada toda a vida, querem sepultar nas trevas da prisão todos os meus direitos e a minha vingança.
      MORTIMER — Não, rainha... Oh, não, não!... Não chegaram a tal ponto... A tirania não se contenta, nem se satisfaz com deixar a sua obra por completar. Enquanto fordes viva, a rainha da Inglaterra não deixará de ter receio. Não há cárcere humano que possa sepultar-vos profundamente. Só a vossa morte garantirá o seu trono.
      MARIA — Atrever-se-á porventura a fazer cair, afrontosamente, uma cabeça coroada sob o cutelo do carrasco?
      MORTIMER — Atrever-se-á, não o duvideis.
      MARIA — Arrastaria dessa forma pelo pó a sua própria majestade e a de todos os reis! Não teme a vingança da França?
      MORTIMER — Firmou com ela um tratado de paz e cede o seu trono e a sua mão ao duque de Anjou.
      MARIA — E o rei da Espanha deixará de se armar?
      MORTIMER — Enquanto ela estiver em paz com o seu povo não temerá o mundo, embora todo ele esteja contra ela.
      MARIA — E dará tal espetáculo à Inglaterra?
      MORTIMER — Este povo, milady, está acostumado, há tempos para cá, a ver as rainhas descerem do trono para subirem ao cadafalso. A própria mãe de Isabel foi pelo mesmo caminho e Catarina Howard e Joana Gray também eram cabeças coroadas.
      MARIA (depois de uma pausa) — Não, Mortimer... cega-o um vão receio. Só a inquietação do seu leal coração lhe infunde tão infundadas suspeitas. Não é um cadafalso o que eu temo. Há outros meios mais secretos de que pode se servir a rainha da Inglaterra para evitar a contínua inquietação que lhe causam as minhas pretensões. Preferirá pagar a um assassino a encontrar um carrasco para mim. E é isso exatamente o que me faz tremer. Não levo um copo aos lábios sem que sinta um estremecimento de terror, ao pensar que a bebida talvez seja um brinde do amor que minha irmã me dedica.
      MORTIMER — Nem pública, nem secretamente, atentará contra a vossa existência. Não receeis, porque tudo está já combinado. Doze jovens nobres do país comprometeram-se comigo. Esta madrugada comungaram juntamente comigo e juraram arrancar-vos à força deste castelo. O conde de Aubespine, embaixador da França, está ao par do projeto e apoia-o no que pode, sendo o seu palácio o lugar onde nos reunimos.
      MARIA — Faz-me tremer, Mortinier, mas não é de contentamento. Um pressentimento sombrio atravessa o o meu coração. Que projetos são os que fez? Não o amedrontaram as cabeças ensangüentadas de Babington e de Trichburns, expostas na ponte de Londres? Não o amedrontaram os inumeráveis desgraçados que encontraram a morte pelo mesmo motivo e que nada mais conseguiram que tomar cada vez mais duras as minhas cadeias? Jovem infeliz e desvairado: fuja! fuja! Ainda é tempo, se o desconfiado Burleigh já não descobriu os seus planos e não meteu um traidor entre os seus. Fuja a toda a pressa deste reino. Ainda não foi feliz nenhum dos que quiseram proteger Maria Stuart.
      MORTIMER — Não me amedrontaram as cabeças ensangüentadas de Babington e de Trichburns expostas na ponte de Londres, nem as dos incontáveis desgraçados que encontraram a morte pelo mesmo motivo. Não encontratam por ventura uma glória imortal? Não é uma felicidade morrer para vos salvar?
      MARIA — É vão propósito. Nem a força nem a astúcia conseguirão me salvar. O inimigo está alerta e tem o poder de seu lado. Não é Paulet, não é um bando de sentinelas, mas sim toda a Inglaterra que monta guarda às portas do meu cárcere. Só a vontade de Isabel as pode abrir.
      MORTIMER — Oh, então não tenhais tal esperança!
      MARIA — Somente um homem as pode abrir.
      MORT1MER — Dizei-me o seu nome.
      MARIA — O conde de Leicester.
      MORTIMER — Leicester! O conde de Leicester, o vosso mais feroz perseguidor, o favorito de Isabel... dessa...
      MARIA — Se alguém tem de me salvar, só poderá ser ele. Vá procurá-lo. Confie nele e para prova de que sou eu que o envio leve-lhe este bilhete... Vai juntamente o meu retrato... (Tira um bilhete do seio. Morlimer recua um passo e hesita em pegá-lo.)
      Tome! Há muito tempo que o trago, mas a excessiva e severa vigilância de seu tio não me tem deixado encontrar meio de me pôr em relações com ele. O meu anjo da guarda enviou-o aqui.
      MORTIMER — Rainha... Este enigma... Explicai-mo...
      MARIA — O conde de Leicester o fará. Confie nele, ele confiará em si. Aí vem gente.
      ANA (entrando precipitadamente) Sir Paulet vem aí com um dos senhores da corte.
      MORTIMER — É lorde Burleigh. Dominai-vos, rainha, e escutai com firmeza o que vos vem comunicar. (Sai por uma porta lateral. Anna Kennedy segue-o.)



Cena VII

(Maria, lorde Burleigh, o cavalheiro Paulet)
      PAULET — Desejaveis ter a certeza a respeito da vossa sorte e essa certeza vai vos dar sua senhoria milorde de Burleigh. Aceitai-a com resignação.
      MARIA — Espero-a com a dignidade que convem à inocência.
      BURLEIGH — Venho na qualidade de enviado da justiça.
      MARIA — Lorde Burleigh presta-se voluntariamente a ser a voz duma justiça inspirada por ele.
      PAULET — Falais de tal maneira que parece conheceis a sentença.
      MARIA — Se é lorde Burleigh quem a traz é claro que a conheço... Vamos, fale, cavalheiro.
      BURLEIGH — Submeteis-vos à justiça dos quarenta e dois?
      MARIA — Desculpe-me, milorde, por logo de princípio lhe cortar a palavra. Pergunta-me se me submeto à justiça dos quarenta e dois? De modo algum posso me submeter. Como poderia fazer isso, como me esquecer do meu lugar, da dignidade do meu povo e de um filho, assim como da de todos os príncipes? As leis inglesas determinam categoricamente que todos os acusados sejam julgados por iguais seus. Nesse tribunal alguém é meu igual? Apenas os reis o são.
      BURLEIGH — Ouvistes o libelo acusatório e prestastes-vos a responder em presença do tribunal.
      MARIA — Sim, deixei-me iludir pelas hábeis ciladas de Hatton. Ouvi a acusação e provei o seu nenhum fundamento, obedecendo apenas à minha honra, tendo fé na força triunfante que tinham os meus princípios. Assim procedendo inspirei-me também num sentimento de distinção para com os dignos lordes, do que agora me arrependo.
      BURLEIGH — O reconhecer ou não tal fato, não é, milady, mais que uma mera formalidade. Estais em terra inglesa, gozais da proteção e do benefício das suas leis e sois súdito do seu monarca.
      MARIA — Estou, certamente, em terra inglesa, mas num cárcere... E chama a isso viver na Inglaterra e gozar do benefício das suas leis? Mal as conheço, jamais as quis acatar. Não sou cidadã deste reino. Sou uma rainha livre em país estranho.
      BURLEIGH — E pensais que um título real vos pode dar o direito de semear impunemente a discórdia sangrenta num país estranho? Que seria da segurança das nações se a espada justiceira de Temis não pudesse atingir tanto a cabeça culpada de um hóspede real, como a de um mendigo?
      MARIA — Não quero fugir à justiça, todavia são os juizes que eu não reconheço.
      BURLEIGH — Os juizes? Como, milady? São por acaso alguns miseráveis escolhidos entre o populacho, ou infames charlatães para os quais não valem nem a razão, nem a verdade, e se conformam com ser órgãos do despotismo? Não são as pessoas mais notáveis do reino bastante independentes para serem justas e para se esquivarem à influência dos príncipes e da baixa corrupção? Não são esses mesmos os que com justiça governam um nobre povo e a cujo nome silenciam as dúvidas e as suspeitas de qualquer espécie que sejam e tenham sido forjadas? À sua frente estão o pastor do povo, o piedoso primaz de Cantuária, o inteligente Talbot, guarda dos selos reais, e Howard, que guia as armadas do reino. Dizei: que mais podia fazer a soberana da Inglaterra do que escolher os mais nobres de todo o reino para juizes que hão de julgar essa causa real? E ainda que se chegasse a crer que um deles fosse cegado pelo ódio e pela parcialidade, poderiam essas paixões reunir quarenta no mesmo voto?
      MARIA (depois de alguns instantes de silêncio) — Estou ouvindo com grande surpresa as palavras proferidas por uns lábios, que sempre me têm sido fatais. Como é que, sendo uma ignorante, hei de medir-me com um orador tão esperto? Pois bem! Se esses lordes fossem tais quais os descreve, teria de me calar, e desde o instante em que declarassem culpada a minha causa estava perdida. Mas esses homens, que tanto exalta e cuja autoridade sobre mim pesa, desempenharam vários papéis nos acontecimentos que se têm esenrolado neste país. Tenho visto que a nobreza da Inglaterra e o majestoso senado do reino não tiveram nenhum escrúpulo em adular, como escravos dum harem as tirânicas arbitrariedes do meu antepassado Henrique VIII. Também vi essa nobre corte, tão venal como o conselho particular, permitir, derrogando as leis, que se rompessem os laços do matrimônio e os poderosos os desatem quando querem, que se desherde hoje uma filha dum príncipe da Inglaterra, a quem se infama com o nome de bastarda, para a cooar como rainha. Vi também esses dignos pares mudar, com uma convicção tão pouco firme que varie a cada instante quatro vezes de fé durante quatro reinados.
      BURLEIGH — Dizei-vos estranha às leis do reino da Inglaterra e contudo vos é bem conhecida a sua desgraça.
      MARIA — E são esses os meus juizes! Lorde e tesoureiro, quero ser justa para consigo. Seja-o igualmente para comigo. Dizem que as suas intenções são boas — que é ativo, vigilante e incorruptível no serviço do Estdo e da sua rainha. Quero crer que seja a verdade. Não o domina o interesse particular, mas sim o da sua soberana e o do país. Desconfie, porém, nobre lorde, de que, nisto, o interesse do E8tado lhe seja apresentado com a aparência da justiça. Não duvido de que há pessoas respeitáveis entre os juízes que se sentam ao seu lado. Mas são protestantes, demasiadamente zelosos da felicidade da Inglaterra. Devem eles julgar-me, a mim, rainha da Escócia e, além disso católica? Reza um provérbio muito velho que o inglês não é justo quando se trata dum escocês. Por isso, seguindo um costume antigo, que os seus antepassados respeitam desde remotos tempos, um inglês não pode depor em juizo contra um escocês, nem um escocês contra um inglês. Foi a necessidade que promulgou essa lei tão estranha; fundamento e grande têm esses velhos hábitos. É forçoso respeitá-la, milorde. A natureza pôs no meio do Oceano as duas ardentes nacionalidades, deu-lhes uma terra desigualmente dividida e, por isso, as conclama a lutarem uma com a outra. O estreito leito de Tuede separa os dois fogosos gênios; freqüentes vezes se misturou nas suas águas o sangue dos combatentes. Com a mão no punho da espada, há mil anos se ameaçam um ao outro. Nenhum inimigo atacou a Inglaterra que não tivesse a Escócia como aliada. Guerra civil alguma devastou as cidades da Escócia que não fossem os ingleses que aí levassem o facho da discórdia. E esse ódio recíproco e secular jamais acabará, a não ser que um parlamento reuna fraternalmente os dois povos e que um único cetro governe toda a ilha.
      BURLEIGH — E seria uma Stuart que daria tal felicidade ao reino?
      MARIA — Para que negá-lo? Sim, confesso-o, afaguei a esperança de reunir livres e felizes duas nobres nações à sombra do ramo de oliveira. Nunca pensei que chegasse um dia em que fosse vítima dum ódio nacional. Tinha esperança de extinguir para sempre a chama sinistra da discórdia, essa inimizade secular, e, como o meu antepassado Richmond reuniu, após tantos combates sangrentos, as duas casas de York e de Lancaster, eu pretendia também reunir, mas pacificamente, as coroas da Escócia e da Inglaterra.
      BURLEIGH — Todavia, para chegar a esse fim, haveis escolhido um mau caminho. Incendiando o reino, quereis subir ao trono passando por cima das chamas da guerra civil.
      MARIA — Não, por Deus, não era isso o que queria. Quando foi que pensei em semelhante coisa? Onde estão as provas?
      BURLEIGH — Não vim aqui para tratar dessa questão. A vossa causa não está submetida a resolução alguma dessa espécie. Por quarenta votos contra dois, aprovou-se que faltastes ao que foi deliberado o ano passado e que vos pusestes fora das leis. Foi deliberado o ano passado que, se houvesse algum levantamento no reino em nome e em benefício de qualquer pessoa que pretendesse ter direitos à coroa, fosse o culpado perseguido judiciaimente até à morte. E como se verificou...
      MARIA — Milorde Burleigh, não duvido de que deixe de ser executada contra mim uma lei que foi feita especialmente para me perder. Ai da infeliz vítima, quando os mesmos lábios que ditam a lei proferem a sentença! Negará, acaso, que essa deliberação foi tomada para me perder?
      BURLEIGH — Deveis considerá-la como um aviso. Vós mesma armastes os laços em que caistes. Haveis visto o precipício que se abria a vossos pés e contudo atirastes-vos a ele apesar de lealmente vos haverem advertido. Tínheis entendimentos com Babington, convicto do crime de alta traição, e com os seus companheiros assassinos. Sabíeis perfeitamente o que estava se passando e do fundo da vossa prisão fostes a alma da conspiração.
      MARIA — Não é verdade. Quando é que eu fiz isso? Apresentem-me os documentos que o provem.
      BURLEIGH — Já vos foram mostrados em presença do tribunal.
      MARIA — Cópias escritas por mão estranha. Prove que fui eu que as ditei e que as ditei tal como foram lidas.
      BURLEIGH — Foram as mesmas que Babington, antes de morrer, recebeu, reconheceu e confessou.
      MARIA — E porque razão não o confrontaram comigo, quando ainda estava vivo? Porque tiveram tanta pressa em lhe tirar a vida antes de o porem na minha presença?
      BURLEIGH — Os seus secretários, Kurl e Nau, asseguraram, sob juramento, que escreveram essas cartas ditadas por vós.
      MARIA — E sou condenada fazendo-se fé no depoimento dos meus criados? Ter confiança e fé nesses que me vendem, nesses que atraiçoam a sua rainha, quebrando ao mesmo tempo o juramento de fidelidade que me haviam feito, servindo de testemunhas contra mim!
      BURLEIGH — Declarastes uma vez que o escocês Kurl era homem virtuoso e de conciência.
      MARIA — Assim o supunha, mas a virtude de um homem prova-se no momento do perigo. A tortura deve tê-lo aterrorizado a tal ponto que o forçou a declarar e a dizer o que não sabia. Julgou que, prestando um falso testemunho, conseguiria se salvar sem com isso prejudicar a sua rainha.
      BURLEIGH — Confessou livre e volunariamente sob juramento.
      MARIA — Mas não na minha frente. Cavalheiro, as duas testemunhas ainda estão vivas? Pois tragam-nas à minha presença e ordenem-lhes que repitam o seu juramento. Porque me há de ser recusado o que nem a um assassino se nega? Sei, ouviu-o da boca de Talbot, o meu guarda constante, que neste reinado foi promulgada uma lei que manda o acusador comparecer em presença do acusado. Como? Enganei-me! Cavalheiro Paulet, sempre o considerei como um homem honrado. Diga-me em sua conciência: não é verdade? Não há essa lei na Inglaterra?
      PAULET — Sim, milady, há. É uma regra de direito entre nós. Tenho o dever de vô-lo dizer e assegurar.
      MARIA — Milorde, já que com tanta violência me aplicam as leis inglesas quando são contra mim, porque não as aplicam quando me beneficiam? Responda-me. Porque Babington não compareceu na minha presença como manda a lei? Porque não compareceram os meus secretários, que ainda estão vivos?
      BURLEIGH — Não vos exalteis, milady. O vosso entendimento com Babington não é o único motivo...
      MARIA — O único que me expõe à espada da lei e o único que pode me justificar. Milorde, fale-me apenas do que lhe digo, não se afaste daí.
      BURLEIGH — Também provou-se que tinheis entendimentos com Mendoza, o embaixador da Espanha.
      MARIA (com vivacidade) — Fale-me somente no que lhe digo, milorde.
      BURLEIGH — Que tínheis o projeto de destruir a religião do reino, que havíeis pedido aos monarcas das outras nações da Europa para fazerem guerra à Inglaterra.
      MARIA — Quando é que eu fiz isso?!... Não é verdade. Suponhamos, porém, que assim fosse. Milorde, mantêm-me aqui prisioneira, contra o direito das gentes. Não vim a este reino de espada na mão. Vim como suplicante invocar os sagrados direitos da hospitalidade e jogar-me nos braços duma rainha em cujas veias corre o mesmo sangue que tenho nas minhas. Receberam-me com a violência, preparando cadeias onde só pensava encontrar proteção e amparo. Diga-me: A minha conciência está ligada a este reino? Tenho por acaso deveres que cumprir para com a Inglaterra? Usei do sagrado direito do oprimido. Quis romper as minhas cadeias, opor a força à força, e chamar em meu socorro todos os Estados dessa parte do mundo. Posso lançar mão de tudo o que seja justo e cavalheiresco numa boa guerra. A minha conciência e o meu orgulho me proibem apenas o assassínio, os atentados secretos. O assassínio desonrar-me-ia, mas de nenhum modo me submeteria à sentença da justiça, porque não é de justiça e sim de força, a questão que se derime entre mim e a Inglaterra.
      BURLEIGH — Não invoqueis o terrível direito da força, niilady,porque ele não é favorável aos prisioneiros.
      MARIA — Sou fraca e ela é forte. Já que emprega a força, que me mate, que me sacrifique nas aras da sua própria segurança, mas não deixe de confessar que ao proceder assim não se inspira na justiça, mas na força. Não usurpe a espada da lei para ficar livre de uma inimiga a quem odeia de morte. Não pretenda cobrir com o manto da salvação do Estado o que é o sanguinolento impulso da força bruta. Não engane o mundo com gracejos tão terríveis! Pode me mandar matar, mas não pode me julgar. Desista de querer unir os frutos do crime à sagrada aparência da virtude e se atreva a aparecer tal como é. (Sai.)



Cena VIII

(Burleigh e Paulet.)

      BURLEIGH — Faz-nos frente e assim continuará, cavalheiro Paulet, até subir os degraus do cadafalso. Não nos é possível humilhar seu orgulhoso coração. Surpreendeu-a a sentença? Viu nos seus olhos uma lágrima que fosse? Viu-a mudar de cor? Não pediu a nossa compaixão. Sabe perfeitamente que a rainha da Inglaterra hesita e é o nosso próprio temor que lhe dá ânimo.
      PAULET — Lorde tesoureiro, essa soberba inútil desaparecerá logo que não se dê pretexto para ela. Permita-me que diga que nesta causa foram cometidos alguns erros. Devia-se ter ordenado que perante ela comparecessem Babington, Dichburns e os seus secretários.
      BURLEIGH (com vivacidade) — Não, cavalheiro Paulet, não era conveniente expormo-nos assim, porque é grande o seu poder e as lágrimas duma mulher exercem tanta influência nos ânimos, como nos corações. Se Kurl tivesse comparecido na sua presença, ter-se-ia atrevido a proferir as palavras que haviam de condenar a sua rainha? Talvez que, temeroso, contradissesse tudo o que havia dito antes.
      PAULET — Os inimigos da Inglaterra encherão então o mundo de odiosas murmurações e o brilho solene deste processo aparecerá como uma quimera de insensatos.
      BURLEIGH — E é isso o que inquieta a nossa rainha. Oh! Porque é que essa mulher, que tantos males causou, não morreu antes de pisar o solo da Inglaterra?
      PAULET — A isso nada tenho que objetar.
      BURLEIGH — Porque é que uma doença não a levou?
      PAULET — Muitas desgraças teria poupado a este povo.
      BURLEIGH — E agora, se ela morresse por qualquer coisa natural, chamar-nos-iam de assassinos.
      PAULET — A verdade é que o homem não deve deixar de pensar no que pode acontecer.
      BURLEIGH — Não se poderia provar, o que daria mais razões ainda para falar.
      PAULET — Que importância tem o que se possa dizer? Não é o maior vitupério, mas o mais justo o que fere.
      BURLEIGH — Nem a própria justiça santa escapa ao vitupério. A opinião pública é favorável aos infelizes e a inveja persegue sem cessar os que vencem. A espada do juiz, que serve de ornamento ao homem, torna-se odiosa nas mãos de uma mulher. O mundo não acredita na justiça de uma mulher, quando outra mulher foi a vítima dessa justiça. É em vão que os juizes falam em consciência. A rainha tem o direito régio do perdão. É absolutamente indispensável que faça uso dele.
      PAULET — E, sendo assim...
      BURLEIGH (interrompendo-o bruscamente) — E, sendo assim, há de viver? Não, não deve viver. Não, nunca, nunca! É isso o que preocupa a rainha, é por isso que o sono foge das suas pálpebras. Leio-lhe no olhar a luta que se trava na sua alma. Os lábios não se atrevem a exprimir nenhum desejo, mas o seu olhar significativo pergunta: “Não há entre os que me servem ninguém que queira poupar-me o ter de tremer continuamente de receio no meu próprio trono, ou de fazer subir ao cadafalso essa temível rainha em cujas veias corre o mesmo sangue que tenho nas minhas?”
      PAULET — É uma coisa que não se pode deixar de fazer.
      BURLEIGH — Mas que poderia se evitar, na opinião da rainha, se ela contasse com servidores mais decididos e dedicados.
      PAULET — Decididos e dedicados?
      BURLEIGH — Que soubessem compreender uma ordem tácita.
      PAULET — Uma ordem tácita!
      BURLEIGH — Que, quando se lhes dá uma serpente venenosa para guardar, não a viagiassem como uma jóia cara e sagrada, mas sim como perigoso inimigo.
      PAULET (frisando bem as palavras) — Uma jóia muito estimada é o bom nome, a fama sem mácula da rainha, jóia que não se sabe guardar suficientemente, milorde.
      BURLEIGH — Quando se tirou a lady da vigilância de Shrewsbury para a confiar à de Paulet, compreendia-se que...
      PAULET (interrompendo-o) — Penso, cavalheiro, que se compreendia que o fim não era outro senão o de pôr esse difícil lugar em mãos mais decentes. Com o diabo! Não teria aceitado o ofício de alguazil se não ententendesse que podia ser desempenhado pelo homem mais nobre da Inglaterra. Permita-me que creia que o devo somente à minha reputação sem mancha.
      BURLEIGH — Murmura-se por ai que, dia a dia, ela fica mais doente. Finalmente, se morrer, morrerá na memória dos homens e a sua reputação continuará sem mácula.
      PAULET — Não porém a minha consciência.
      BURLEIGH — Se não quer por sua própria mão, não porá impecilhos a que outra...
      PAULET (interrompendo-o) — Nenhum assassino se aproximará da porta da sua prisão, enquanto eu velar por ela. A sua vida é sagrada para mim, tão sagrada como a cabeça da rainha da Inglaterra. Os senhores são os juizes: julguem-na, pronunciem a sentença de morte e quando chegar a hora ordenem que venha o carpinteiro com o machado e a serra para levantar o cadafalso. Só para o cherife e ou para o carrasco se abrirão as portas deste castelo. Agora, está ela confiada à minha vigilância e pode ter a certeza de que continuará bem vigiada e que não lhe acontecerá nenhum mal. (Saem.)



Ato Segundo

No Palácio de Westminster

Cena I

(O conde de Kent e sir William Davison, encontrando-se.)

      DAVISON — É o senhor, milorde de Kent? Vem do torneio? A festa já acabou?
      KENT — Que? Não assistiu-a?
      DAVISON — As obrigações do meu cargo me prenderam.
      KENT — Pois deixou de assistir a uma festa das mais interessantes. Não pode imaginar o bom gosto que a ela presidiu. Representou-se a casta fortaleza da formosura sitiada pelos deuses. O lorde marechal, o primeiro juiz, o senescal, e mais dez cavalheiros da rainha defendiam a fortaleza, que era atacada pelos cavalheiros franceses. Antes de se iniciar a luta, um arauto, num madrigal, exigiu a rendição do castelo. Respondeu o chanceler do alto das muralhas e troou a artilharia. Ramalhetes de flores, espalhando pelo ambiente preciosas essências, saiam dos canhões. Em vão! Os que atacavam foram repelidos e obrigados a retirar.
      DAVISON — Maus augúrios, conde, para os de casamento entaboladas com a França.
      KENT — Foi apenas uma brincadeira. Se fosse a sério, acredito que a fortaleza terminaria por se render.
      DAVISON — Acha isso? Eu penso que não.
      KENT — A França apresentou condições bem claras. Monsieur aceita o celebrar o seu culto em capela particular, e publicamente respeitar e proteger a religião do reino. Se visse a alegria do povo ao saber essa noticia!... O que o pais temia era ver morrer a rainha sem descendentes, a Inglaterra cair novamente nas cadeias da igreja romana e Maria Stuart subir ao trono.
      DAVISON — Podem deixar de tal receio. A rainha subirá ao tálamo nupcial e Maria Stuart ao cadafalso.
      KENT — Aí vem a rainha!



Cena II

(Os mesmos, Isabel, rainha da Inglaterra, precedida de Leicester, do conde de Aubespine, de Bellievre, do conde de Shrewsbury, de lorde Burleigh e muitos outros nobres franceses e ingleses.)

      ISABEL (a Aubespine) — Conde, lastimo esses nobres que por zelo gentil aqui vêem, atravessando o mar e trazendo-me todo o brilho da corte de S. Germano. Não há na minha essas magníficas festas que são oferecidas na corte da rainha mãe de França. Um povo honrado e contente que quando me apresento publicamente se comprime em torno de mim, bendizendo-me, tal é o espetáculo que posso orgulhosamente proporcionar aos estrangeiros. A magnificência das nobres damas, que florescem nos jardins da beleza da rainha Catarina, eclipsar-se-me-ia e ao meu humilde mérito.
      AUBESPINE — Somente uma dama a corte de Westminster apresenta aos estrangeiros surpresos, mas nela se acham reunidos todos os encantos do belo sexo.
      BELLIEVRE — A ilustre rainha da Inglaterra permitir-nos-á que lhe apresentemos as nossas despedidas para ir levar a Monsieur, nosso real amo, a grata notícia que o tornará feliz. A ardente impaciência do seu coração não o deixou ficar em Paris e aguarda em Amiens os mensageiros da sua felicidade. Os correios chegam a Calais, para que possa saber o mais depressa possível o desejado “sim” proferido pelos vossos reais lábios.
      ISABEL — Conde de Bellievre, não me obrigue a dar uma resposta. Não é o momento oportuno, repito-o, para acender os fachos do himeneu. O céu deste país se encontra agora sombrio e melhor me ficariam os crepes de luto que o esplêndido traje de noivado, pois um golpe lamentável ameaça tombar sobre o meu coração, e sobre a minha própria morada.
      BELLIEVRE — Dai-nos, rainha, a vossa palavra, que podereis cumprir em dias mais alegres.
      ISABEL — Os reis são escravos da sua hierarquia e não podem seguir os sentimentos do seu coração. Morrer solteira tem sido sempre o meu desejo e teria sido para mim a glória que na minha sepultura fosse posta a seguinte inscrição: “Aqui dorme a rainha virgem.”. Os meus vassalos porém assim não o querem e pensam já no momento em que deixarei de existir. Não é bastante que a bênção da Providência tenha caído sobre esta terra. É preciso ainda mais que eu me sacrifique nas aras do bem-estar futuro, que renuncie, em benefício do meu povo, ao meu maior bem, forçando-me a aceitar um senhor. Isso vem me dar provas de que sou uma mulher, quando pensava em reinar como homem, como rei. Bem sei que não cumprir as ordens da natureza não é servir a Deus. Aqueles que me precederam no trono merecem os meus louvores por terem aberto as portas dos conventos e feito tornar aos deveres da natureza milhares de mulheres, deploráveis vitimas duma piedade falsamente compreendida. Todavia uma rainha que não gasta o seu tempo numa contemplação tão ociosa quanto inútil, que cumpre infatigavelmente os mais penosos deveres, devia ser excetuada dessa lei da natureza que torna metade do gênero humano dependente da outra metade.
      AUBESPINE — Todas as virtudes, rainha, têm brilhado no vosso trono. Não vos resta mais nada a dar ao sexo, de que sois glória, do que o exemplo dum merecimento sumamente admirável. Não há nenhum homem na terra que seja digno do sacrifício da vossa liberdade. Mas se o nascimento, a virtude heróica, a beleza varonil de um mortal o fazem merecedor dessa honra, então...
      ISABEL (interrompendo-o) — Não há dúvida, senhor embaixador, que muito me honra uma união com um filho real da França. Sim, sinceramente confesso-o se que se tem de ser, se não me é possivel deixar de obedecer aos desejos do meu povo, se esses desejos são mais fortes do que eu, como temo que o sejam, não sei de outro príncipe na Europa ao qual sacrifique com menos tristeza a minha jóia mais preciosa, que é a minha liberdade.
      BELLIEVRE — É a mais bela das esperanças, não passa, porém, duma esperança, e meu real senhor deseja mais do que isso.
      ISABEL — Que deseja ele, então? (tira um anel e olha-o pensativa). Uma rainha não tem mais vantagens que uma simples camponesa? O mesmo sinal dá a entender os mesmos deveres e a mesma escravidão. O anel é o pacto dum noivado e de anéis é com que se forma uma cadeia. Leve este presente a sua alteza. Não é, contudo uma cadeia que me prenda, mas pode ser um laço que me obrigue.
      BELLIEVRE (ajoelhando-se para receber o anel) — Em nome de Sua alteza, rainha ilustre, recebo de joelhos este presente e deponho um beijo de homenagem na mão da minha princesa.
      ISABEL (ao conde de Leicester, em quem cravara o olhar, enquanto Beilievre falava) — Permita-me, milorde. (Tira-lhe o cordão azul e coloca-o no peito de Bellievre) — Adorne a sua alteza com esse cordão — com ele o invisto segundo os deveres da minha ordem “Honny soit qui mal y pense!” Que toda desconfiança entre as duas nações desapareça e que de agora em diante um laço de confiança una as coroas da Fança e da Grã-Bretanha.
      AUBESPINE — Rainha ilustre, hoje é um dia de alegria. Oxalá fosse igual para todos oxalá que nenhum infeliz gemesse nesta ilha. A demência fulge no vosso semblante. Oxalá que um raio desse sereno fulgor iluminasse também uma infeliz princesa que tanto pertence à França quanto à Grã-Bretanha.
      ISABEL — Nem uma palavra mais, conde. Não misturemos dois assuntos que não podem ter semelhança. Se a França formalmente deseja a nossa união, deve partilhar de todas as minhas inquietações e não ser amiga dos meus inimigos.
      AUBESPINE — Indigna seria a vossos olhos, senhora, se a França, ao celebrar esta união esquecesse essa infeliz... A honra e a humanidade pedem...
      ISABEL (interrompendo-o) — Nesse sentido, não posso deixar de sincera e imensamente apreciar a sua intercessão. A França cumpre desse modo um dever de amizade, ser-me-á permitido, porém, que aja como rainha. (Despede os nobres de França que respeitosamente se afastam em companhia dos lordes.)



Cena III

(Isabel, Leicester, Burleigh e Talbot. A rainha senta-se.

      BURLEIGH — Rainha ilustre, coroais hoje os ardentes anseios do nosso povo. Não podemos deixar de nos sentir felizes ao ver, na nossa frente, os dias de bênção de que nos fazeis presentes e apagada a dolorosa perspectiva que nos oferecia um proceloso porvir. Uma única inquietação fere o vosso povo — ele pede uma vítima. Atendei ao seu desejo e hoje será o dia em que cimentará solidamente a felicidade futura da Grã-Bretanha.
      ISABEL — Que mais deseja o meu povo? Fale, milorde.
      BURLEIGH — Exige a cabeça de Maria Stuart. Se quereis garantir-lhe o precioso presente da liberdade e a luz da verdade, que tanto lhe custou conseguir, fazei com que ela morra. Se não quereis que eternamente tremamos pela vossa preciosa vida, eliminemos a vossa inimiga. Sabeis que nem todos os ingleses pensam da mesma maneira. Sabeis que o culto idólatra da igreja romana tem nesta ilha muitos adoradores secretos. Alimentam eles propósitos hostís. Têm o coração preso a essa Stuart. Têm entendimentos com os seus irmãos de Lohringia, irreconciliáveis inimigos do nosso nome. Esse diabólico partido jurou-nos guerra de morte, combatendo-nos com as armas desleais do inferno. A casa do cardeal de Reims é a forja onde se fabricam os raios do regicídio. Dali são enviados a esta ilha emissários fanáticos e resolutos, que se escondem sob máscaras de várias espécies. Dali saiu um terceiro assassino, dali sairão, cada dia, ocultos inimigos. E no castelo de Fotheringhay está a alma dessa guerra sem quartel, incendeia este reino com o facho do amor que, dando a todos lisongeiras esperanças, arrasta a mocidade para uma morte certa. Libertá-la é o pretexto, mas o fito é sentá-la no vosso sólio. Porque essa raça dos Lohringios não quer reconhecer os vossos sagrados direitos. A seus olhos não passais de uma mulher que usurpou um trono, rainha, segundo apregoam, coroada pela sorte... Foram eles que induziram essa demente a intitular-se rainha da Inglaterra. Não é possível esperar a paz dessa raça. Deveis vibrar o golpe ou é possível que o descarreguem sobre a vossa cabeça. A sua vida é a vossa morte — a sua morte é a vossa vida!
      ISABEL — Milorde, está desempenhando uma triste função. Conheço perfeitamente o leal impulso do seu zelo, sei que a experiência e a discreção falam pela sua boca, mas odeio, do mais fundo do coração, essa discreção, que pede sangue. Dê-me outro conselho mais moderado... Nobre lorde de Shrewsbury, dê-me a sua opinião.
      TALBOT — São justos os elogios que fizestes ao zelo que anima o fiel coração de Burleigh. Também o meu, embora não fale com tanto entusiasmo, pulsa não menos lealmente. Oxalá vivesseis dilatados anos, ó rainha, para serdes o consolo do vosso povo e prolongardes nestes reinos os benefícios da paz! Desde que esta ilha é governada por príncipes, nunca gozou dias gloriosos! Oxalá não compre a sua, felicidade pelo preço da sua glória! Praza a Deus que se cerrem os olhos de Talbot antes de tal acontecer!
      ISABEL — Deus não permitirá que manchemos a nossa glória.
      TALBOT — Procurai então outra maneira de salvar o reino, visto que a execução da Stuart é um meio injusto. Não podeis pronunciar a sua sentença já que ela é vossa prisioneira.
      ISABEL — Nesse caso estão equivocados o conselho de estado e o meu parlamento bem assim como os tribunais de justiça, ao reconhecerem unanimemente esse direito.
      A maioria de opiniões não é prova bastante de que se acerta. A Inglaterra não é o mundo, nem o parlamento é a reunião de todas as raças humanas. A Inglaterra de hoje não é a Inglaterra futura, nem a Inglaterra passada. Assim como as inclinações mudam, também sobem ou baixam as ondas dos juizos humanos, Não digais que deveis obedecer às necessidades e às exigências do vosso povo. Sempre que o quiserdes, a qualquer momento sabereis provar que a vossa vontade é soberana. Tentai-o! Declarai que detestais o derramamento de sangue, que quereis que a vida de vossa irmã seja salva; demonstrai a todos que vos aconselham outra coisa a verdade e o fundamento da vossa real cólera e vereis como depressa desapareceria essa necessidade e a justiça se transformará em injustiça. Vós própria, somente vós, deveis julgar. Não podeis apoiar-vos nessa razão débil e incerta. Segui os impulsos da vossa brandura de alma. Deus não pôs a força no fraco coração de mulher. E os que fundaram este reino, confiando a uma mulher o leme do governo, fizeram saber que não devem ser o rigor e a severidade que devem dirigir esse povo.
      ISABEL — O conde de Shrewsbury é o defensor entusiástico da inimiga da minha pessoa e da sua rainha. Prefiro, conselheiros, que se interessem mais por mim.
      TALBOT — Ah! não se lhe concederá nenhum defensor, ninguém se atreverá a falar em defesa da sua causa e expôr-se à vossa cólera. Permiti, pois, a um velho que, achando—se à beira da sepultura, não pode deixar-se seduzir por nenhuma esperança terrena, que defenda a causa daquela que está abandonada. Que não seja dito que no vosso conselho de estado a parcialidade e o interesse pessoal foram os únicos a levantar a voz, quando a clemência ficou muda. Tudo se conjurou contra ela. Vós nunca viste a sua fisionomia e nada há no vosso coração que fale em favor da estrangeira. Não estou com a palavra para justificar os seus erros. Diz-se que ela mandou assassinar o próprio esposo, mas a única coisa que há de positivo é que casou com o assassino. É um negro crime, mas deu-se num período de revoltas políticas, de calamidades e em meio dos tormentos da guerra civil. Ela era então muito fraca, cercada de vassalos exigentes. Atirou-se nos braços do mais forte e resoluto. Quem sabe por meio de que manejos ele terá triunfado dela! A mulher é fraca.
      ISABEL — A mulher não é fraca. Há no nosso sexo almas dotadas de alevantado ânimo. Não quero que na minha presença se fale da fraqueza das mulheres.
      TALBOT — O infortúnio foi uma escola muito severa para vós. A vida não se apresenta a vossos olhos com aspecto lisonjeiro. Não vêdes nenhum trono em perspectiva. Só vêdes um túmulo a vossos pés. O Pai celestial e misericordioso, protetor desta terra, educou-vos em Woodstocks, na escuridão da torre, aproveitando-se do sofrimento para vos ensinar a cumprir o vosso dever. Adulador algum ali aproximava-se de vós. Afastada do vão bulício do mundo, a vossa alma aprendeu desde muito cedo a recolher-se, a concentrar-se em si mesma e a pesar os verdadeiros bens desta vida. Mas essa desgraçada Maria não foi salva por Deus algum. Era ainda criança quando a levaram para a corte de França, antro da vaidade e dos prazeres. Ali, no meio da serena embriaguês, não ouviu a voz formal da verdade. Cegou-a o brilho dos vícios, foi arrastada pela corrente da dissipação. A sua beleza vã e juvenil eclipsou todas as mulheres.
      ISABEL — Caia em si, milorde — lembre-se de que estamos num conselho formal. Encantos inegualáveis devem ser os que ela possui para com tal veemência se sentir seduzido um ancião como o senhor. Milorde de Leicester, só o senhor continua em silêncio. O que torna Talbot eloqüente será exatamente o que o faz ficar mudo?
      LEICESTER — A surpresa é que me põe mudo. Vejo que prestais ouvidos a tais terrores. Como essas anedotas, cuja narrativa impacienta até a crédula populaça das ruas de Londres, subiram até aqui, até o vosso conselho privado, fazendo com que homens de saber e de experiência se ocupem delas com gravidade. A minha admiração cresce, confesso-o, quando vejo que do fundo da sua prisão essa rainha expatriada da Escócia vos faz tremer, essa rainha cujo trono, embora insignificante, não soube conservar, constituindo o escárnio dos seus próprios vassalos e o desprezo da sua terra. Por Deus! Tende receio porque tem ela pretensõs à vossa coroa? Porque se negam os Guises a reconhecer-vos um direito que o nascimento vos deu e o voto do parlamento confirmou? Não foi ela tacitamente excluída pela última vontade do rei Henrique? Lançar-se-á a Inglaterra nos braços duma papista, quando tão ditosamente goza agora duma nova luz? Abandonar-vos-á a Inglaterra preferindo a uma soberana idolatrada pelo seu povo àquela que assassinou Darnley? Que desejam esses homens inquietos que, estando vós viva, vos atormentam contudo com a herança do trono, que não podem conseguir à força de súplicas que vos caseis o mais depressa possível para livrar de perigo o Estado e a Igreja? Não estais radiante de mocidade, enquanto ela, a cada, dia que passa, mais e mais se aproxima da beira da sepultura?
      BURLEIGH — Nem sempre lorde Leicester pensou desse modo.
      LEICESTER — É verdade. No tribunal eu ouvi uma voz que pediu a sua morte, mas que o conselho de Estado falou doutra maneira. Aqui a questão não está em se é ou não justiça, mas sim conveniência. É o momento agora de a temer, quando a Fránça, que é o seu único amparo, a abandona, quando ides fazê-la feliz concedendo a vossa mão ao filho do seu rei e a esperança duma nova família real floresce nesta terra? Para que, portanto, matá-la? Ela já morreu! O desprezo é uma verdadeira morte! Tende cuidado em que a misericórdia não a chame novamente. A minha opinião é que se dê toda a força à sentença que ordena e manda que ela seja decapitada...
      ISABEL (levantando-se) — Ouvi as suas opiniões, milordes. Agradeço-lhes o seu zelo. Com o auxílio de Deus, que ilumina o espírito dos reis, examinarei o seu fundamento e decidirei o melhor possivel.



Cena IV

(Os mesmos e o cavalheiro Paulet com Mortimer.)

      ISABEL — Ai vem Ausias Paulet. Nobre cavalheiro, que novas nos traz?
      PAULET — Majestade ilustre, meu sobrinho, chegado há pouco de uma longa viagem, ajoelha a vossos pés e vos apresenta os seus respeitos. Recebei-os com boa vontade e permiti que o sol da vossa graça o ilumine.
      MORTIMER (ajoelhando-se) — Queira Deus que a minha real senhora viva dilatados anos e que a felicidade e a glória coroem a sua fronte!
      ISABEL — Levante-se. Seja benvindo a esta terra da Inglaterra, cavalheiro. Fez uma grande viagem, viu a França e Roma, deteve-se em Reims. Diga-me, pois, os projetos que traçam os nossos inimigos.
      MORTIMER — Deus os confunda e torne contra os seus corações os dardos que pretendem lançar contra a minha rainha.
      ISABEL — Viu Morgen e o intrigante, bispo de Rosse?
      MORTIMER — Conheci todos os emigrados escoceses que tramam ciladas contra esta ilha. Conquistei-lhes a confiança com o fito de descobrir alguma coisa dos seus projetos.
      PAULET — Confiaram-lhe cartas secretas em cifra dirigidas à rainha da Escócia, as quais nos entregou fielmente.
      ISABEL — Diga-me: quais são os seus últimos propósitos?
      MORTIMER — Foi para eles tremendo golpe o abandono que a França manifesta com respeito às suas pretensões e a estreita aliança que essa nação celebrou com a Inglaterra, de modo que a sua esperança volta-se unicamente para a Espanha.
      ISABEL — É o que me manda dizer Walsingham?
      MORTIMER — Quando ia sair de Reims, foi recebida nessa cidade uma encíclica, que o papa Sixto publicou contra vossa majestade. O primeiro navio que chegue a esta ilha deve trazê-la.
      LEICESTER — Tais armas não fazem a Inglaterra tremer.
      BURLEIGH — São temíveis nas mãos de um fanático.
      ISABEL (olhando Mortimer fixamente) — Acusam-no de haver visitado as escolas de Reims e ter abjurado a sua religião.
      MORTIMER — Fingi fazê-lo, não o nego. A tal extremo chegou a minha diligência para bem vos servir.
      ISABEL (a Paulet, que tira um papel do bolso) — Que tem aí?
      PAULET — Uma carta que a rainha da Escócia vos envia.
      BURLEIGH (tentando, vivamente, pegar nela) — Dê-ma.
      PAULET (entregando-a à rainha) — Perdoe-me, mas o lorde tesoureiro ordenou-me que a entregasse pessoalmente à rainha. Ela diz a todo instante que eu sou seu inimigo. Sou apenas inimigo dos seus vícios, fazendo tudo quanto é compatível com os meus deveres. (A rainha toma a carta. Enquanto a lê, Mortimer e Leicester conversam em voz baixa.)
      BURLEIGH (a Paulet) — Que poderá dizer-lhe nessa carta? Lamentações inúteis, que devíamos poupar ao coração compassivo da rainha.
      PAULET — Não, não escondeu o que diz. Implora um favor: o de ter uma entrevista com Isabel.
      BURLEIGH (brusco) — Isso, jamais!
      TALBOT — Porque razão? Não pede nada de injusto.
      BURLEIGH — Mas aquela que induziu ao assassínio e se mostrou sequiosa do sangue de sua majestade não merece ver o rosto real. Quem se porta lealmente com a sua rainha não pode dar esse conselho falso e traidor.
      TALBOT — Se a rainha quiser conceder-lhe tal favor, quer se opor ao benevolente gesto da sua clemência?
      BURLEIGH — Ela já está julgada. Sua cabeça pertença ao carrasco. Não é digno de sua majestade ver a cabeça que foi entregue ao patíbulo. Se ela se aproximar da rainha, a sentença não poderá ser executada, porquanto a presença real implica o perdão...
      ISABEL (enxugando as lágrimas logo após ler a carta) — O que é o homem? O que é a felicidade na terra? Até onde poude chegar essa rainha que foi chamada para ocupar o mais antigo trono da cristandade, essa rainha que pensava cingir três coroas na fronte?
      Como diversa é da linguagem que usa hoje a linguagem dos tempos em que usurpou os brazões da Inglaterra fazendo com que os bajuladores da sua corte a chamassem rainha da Grã-Bretanha! Desculpem, milordes, isto toca-me o coração. O desânimo apodera-se de mim e o meu coração verte sangue quando vejo a absoluta fragilidade das coisas terrenas e o trágico destino da humanidade, tão proximamente suspenso sobre a minha própria cabeça.
      TALBOT — Oh, rainha, Deus vos tocou o coração! Obedecei a essa graça celestial. Ela já expiou bastante as suas culpas. Estendei a vossa piedosa mão àquela que caiu tão fundo e como um anjo de luz descei até às tenebrosas sombras do seu cárcere.
      BURLEIGH — Mantende-vos firme, rainha ilustre. Não consintais que vos perturbe um sentimento plausível de humanidade. Não tireis a vós própria a liberdade de fazer o que é preciso. Não podeis oferecer-lhe nenhum perdão, nem salvá-la. Não vos exponhais ao odioso vitupério que tombaria sobre o vosso nome se vos deixásseis iludir e vencer pelo olhar triunfador e terrível da vossa própria vítima.
      LEICESTER — Silêncio, milordes. A rainha é sábia e não necessita dos nossos conselhos para escolher o que seja mais digno. A entrevista de duas princesas não tem nada que ver com a sentença do tribunal. Não foi a vontade do monarca, mas sim as leis da Inglaterra que condenaram Maria. É digno da alma superior de Isabel seguir os magnânimos ditames do seu coração, enquanto a lei não perde o seu poderoso prestígio.
      ISABEL — Retirem-se, milordes. Haveremos de encontrar um meio de harmonizar o que nos exige a clemência e o que a necessidade nos pede. Podem retirar-se. (Os lordes saem. Chama Mortimer no momento em que ele ia transpor a porta). Sir Mortimer, quero duas palavras suas. (Mortimer volta.)



Cena V

(Isabel e Mortimer.)

      ISABEL (após ter olhado para Mortimer com penetrante olhar) — Demonstrou ânimo ousado e domínio sobre si próprio bastante raro na sua idade. Quem tão cedo soube manejar a difícil arte da dissimulação é merecedor de distinções antes de tempo e de tornar mais breves os anos de experiência. O destino chama-o para uma vitoriosa carreira. Auguro-lhe isso e, para felicidade sua, posso ajudar muito a concretização da minha profecia.
      MORTIMER — Ilustre soberana, o quanto valho e o que sou estão ao vosso préstimo.
      ISABEL — Aprendeu a conhecer os inimigos da Inglaterra. O ódio que têm por mim é implacável, os seus sinistros projetos não medem nenhum obstáculo. Até hoje, é certo, o Onipotente me protegeu, mas a coroa tremerá na minha fronte enquanto viver aquela que serve de pretexto ao seu zelo fanático e de objetivo às suas esperanças.
      MORTIMER — Deixará de viver tão cedo o ordeneis.
      ISABEL — Ah, Mortimer! Eu pensava que havia chegado ao fim e agora vejo que ainda me acho no começo. Queria deixar que as leis falassem e assim conservar as minhas mãos limpas de sangue. A sentença já está pronunciada, e o que lucrei com isso? É premente, Mortimer, que ela seja executada. E sou eu quem deve dar a ordem para a sua execução. Todo o ódio cairá sobre mim. Devo confessar que não posso salvar as aparências. E isso é o pior!
      MORTIMER — Que importância tem para vós a má aparência numa causa justa?
      ISABEL — Desconhece o mundo, cavalheiro. De acordo com o que se aparenta, assim se encontra um juiz. De acordo com o que se é, não se acha nenhum. Não posso convencer ninguém quanto aos meus direitos. Tenho de fazer com que a minha participação na morte dessa infeliz permaneça imersa em eterna dúvida. Em fatos que aparentam um duplo aspecto não há melhor proteção que as trevas. O pior passo que podemos dar é confessá-lo. Nada está perdido enquanto nada se diz.
      MORTIMER (tentando alcançar o pensamento da rainha) — Nesse caso, o que seria melhor..,
      ISABEL (interrompendo-o bruscamente) — Francamente, seria o melhor... Oh! o meu anjo bom fala pela minha boca. Prossiga, conclua, digno cavalheiro. Tem um caráter resoluto, mede bem as coisas, é precisamente o oposto de seu tio.
      MORTIMER (muito espantado) — Revelastes a meu tio o vosso desejo?
      ISABEL — E muito me arrependo de tê-lo feito.
      MORTIMER — Desculpai o pobre velho. Os anos tornaram-no timorato. Tais golpes de audácia requerem o esforço decidido da mocidade.
      ISABEL (em tom brusco) — Posso contar consigo?
      MORTIMER — Emprestar-vos-ei o meu concurso. Salvai o vosso nome da maneira que puderdes.
      ISABEL — Perfeitamente, cavalheiro. Se uma manhã destas me acordar com esta mensagem: “Maria Stuart, a vossa temível inimiga, morreu esta noite...”
      MORTIMER — Contai comigo.
      ISABEL — Como a minha cabeça poderá descansar tranqüilamente!
      MORTIMER — A próxima lua nova trará o ponto final dos vossos temores.
      ISABEL — Adeus, portanto, cavalheiro. Não lhe dê cuidado se a minha gratidão se valer do véu da noite. O silêncio é o deus dos afortunados... Os laços mais íntimos e doces são aqueles que o segredo protege. (Sai.)



Cena VI

(Mortimer, só.)

      Vai-te, rainha falsa e hipócrita. Como finges diante do mundo, assim finjo eu diante de ti. Lícito é o vender-te para praticar uma boa ação. Tenho porventura modos de assassino? Leste hábitos de perversidade na minha fisionomia? Confia no meu braço e retira o teu. Exibe aos olhos do mundo a falsa aparência da piedade e perdão. Enquanto confias no meu concurso para conseguires essa morte, ganharemos tempo para salvá-la. Queres me elevar... Acenas-me de longe com uma recompensa extraordinariamente preciosa. Talvez que essa recompensa sejas tu própria e o teu amor. Mas quem és e o que é que podes ofertar? Não me tenta a graça de uma glória vã... Só a seu lado está o encanto da vida... À sua volta flutuam em coros alegres, os deuses da graça e do juvenil contentamento... A felicidade do céu esconde-se no seu colo. Tu somente me poderás oferecer bens sem vida. Tu jamais possuiste o bem mais alto que pode coroar a vida, quando um coração, arrebatando e arrebatado, se entrega a outro num doce esquecimento de si próprio. Não possuiste a coroa da mulher. Amando, jamais fizeste feliz um homem. É preciso esperar o lorde para lhe entregar a carta. Odiosa missão! Não gosto desse cortesão. Eu próprio poderei salvá-la, eu sozinho... Meu será o perigo, como meus serão a glória e a recompensa. (Quando vai sair encontra-se com Paulet).


Cena VII

(Mortimer e Paulet. Depois Leicester.)

      PAULET — O que foi que a rainha te disse?
      MORTIMER — De importante, nada.
      PAULET (olhando-o seriamente) — Olha, Mortimer. Estás pisando um terreno escorregadio. O favor nuito tenta a mocidade que busca honrarias... Não te deixes cegar para ambição.
      MORTIMER — Não foi o senhor, meu tio, quem me apresentou na corte?
      PAULET — Desejaria não tê-lo feito. Não é na corte que a nossa família tem conquistado mais honrarias. Sustem-te firme, meu caro sobrinho. Não compres as coisas por um preço demasiado. Não ajas contra a tua consciência.
      MORTIMER — Que espantoso falar! Que cuidados são esses?
      PAULET — Por mais altas grandezas que a rainha te prometa, não te fies nas suas palavras falazes... Negar-te-á tudo quanto prometera depois de lhe teres obedecido e para manter o seu nome livre de nódoas vingará em tua pessoa o atentado que ela mesma ordenou.
      MORTIMER — O atentado...
      PAULET — Não tentes me iludir. Ela conta que a tua juventude sedenta de glória seja mais dútil que a minha obstinada velhice. Prometes-te-lhe alguma coisa? O que foi que prometeste?
      MORTIMER — Meu tio!
      PAULET — Se tal fizeste, amaldiçôo-te e renego-te.
      LEICESTER (entrando) — Cavalheiro, consinta-me que dê duas palavras a seu sobrinho. A rainha forma dele uma opinião muito lisongeira e quer que lhe seja confiada inteiramente a guarda de Maria Stuart.
      PAULET — Entrego-lha? Está bem!
      LEICESTER — Que diz, cavalheiro?
      PAULET — A rainha tem confiança nele. (Sai)



Cena VIII

(Leicester e Mortimer.)

      LEICESTER (surpreendido) — Que é que pensa disto o cavalheiro Paulet?
      MORTIMER — Não sei. A inesperada confiança com que me favorece a rainha...
      LEICESTER (encarando-o com sagaz expressão) — Merece, cavalheiro, que se confie em si?
      MORTIMER — Idêntica pergunta lhe faço eu, cavalheiro Leicester.
      LEICESTER — Tem alguma coisa em segredo para me dizer?
      MORTIMER — Antes de tudo assegure-me que posso me atrever a fazê-lo.
      LEICESTER — E quem a seu respeito me dará igual segurança? Que não o fira a minha desconfiança! vejo-o nesta corte apresentando duas caras diversas. Uma delas deve ser, forçosamente, falsa. Qual é a verdadeira?
      MORTIMER — A mesma coisa penso eu a seu respeito, sr. conde de Leicester.
      LEICESTER — Qual de nós deve ser o primeiro a demonstrar confiança?
      MORTIMER — O que tem menos a perder.
      LEICESTER — Então é o senhor.
      MORTIMER — Perdão, é o senhor. O seu testemunho, que é valioso por ser de um poderoso lorde, poderá me perder, enquanto que o meu é impotente contra o seu lugar e o prestígio de que goza na corte.
      LEICESTER — Está muito enganado, cavalheiro. Tratando-se de outras coisas, posso ser muito poderoso aqui. Mas num assunto de tal delicadeza posso pôr a prêmio a sua lealdade. Um testemunho traidor poderá me perder.
      MORTIMER — Quando o poderoso conde de Leicester se abaixa tanto diante de mim para fazer uma tal confissão, eu devo pensar mais alto do que ele e dar um exemplo de grandeza de ânimo.
      LEICESTER — Mostre-me a sua confiança e eu segui-lo-ei...
      MORTIMER (entregando-lhe uma carta) — Foi-lhe dirigida pela rainha da Escócia.
      LEICESTER (fica estupefato e toma precipitadamente a carta) — Fale, Mortimer! Que estou vendo? Ah! é o seu retrato! (Beija-o e contempla-o embevecidamente.)
      MORTIMER (que observa Leicester enquanto ele lê) — Confio em si, milorde.
      LEICESTER (após ter lido a carta) — Conhece o conteúdo desta carta, sir Mortimer?
      MORTIMER — Nada sei dela.
      LEICESTER — Sem dúvida que ela lhe deve ter confiado...
      MORTIMER — Não me contou nada. O senhor, disse-me ela, me esclarecerá este enigma, pois é um enigma para mim ver no conde de Leicester, favorito de Isabel, inimigo aberto de Maria e um dos seus juizes, o homem de quem a rainha, na sua desventura, espera a salvação. E, contudo, deve ser verdade, porquanto os seus olhos mostram muito expressivamente o que sente por ela.
      LEICESTER — Primeiramente me explique porque tem tão grande interesse pela sorte de Maria e como conseguiu a sua confiança.
      MORTIMER — Explicar-lhe-ei em poucas palavras, milorde. Em Roma abjurei e mantenho relações com os Guises. Uma carta do arcebispo de Reims acreditou-me junto da rainha da Escócia.
      LEICESTER — Soube da sua abjuração e foi exatamente isso que acendeu a minha desconfiança a seu respeito. Dê-me a sua mão e perdoe as minhas dúvidas. Sou obrigado a usar de toda cautela. Walsingham e Burleigh, me odeiam. Sei perfeitamente que me preparam ciladas e bem poderia ser o senhor um instrumento deles encarregado de me perder.
      MORTIMER — É incrível que um lorde como o senhor tenha de usar tanta cautela nesta corte!... Na verdade, lamento-o!
      LEICESTER — Deixe-me desabafar no peito dum amigo dedicado. Ficou admirado, cavalheiro, por ver o meu coração transformar-se de súbito ao pensar em Maria. Efetivamente, jamais a odiei. A força das circunstâncias tornou-me seu adversário. Como deve estar ao par, ela pensou em mim antes de ter dado a mão a Darnley, quando em volta de si só via grandeza e fortuna. Eu não quis essa felicidade e agora, que Maria sofre na prisão e está às portas da morte, desejo libertá-la ainda mesmo que com risco da vida.
      MORTIMER — É cavalheiresco!
      LEICESTER — Todavia mudou o aspecto das coisas. A minha ambição me tornava insensível às tentações da mocidade e da beleza. Então, a mão de Maria me pareceu bem pouca coisa, pois esperava possuir a da rainha da Inglaterra.
      MORTIMER — É sabido que o prefere a todos.
      LEICESTER — Assim me parece também, meu nobre amigo. Mas, agora, ao fim de dez anos perdidos na minha incessante solicitude, odiosa violência... Oh, cavalheiro!... Doi meu coração ao falar em tão grande desgosto... Consideram-me feliz! Se soubessem o que representam as algemas que me invejam! Após ter sacrificado dez amargos e intermináveis anos nas aras do vaidoso ídolo, após ter me sujeitado com a paciência de um escravo a todas as suas veleidades de sultana, após ter me tornado um joguete de todas as suas loucas extravagâncias, hoje dono da sua ternura, amanhã repelido por seu rude orgulho, martirizado tanto pelo seu favor como pelo seu desprezo, vigiado como se fosse um prisioneiro pelo olhar agudo do ciúme, inquirido como se fosse uma criança, insultado como se fosse um servo seu... Oh! não há linguagem humana que possa descrever todo este inferno!
      MORTIMER — Lamento-o, conde.
      LEICESTER — E, chegando ao fim desejado, a recompensa me escapa! Vem outro e me arrebata os frutos de uma tão constante solicitude!... Um jovem e garboso esposo faz-me perder os direitos que eu possuía há tanto tempo. Devo abandonar a cena onde durante tanto tempo brilhei. Não é apenas a sua mão, mas também o seu favor que esse novato ameaça roubar-me. Ela é mulher e ele é gentil.
      MORTIMER — É filho de Catarina. Em boa escola aprendeu a arte de adular.
      LEICESTER — Dessa forma naufragam as minhas esperanças e busco, ansioso, uma táboa para me agarrar... Meus olhos voltam-se novamente para as minhas primeiras e belas esperanças. A imagem de Maria, fulgente de atrativos, apresenta-se aos meus olhos. A mocidade e a beleza tornaram a conquistar os seus direitos. Não se trata de uma fria ambição, mas do coração que compara e avalia o tesouro que perdeu. Vejo-a lançada no, abismo da desgraça, e lançada por minha culpa. Desejava fazer-Ihe saber por alguém a mudança operada no meu coração e a carta que me trouxe garante-me o seu perdão e que, se salvá-la, me recompensará.
      MORTIMER — Mas nada faz para salvá-la. Permitiu que a condenassem, tendo sido até um dos que pediram a sua morte. Foi preciso um milagre, foi preciso que a luz da verdade iluminasse o coração do sobrinho do seu carcereiro e que o céu lhe preparasse no Vaticano um inesperado libertador. Se não fosse assim, não teria podido pôr-se em comunicação consigo.
      LEICESTER — Cavalheiro, inumeráveis tormentos me trouxe! Nessa ocasião, ela foi transferida do castelo de Talbot para Fotheringhay e entregue à severa guarda de seu tio. Eram vãos todos os meios. Para poder me comunicar com ela vi-me obrigado a me apresentar como seu adversário aos olhos do mundo. Não pense que eu desejava que ela subisse ao patíbulo. Não! Esperava, então, e ainda espero impedir essa desgraça até que me sejam proporcionados os meios de libertá-la.
      MORTIMER — Já os encontramos. A sua nobre confiança, Leicester, merece ser correspondida. Quero libertá-la e por esta razão me encontro aqui. Os preparativos estão feitos e a sua poderosa ajuda garante-nos um resultado feliz.
      LEICESTER — Que está dizendo? Amedronta-me!... Como? Que seria...
      MORTIMER — Arrancá-la da prisão... Tenho camaradas que me auxiliarão. Tudo está pronto!
      LEICESTER — Tem cúmplices e confidentes! Ai de mim, a que loucura me leva! E eles estão ao par do meu segredo?
      MORTIMER — Não se preocupe com isso. O plano foi elaborado sem levar em conta a sua pessoa e seria desempenhado à risca por nós se ela não quisesse ficar devendo ao senhor a salvação.
      LEICESTER — Se pudesse me dar a certeza de que o meu nome não figuraria na conspiração!
      MORTIMER — Assim é, na verdade. Como? Recebe com frieza a nova que lhe dou e que tanto o auxilia? Deseja salvar Maria e possuí-la, encontra, imprevistamente, amigos com que não contava, vem-lhe do céu um meio fácil e, em vez de contentamento, mostra perplexidade?!...
      LEICESTER — Não se deve recorrer à força. O plano é muito perigoso.
      MORTIMER — A demora também é perigosa.
      LEICESTER — Repito-lhe, cavalheiro, não devemos nos arriscar.
      MORTIMER (com amargor) — Não o senhor, que deseja possuí-la... Mas nós, que só queremos salvá-la, não refletimos tanto.
      LEICESTER — Moço, quer lançar-se num assunto arriscado e difícil?
      MORTIMER — O senhor reflete demais nele.
      LEICESTER — Porque vejo as ciladas que nos cercam por todos os lados.
      MORTIMER — Sinto-me com ânimo para enfrentá-las.
      LEICESTER — Insensatos, temeridade, loucura, eis em que se resume esse valor.
      MORTIMER — A sua prudência, milorde, não é arrojo.
      LEICESTER — Quer acabar como Babington?
      MORTIMER — E o senhor não deseja imitar o ânimo valoroso e magnânimo de Norfolk?
      LEICESTER — Norfolk não levou a sua amada ao altar.
      MORTIMER — Todavia provou que era digno de fazê-lo.
      LEICESTER — Se nos perdemos não conseguiremos libertá-la.
      MORTIMER — E, tardando-nos, jamais consegui- remos salvá-la.
      LEICESTER — Não pensa, não ouve ninguém e com a sua cega precipitação deita por terra o que está em bom caminho.
      MORTIMER — E esse bom caminho foi o senhor que abriu? Que foi o que fez para libertá-la? Se eu fosse um bandido, assassina-la-ia, como a rainha me ordenou, como a estas horas o espera. Diga-me uma coisa: que precauções tomaria para evitar a sua morte?
      LEICESTER (aterrorizado) — A rainha... a rainha lhe deu essa ordem sangrenta?
      MORTIMER — Está tão enganada comigo como Maria com o senhor.
      LEICESTER — E prometeu-lhe? Por ventura...
      MORTIMER — Para que ela não procurasse comprar outro braço, ofereci-lhe o meu.
      LEICESTER — Agiu muito bem. Isso nos dará tempo. Ela confia no seu sanguinário oferecimento, a sentença de morte continua a não ser executada e nós ganharemos tempo.
      MORTIMER (impaciente) — Não, não. Nós perdemos empo.
      LEICESTER — Ela conta consigo e, por isso, terá maior interesse em mostrar ao mundo as aparências da demência. Talvez que, usando de um subterfúgio, possa convencê-la a ter uma entrevista com a sua rival e esse passo impedir-lhe a ação. Burleigh tem toda razão. A sentença não pode ser posta em execução, enquanto ela não se encontrar com Maria. Sim, vou tentá-lo... E arranjarei tudo...
      MORTIMER — E, afinal, que é que conseguirá com isso? Quando perceber que foi enganada ao contar comigo e que Maria continua a viver... as coisas mudarão? Ela jamais será livre! O menos que poderá sofrer é a prisão perpétua. É preciso dar um golpe ousado. Porque não começaremos por aí? O senhor tem o poder nas mãos, pode, só com nobreza dos seus muitos castelos, reunir um exército. Maria ainda possue muitos amigos. As nobres casas de Howard e de Percy, embora seus chefes tenham sucumbido, são ainda férteis em heróis e aguardam apenas que um lorde poderoso lhes dê o exemplo. Nada de ilus~pes, precisamos agir! Agir abertamente! Defenda como cavalheiro a mulher a quem ama e lute nobremente pela sua causa. Logo que o desejar, será senhor da rainha da Inglaterra. Atraia-a a qualquer dos seus castelos. Várias vezes ela aí o tem seguido. Uma vez conseguido isto, mostre que é homem! Fale-lhe como senhor. Detenha-a até que Maria Stuart esteja em liberdade.
      LEICESTER — Espanta-me e amedronta-me. Até onde o conduz o delírio? Conhece esta terra? Sabe o que acontece nesta corte, que imenso é o domínio que essa mulher exerce sobre as almas? Procure o heroismo que noutros tempos enchia esta terra. Tudo caiu por terra ante o cetro dessa mulher. O valor diminuiu... Siga o meu exemplo. Não se exponha levianamente. Estou ouvindo passos. Separemo-nos.
      MORTIMER — Maria está à minha espera! Volto para junto dela, levando um inútil consolo.
      LEICESTER — Leve-lhe os juramentos do meu amor eterno.
      MORTIMER — Leve-lhos o senhor mesmo... Eu me ofereci a Maria como instrumento da sua liberdade, não me ofereci ao senhor como mensageiro de amores. (Sai.)



Cena IX

(Isabel e Leicester.)

      ISABEL — Quem é que estava aqui consigo? Ouvi vozes.
      LEICESTER (que ao ouvir a voz da rainha vira-se bruscamente e como que aterrorizado) — Era sir Mortimer.
      ISABEL — Que é que tem, Leicester? Porque está tão perturbado?
      LEICESTER (conseguindo dominar-se) — Por causa da vossa presença! Jamais vos vi tão sedutora... A vossa beleza deslumbra-me... Ai! Ai!
      ISABEL — Qual a razão dos seus suspiros?
      LEICESTER — Não tenho razão para isso? Agora que contemplo os vossos encantos a minha alma é tomada por uma dor infinita, porque avalio perfeitamente o quanto irei perder.
      ISABEL — O que é que vai perder?
      LEICESTER — O vosso coração, a vossa pessoa que tanto amor me inspira. Em breve vos jogareis nos braços jovens de um esposo apaixonado e neles vos sentireis feliz. Será ele o senhor exclusivo do vosso coração. É ele de sangue real e eu não o sou. Mas desafio que haja no mundo alguém que vos ame mais apaixonadamente do que eu. O duque de Anjou nunca vos viu, só pode amar em vós a vossa fama e o vosso poder. Eu porém, só vos amo, a vós, e mesmo que fôsseis a mais ínfima das pastoras e eu o soberano mais poderoso do mundo, poria a vossos pés a minha coroa.
      ISABEL — Não me invetives, Dudley, lamenta-me. Não tenho coragem de interrogar o coração. Ai! ele teria feito uma escolha diferente... Como invejo agora as mulheres que podem escolher livremente o seu amor! Não sou tão feliz que possa colocar a minha coroa na cabeça do homem que é para mim o mais amado entre todos... Essa Stuart teve a feliddade de conceder a mão ao homem que amava. Tudo foi possível para ela! Esgotou a taça do prazer!
      LEICESTER — Mas esgota agora a taça amarga da dor.
      ISABEL — Jamais deu importância à opinião dos homens. Sempre viveu levianamente, nunca padeceu o jugo a que eu me vejo sujeita. Teria podido aproveitar a vida, respirar livremente o ar do mundo, mas preferi os pesados deveres do monarca. Ela conseguiu a simpatia de todos os homens porque não quis ser mais que mulher; por esse motivo, diante dela caiam de joelho jovens e anciios... Os homens são assim, ansiosos de prazer! Vão cegamente atrás do prazer e não apreciam o que devem respeitar. O próprio Talbot não parecia remoçar falando dos encantos de Maria?
      LEICESTER — Perdoai-lhe. Ele teve como missão guardá-la e essa mulher ladina deve tê-lo empolgado com as suas lisonjas.
      ISABEL — E é verdadeiramente tão bela? Já ouvi tantas vezes exaltar as suas feições que desejaria saber que juízo devo fazer dela... Os retratos são favoráveis, as descrições mentirosas. Só me fiaria nos meus próprios olhos. Porque me olha com tanta estranheza?
      LEICESTER — Coloco-vos na minha mente ao lado de Maria. Não o nego — quisera ter a alegria de ver-vos, se fosse possível fazer-se isso secretamente, em frente da Stuart. Só então gozaríeis, pela primeira vez, de um absoluto triunfo. Desejaria ver a sua confusão quando ela, com os seus próprios olhos, — porque a inveja tem olhar perspicaz — ficasse convencida de que a venceis pela nobreza do vosso semblante e por essa majestade que vos emprestam as virtudes que vos adornam.
      ISABEL — É mais moça do que eu.
      LEICESTER — Mais moça! Ninguém o dirá. O sofrimento envelheceu-a antes do tempo. O que tornaria mais penoso o seu sofrimento seria saber-vos casada. As gratas esperanças da vida a abandonam. Que ela vos veja ir firme pelo caminho da felicidade! Ver-vos esposa prometida de um filho real de França, ela que em outros tempos tão orgulhosa se mostrava da aliança francesa e a quem esse governo ainda apoia!
      ISABEL (fingindo fadiga) — Insistem tanto que eu a veja.
      LEICESTER (com ligeiresa) — Ela vos pede como mercê. Pois concedei-lho como um castigo! Muito menos lhe custará ser levada ao cadafalso do que se ver vencida pelos vossos encantos. Assim, vós mata-la-eis, quando ela pensa matar-vos... Quando contemplar a vossa beleza, beleza preservada pela virtude, radiante de imaculada glória, realçada pelos raios que a coroa irradia e adornada pela inocência da noiva, então estará bem perto a hora da sua derrota. Sim, quando os seus olhos vos contemplarem, a vossa beleza mais do que nunca superará e sairá vitoriosa. Eu mesmo, há pouco, quando entrasteis, senti-me fascinado. Agora, já tal como estais, apresentai-vos em sua frente. Não tereis ocasião mais oportuna.
      ISABEL — Agora, não, Leicester. Preciso refletir primeiro, falar com Burleigh...
      LEICESTER — Burleigh!... Ele só pensa no interesse de vossos estados. O vosso sexo tem também os seus direitos. E esse delicado ponto é da vossa inteira competência, não da de um homem de Estado. Além do mais, a política também o exige. Exige que a vejais, que ganheis a opinião pública com tal ato de magnanimidade. Depois, podereis ficar livre dessa execrável inimiga.
      ISABEL — Não me é conveniente ver a minha parente na necessidade e na humilhação... Dizem que ela nada tem de real. Poderiam me atirar no rosto as suas faltas.
      LEICESTER — Não precisareis vê-la nos seus aposentos. Segui o meu conselho. A casualidade nos ajuda maravilhosamente. Haverá hoje uma grande caçada que pode levar-vos a Fotheringhay. Talvez que ela esteja no parque. Ireis ali como que por acaso. Necessário é que nada pareça ter sido preparado e, se vos repugna falar ela, não lhe faleis.
      ISABEL — Se praticar essa loucura, a culpa é toda sua, Leicester, e não minha. Não quero hoje deixar de satisfazer qualquer desejo seu, porque de todos os meus súditos é o mais sensível. (Olhando-o ternamente.) E embora que isso não constituiria mais que um capricho seu, seria uma prova de deferência da minha parte conceder o que não aprovo. (Leicester tomba de joelhos. O pano cai.)



Ato Terceiro

Entrada de um parque. Ao fundo, árvores. Mais ao fundo, uma paisagem longínqua.

Cena I

(Maria, entrando precipitadamente por entre as árvores. Ana Kennedy vem seguindo-a.)

      ANA — Correis como se tivésseis asas, não posso vos seguir. Esperai...
      MARIA — Deixa-me gozar esta liberdade, deixa-me ser criança; sê criança também. Deixa-me pisar a verde relva com o meu passo ágil e ligeiro. Escapei da minha sombria prisão? Já não me sepulta esse frio cárcere? Deixa-me aspirar inebriada este ar puro, este ar livre!
      ANA — Minha querida lady! A vossa prisão alargou um pouco, mas se não vêdes os seus muros é porque a densa folhagem das árvores os esconde.
      MARIA — Oh, abençoado esse arvoredo amigo que me veda os muros da prisão! Quero pensar que estou livre e que sou feliz. Para que me arrancar essa doce ilusão? Não vejo sobre a minha cabeça a abóboda celeste? O olhar, liberto, atravessa o espaço infinito. Lá longe, onde se erguem aquelas montanhas sombrias e coroadas de nuvens, começam as fronteiras do meu reino. Essas nuvens que o vento leva para o sul vão pairar sobre o mar distante e sobre a terra de França... Nuvens ligeiras, auras velozes... ai! se pudesse voar, navegar convosco! Saudai em meu nome a terra da minha infância! Estou presa, condenada! Ai de mim, não tenho outros mensageiros. É livre o vosso caminho através do espaço e não estão sujeitos a essa rainha!
      ANA — Ah, querida lady, tornai-vos louca com esta liberdade que por tanto tempo vos foi negada!
      MARIA — Lá ao longe, um pescador conduz seu barquinho... Esse ínfimo instrumento poderia me levar rapidamente a países estrangeiros! Bem miserável é o que ganha o pescador, todavia eu enche-lo-ia de tesouros, cairia a fortuna nas suas redes se me levasse na sua canoa salvadora!
      ANA — Sonho vão! Não vêdes que cem espiões vos seguem? Uma ordem cruel afasta de vós todo o coração que bata com piedade.
      MARIA — Não, minha boa Ana. Não se abriram inutilmente as portas do meu cárcere, acredita-me. Este pequeno favor prediz-me um grande bem... Eu não me engano... Devo-a ao amor, reconheço nele o poderoso auxílio de Leicester. Pouco a pouco a minha prisão alargar-se-á. A uma pequena liberdade seguirá outra maior, até que chegue o dia em que as minhas algemas serão quebradas.
      ANA — Pobre de mim, que não consigo explicar esta contradição! Ontem anunciavam-vos a morte, hoje concedem-vos a liberdade. Aqueles a quem se vai dar uma liberdade eterna, costuma-se, segundo tenho ouvido falar, tirar as algemas antes de os tirar do cárcere.
      MARIA — Estás ouvindo uma trompa de caça? Estás ouvindo no bosque os latidos das matilhas? Oh! se eu pudesse montar a cavalo e reunir-me a esses felizes caçadores!... Estes rumores que eu tão bem conheço me trazem à memória lembranças tristes e alegres. Noutro tempo meus ouvidos eram feridos alegremente pelo tropel da caçada que soava no fundo dos bosques, além, nas altas montanhas da Escócia.



Cena II

(As mesmas e Paulet.)

      PAULET — Conduzi-me bem, milady, mereço os vossos agradecimentos?
      MARIA — Como! Foi o cavalheiro quem me conseguiu este favor?
      PAULET — Como não? Estive na corte e a vossa carta foi entregue...
      MARIA — Entregou-a deveras? Fez isso? E a liberdade que gozo agora é o resultados da minha carta?
      PAULET — E não é somente esse. Preparai-vos para outro maior.
      MARIA — Que me quer dizer?
      PAULET — Não ouvistes uma trompa de caça?
      MARIA (como que assaltada por um pressentimento trágico) — Assusta-me!
      PAULET — A rainha está caçando neste parque.
      MARIA — Oh, céus!
      PAULET — Em pouco estará aqui.
      ANA (correndo para Maria que parece que vai desmaiar) — Que tendes, querida lady? Empalideceis?
      PAULET — Procedi mal? Não desejáveis isso? A vossa súplica foi atendida mais rapidamente do que esperáveis. É tempo, portanto, de pensar no que haveis de dizer à rainha. É ocasião de lhe falar.
      MARIA — Oh! Porque não me disse antes? estou preparada agora para essa entrevista... O que solicitei como um grande favor parece-me agora extraordinário e terrível. Vem, Ana. Leva-me aos meus aposentos, para ali me concentrar e recuperar o sangue frio.
      PAULET — Não ides. Deveis esperá-la aquí. Creio que estareis muito plácida na presença do vosso juiz.



Cena III

(Os mesmos e o conde Shrewsbury.)

      MARIA — Não é isso, meu Deus, estou pensando noutra coisa. Ah! nobre Shrewsbury, chega como um anjo mandado pelo céu! Não posso vê-la! Livre-me, livre-me da sua presença execrada!
      SHREWSBURY — Acaimai-vos, rainha... Reuni o vosso valor que o momento é decisivo.
      MARIA — Quanto o desejei!... Bastantes anos passei me preparando para ele. Disse e redisse a mim própria todas as palavras que queria empregar para a comover, mas num segundo tudo esqueci. Não há outro sentimento em mim além dos meus pesares. O meu coração pronuncia-se contra ela, com um ódio sanguinário. Foge da minha mente todo o bom pensamento e apossam-se de mim as fúrias do Averno, sacudindo as serpentes dos seus cabelos.
      SHREWSBURY — Contei essa agitação e sufocai o amargor do vosso coração. Quando o ódio se encontra com o ódio, não pode resultar nada de bom. Embora sintais repugnância, obedecei à necessidade do momento. Isabel tem a força... Humilhai-vos, portanto.
      MARIA — Humilhar-me ante ela? Nunca!
      SHREWSBURY — É necessário. Falai com atenção e resignação. Apelai para a sua magnanimidade. Não a provoqueis na menor coisa, não trateis dos vossos direitos, porque isto não é oportuno.
      MARIA — Foi a minha ruína que eu própria implorei e para meu mal fui atendida na minha súplica. Jamais nos devíamos encontrar. Nada de bom poderá vir disto. Nada! Mais fácil seria unirem-se o fogo e a água, mais fácil seria o cordeiro fazer carinhos ao tigre... Fui cruelmente ofendida. Tenho demasiadamente padecido por sua causa. Não há, é impossível haver reconciliação entre nós.
      SHREWSBURY — Não há outro remédio senão vê-la. Constatai que as vossas cartas a comoveram e a fizeram chorar. Não, ela tem sentimento. Tende confiança nela. Adiantei-me para vir vos avisar.
      MARIA (tomando-lhe uma das mãos) — Ah, sempre foi meu amigo, Talbot! Oxalá tivesse me entregue à sua benévola guarda! Tenho sido tratada com muita crueldade, Talbot.
      SHREWSBURY — Olvidai tudo, pensai somente em recebê-la com humildade.
      MARIA — Burleigh acompanha-a?
      SHREWSBURY — Acompanha-a o conde de Leicester.
      MARIA — Leicester?
      SHREWSBURY — Não o temais, pois que não deseja o vosso mal. A entrevista foi obra sua.
      MARIA — Ah! Já o sabia...
      SHREWSBURY — Que dizeis?
      PAULET — Aí vem a rainha. (Afastam-se todos, ficando Maria amparada no braço de Ana Kennedy.)



Cena IV

(Os mesmos, Isabel e o conde de Leicester.)

      ISABEL (a Leicester) — Como é o nome deste castelo?
      LEICESTER — Fotheringhay.
      ISABEL (a Talbot) — Mande a minha escolta para Londres. O povo está aglomerando-se tumultuosamente no meu caminho. Vimos buscar um pouco de descanso neste tranqüilo parque. (Talbot despede a escolta. Isabel põe os olhos em Maria e continua, dirigindo-se a Paulet): Muito me ama o meu bom povo. As provas que me tem dado não têm fim. Só se adora assim os deuses, não os humanos.
      MARIA (que continua sem forças, amparada no braço de Ana, levanta a cabeça e os seus olhos encontram os de Isabel. Treme de terror e atira-se nos braços de Ana) — Meu Deus! As suas feições me dizem que não tem coração!
      ISABEL — Quem é esta mulher? (Silêncio geral).
      LEICESTER — Rainha, estais em Fotheringhay.
      ISABEL (fingindo-se surpreendida e pondo em Leicester um olhar sinistro) — Quem foi que me fez isto? Lorde Leicester!
      LEICESTER — O que está feito, está feito, rainha, e já que o céu guiou até aqui os vossos passos, deixai que triunfe a magnanimidade e a clemência.
      SHREWSBURY — Cedei às súplicas, nobre lady, lançai o olhar para essa infeliz que cai de joelhos na vossa presença. (Maria tenta se aproximar de Isabel, mas estaca a meio do caminho. As suas feições revelam a viva luta travada no seu coração.)
      ISABEL — Como, milordes?! Quem foi que me falou numa mulher submissa? Venho encontrar uma orgulhosa, a quem nem o infortúnio conseguiu domar.
      MARIA — Seja! Quero sofrer tudo... Para longe a altivez imoderada das almas nobres! Quero esquecer o que sou e o que tenho padecido, quero estender-me aos pés daquela que me atirou nesta ignomínia. (Virando-se para a rainha.) O céu decidiu a vosso favor, irmã. A vossa fronte está ornada pela vitória. Idolatro a divindade que tanto vos elevou! (Cai de joelhos aos pés de Isabel). Sêde, porém, magnânima! Não me deixeis carregada de opróbio, estendei-me a vossa régia mão para me tirar do profundo abismo em que tombei.
      ISABEL (recuando) — Encontrai-vos no vosso lugar, lady Maria. Grata estou à bondade de Deus por não estar eu a vossos pés como vós aos meus.
      MARIA — Pensai na mutabilidade das coisas humanas. Há deuses que castigam a arrogância. Respeitai, temei, esses deuses tremendos que me prostram a vossos pés. Em nome desses estranhos testemunhos, respeitai-vos a vós própria em mim. Não insulteis o sangue dos Tudor, que corre nas minhas veias e nas vossas. Por Deus!... Não sejais insensível, não sejais inabordável como esses escolhos do mar aos quais o náufrago procura se acolher. Todo o meu ser, a minha vida, o meu destino, dependem das minhas palavras e do poder das minhas lágrimas... Dilate-se o meu coração para eu comover o vosso... Se para mim olhais com esse olhar de gelo, o meu coração trêmulo se confrange, estaca a torrente das minhas lágrimas, e um frio de terror encadeia todas as minhas súplicas.
      ISABEL (i>fria e severa) — Que tem a me dizer, lady Stuart? Desejou me falar... Esqueci-me de que sou uma rainha seriamente ofendida, para cumprir um dever fraterno e vos trazer a consolação de minha presença. Não pude resistir a esse impulso de magnanimidade e exponho-me a uma justa censura por me haver rebaixado a tanto... Porque sabeis perfeitamente que quisestes a minha morte.
      MARIA — Por onde começarei e como porei a prudência nas minhas palavras para abrandar o vosso coração sem vos ofender? Dá força, meu Deus, às minhas palavras e tira-lhes tudo o que possa ferir. Não posso falar de mim sem vos acusar e isso é o que não desejo. Haveis procedido, com respeito a mim, de uma maneira que não é justa, porque sou rainha como vós e tendes-me mantido prisioneira. Cheguei-me a vós suplicando e, desprezando as santas leis da hospitalidade e do direito das gentes, metestes-me numa masmorra. Os meus amigos, aqueles que me cercavam na infância, foram-me tirados cruelmente e eu fui posta num incompreensível isolamento. Obrigaram-me a comparecer diante de um tribunal ofensivo. Basta, porém. Que um esquecimento eterno caia sobre o que de cruel tenho sofrido! Atentai! A tudo isso eu quero chamar fatalidade. Não sois culpada disso, nem eu também o sou! O espírito do mal saiu do fundo do abismo para atear nos nossos corações o ódio que nos separou desde a nossa infância... Esse ódio cresceu em nós, homens malvados atiçaram o fogo fatal. Outros que mostravam o seu zelo no caminho da insensatez e do extravio puseram o punhal e a espada na mão cujo auxílio não se pedia. Tal é o destino maldito dos reis! Os seus ódios enlouquecem o mundo e as suas questões desencadeiam as fúrias. Agora não há ninguém entre nós. (Aproxima-se dela com confiança, falando afetuosamente). Aqui estamos frente a frente... Agora, falai, irmã. Apontai as minhas culpas, quero vos dar inteira satisfação. Ah! porque não me recebestes quando eu tão ardentemente instava por vos ver? Não se teria chegado a tal ponto e não teria havido este encontro tão triste, num local tão sombrio.
      ISABEL — A minha boa estrela preservou-me de reanimar a víbora no meu seio. Não acuseis a fatalidade, mas sim o vosso coração mentiroso e a ambição ilimitada da vossa raça. Não havia nada entre nós quando vosso tio, frade orgulhoso e presunçoso, que estende a mão para todas as coroas, vos incutiu o espírito da contenda e de uma hostilidade contínua, vos induziu a levantar-se em armas e apropriar-vos do meu título real e a resolver no campo de batalha a morte ou a vida. O que ele não tramou contra mim? A língua dos sacerdotes, a espada dos povos, as terríveis armas do fanatismo religioso, aqui, aqui mesmo, dentro do meu tranqüilo reino, soprou até despertar nele a chama da discórdia. Mas Deus está do meu lado e esse orgulhoso não conseguiu vencer... O golpe ameaçou a minha cabeça, mas é a vossa que cai!
      MARIA — Entrego-me nas mãos de Deus. Não abuseis sangrentamente do vosso poder.
      ISABEL — Quem me impedirá? Vosso augusto tio deu um belo exemplo a todos os reis da terra de como se fazem as pazes com os inimigos. Que a noite de São Bartolomeu sirva-me de lição. O que é que representa essa coisa de laços de sangue e de direito das gentes? A Igreja rompe todos os laços do dever e santifica a infâmia do regicídio... Eu não faço mais do que o que os vosso sacerdotes ensinam. Dizei-me: quem responderia por vós se eu, agindo com magnanimidade, quebrasse as vossas algemas para guardar a vossa lealdade? Qual o castelo, qual a fortaleza que as chaves de São Pedro não abram? Não quero me aliar com a raça das víboras!
      MARIA — Oh, é uma suspeita terrível! Sempre me haveis considerado como inimiga e como estranha. Se me tivésseis declarado vossa herdeira, como é de direito, a gratidão e o amor ter-vos-iam garantido em mim uma amiga e parente fiel.
      ISABEL — A vossa amizade está provada demais, lady Stuart. A vossa casa é o papado e os frades são vossos irmãos. Déclarar-vos minha herdeira! Traiçoeiras redes!... Continuando a viver, podíeis desencaminhar o meu povo, sendo como sois uma ardilosa Armida, pois fazeis prender em vossos laços impuros a mocidade dos meus reinos. Todos os olhos teriam se voltado para o sol nascente e eu...
      MARIA — Reinai em paz! Renuncio a todas as pretensões a este reino. Ai de mim! As asas do meu espírito paralizaram, nada de elevado me atrai. Haveis conseguido tudo, não sou mais que a sombra de Maria. A miséria da prisão dobrou a ousadia do meu gênio. Haveis me feito murchar na força da minha florescência. Terminai, irmã. Enunciai essa palavra pela qual reinastes aqui... para insultar impiedosamente a vossa vítima. Enunciai essa palavra. Dizei-me: “Estais livre, Maria! Provastes já todo o peso do meu poder, aprendei agora a respeitar a minha magnanimidade!” Dizei-o e receberei a vida e a liberdade como um presente da vossa mão. Uma palavra apenas e viveremos como se nada houvesse acontecido. Espero essa palavra... Ah! não me façais esperar muito tempo! Pobre de vós se com ela não pondes fim a tudo! Porque se vos não separais de mim como uma deusa gloriosa e benernerente, não só por toda esta ilha, irmã, mas por todas as terras que o mundo abrange, não desejara eu aparecer a vossos olhos tal como vós aparecereis aos meus.
      ISABEL — Finalmente, confessais-vos vencida? Renunciais aos vossos planos? Já não há nenhum assassino em campo? Já não há nenhum aventureiro que queira arcar pela vossa desditosa causa qualquer cavalheiresca proeza? Tudo já acabou, lady Maria... Já não seduzis ninguém. Não há quem se sinta vaidoso em ser o vosso quarto marido, porque fazeis matar os vossos amantes, como fazeis matar os vossos esposos!
      MARIA (sem poder se conter) — Irmã! Deus meu, dai-me moderação!
      ISABEL (olhando-a por alguns instantes com orgulhoso desprezo) — São estes os encantos, lorde Leicester, que nenhum homem impunemente contempla e com os quais nenhuma outra mulher se atreve a comparar os seus? Francamente! Essa glória conseguiu-se com facilidade. Para que tal beleza seja igual para todos, preciso é que a todos tenha pertencido!
      MARIA — É demais!
      ISABEL (com um sorriso sarcástico) — Mostrai o vosso verdadeiro rosto, porque até agora só vimos a máscara.
      MARIA (em cólera, mas com nobre dignidade) — Fui culpada como mulher, como jovem. O poder perdeu-me. Mas não me escondi, porque na minha real franqueza repeli as falsas aparências. O que fiz de pior, o mundo sabe-o perfeitamente, e eu posso garantir que sou melhor do que a opinião que de mim tenham podido formular. Pobre de vós se alguma mão vos descobrisse, arrancando essa capa de virtude com que a vossa hipocrisia esconde a desenfreada lascívia dos vossos prazeres secretos! A virtude! Não a herdastes de vossa mãe, porque todo mundo sabe que espécie de virtude foi a qne fez Ana Bolena subir ao cadafalso.
      SHREWSBURY (interponda-se entre as duas rainhas) — Deus do céu! A quanto chegamos? É isso por acaso moderação e submissão, lady Maria?
      MARIA — Moderação! Tudo suportei quanto se podia suportar. Fora a resignação de cordeiro! Sobe para o céu, paciência ferida. Rompe os laços que te prendem e sai do teu ninho, furor tão duramente contido, e tu, que dás à serpente raivosa o olhar que mata, põe na minha língua a seta envenenada!
      SHREWSBURY — Oh! Está alucinada. Perdoai essa louca cujo coração está tomado pela cólera. (Isabel, muda de ira, lança a Maria olhares furiosos.)
      LEICESTER (tentando arrastar Isabel) — Não escuteis essa louca! Saiamos deste desgraçado lugar!
      MARIA — O trono da Inglaterra está profanado por uma bastarda e o nobre povo da Grã-Bretanha enganado por uma reles comediante. Se imperasse a justiça, rojar-vos-ieis no pó na minha presença, porque sou eu a vossa rainha! (Isabel afasta-se depressa, seguida pelos lordes, muito agitados).



Cena V

(Maria e Ana Kennedy.)

      ANA — Oh, que fizestes? Vai desesperada.Tudo está acabado. Desvaneceram-se as últimas esperanças!
      MARIA (ainda alucinada) — Vai desesperada... Leva a morte no coração!... (atira-se nos braços de Ana Kennedy). Como me sinto bem, Ana! Depois de tantos anos de abatimento e de sofrimento, um minuto de vingança e de vitória! Tirou-me do coração um peso imenso. Cravei o punhal no peito da minha inimiga.
      ANA — Desventurada, que alucinação vos arrasta! Feristes essa mulher sem piedade... Tem o raio na mão — é rainha. Ofendeste-la na presença do seu favorito!
      MARIA — Derrubei-a na presença de Leicester... Ele viu-o, foi testemunha do meu triunfo. Ele estava aqui quando eu a arrojei da altura em que se acreditava colocada. A sua presença dava-me ânimo.



Cena VI

(As mesmas e Mortimer.)

      ANA — Ah, cavalheiro! que resultado...
      MORTIMER — Ouvi tudo. (Aproxima-se de Maria, demonstrando agitação e amor simultaneamente) — Triunfastes! Fizeste-la morder o pó! Ereis vós a rainha e ela a criminosa... O vosso valor me entusiamou — adoro-vos. Nesse momento surgistes a meus olhos como uma majestosa divindade.
      MARIA — Falou com Leicester, entregou-lhe a minha carta e o meu retrato? Oh, responda-me, cavalheiro!
      MORTIMER (contemplando-a com olhar ardente) — Oh, como irradiava de vós a régia cólera! Os vossos encantos arrebatam-me. Sois a mais formosa das mulheres da terra!
      MARIA — Apazigue a minha impaciência, imploro-lhe. Que foi que ele disse? Oh, diga-me, que devo esperar?
      MORTIMER — De quem? Dele? É um covarde, um desgraçado! Não conteis com ele. Desprezai-o, esquecei-o!
      MARIA — Que está dizendo?
      MORTIMER — Ele, libertar-vos e possuir-vos? Ele aventurar-se a tal? Para tanto seria preciso que se batesse comigo!
      MARIA — Não lhe entregou a minha catta? Oh, então está tudo acabado!
      MORTIMER — O pusilânime presa a vida. Quem quiser vos salvar e chamar-vos sua tem de enfrentar a morte com decisão.
      MARIA — Não fará nada por mim?
      MORTIMER — Não falemos mais nele. Que é que ele pode fazer? Para que precisamos dele? Eu vos salvarei, eu, sózinho!
      MARIA — Meu Deus! que pode fazer?
      MORTIMER — Não acalenteis ilusões. É como se vos encontrásseis na situação de ontem. Da maneira como a rainha se separou de vós, da forma como terminou a entrevista, tudo está perdido, tendes de renunciar a conseguir o que quer que seja de clemente. Tem de se agir, a ousadia é que resolverá tudo. Para tudo alcançar é preciso arriscar tudo; tendes de estar livre antes de amanhecer um novo dia.
      MARIA — Que me diz? Ainda esta noite? Como será possível?
      MORTIMER — Ouvi. Reuni os meus companheiros numa capela secreta. Um sacerdote nos ouviu em confissão e nos absolveu de todos os pecados cometidos. Recebemos os últimos sacramentos e estamos prontos para a última viagem.
      MARIA — Que preparativos!...
      MORTIMER — Esta noite subiremos ao castelo. É preciso que todos morram, para que ninguém possa denunciar o rapto.
      MARIA — E Drury e Paulet, os principais calcereiros? Resistirão até a última gota do seu sangue...
      MORTIMER — Eles serão os primeiros que tombarão sob meu punhal!
      MARIA — Que diz?! Seu tio, seu segundo pai?
      MORTIMER — Morrerá nas minhas mãos.
      MARIA — Crime execrável!
      MORTIMER — Absolveram-me antecipadamente de todos os crimes... Posso fazer tudo e tudo eu quero fazer.
      MARIA — Oh, é monstruoso!
      MORTIMER — E, se preciso fosse, morreria até mesmo a própria rainha. Assim eu o jurei.
      MARIA — Não, Mortimer. Antes de ser vertido tanto sangue por minha causa...
      MORTIMER — E o que é a vida de todos comparada convosco e com o meu amor? Rompam-se os laços do mundo! Que venha um outro dilúvio cujas águas aniquilem tudo quanto respira! Não respeitarei nada! Antes se acabe o mundo do que eu ter que renunciar a vós!
      MARIA (recuando) — Meus Deus!... Que palavras, Martimer!... E que olhares!... Amedronta-me, aterroriza-me!
      MORTIMER (com o olhar de um louco e manifestando um secreto delírio) — A vida não é mais que um sopro, a morte outro sopro! Que me arrastem para a praça das execuções! Que me arranquem os membros um atrás do outro com as tenazes em brasa! (Aproxima-se dela impetuosamente) Se te aperto nos meus braços, a ti, a amada com tanta paixão!
      MARIA (continuando a recuar) — Afaste-se, insensato...
      MORTIMER — Sobre o seu peito, sobre essa boca que respira amor...
      MARIA — Por Deus, Mortimer, deixe-me sair!
      MORTIMER — É um doido, um insensato aquele que não mantém fortemente, num abraço eterno, a ventura que Deus lhe pôs nas mãos. Quero te salvar mesmo que me custasse mil vidas, salvar-te-ei. Quero-o, mas quero também que sejas minha...
      MARIA — Não existe Deus, não há um anjo queme defenda? Tremenda fatalidade! Arrancas-me de um terror, para me lançar em outro!... Por acaso só nasci para despertar o furor?! O ódio e o amor conjuram-se para me atemorizar.
      MORTIMER — Sim, com a mesma força com que te odeiam, eu te amo! Eles querem decapitar-te, separar do tronco esse colo de maravilhosa brancura. Oh! dedica ao deus vivo do prazer o que devias sacrificar ao ódio sangrento. Com tais encantos, que já são teus, feliz o teu venturoso amante!... Que esses formosos cachos, esses cabelos de seda que já estão em poder de sinistras forças da morte, prendam para sempre o teu escravo!
      MARIA — Que palavras! Mortimer, a minha desgraça, os meus sofrimentos deviam me tornar sagrada, já que não o é a minha cabeça coroada.
      MORTIMER — A tua coroa caiu. Não te ficou nada da tua majestade terrestre. Tenta dar uma ordem, para ver se algum amigo obedece à tua voz. Resta-te somente a tua beleza tentadora, o divino poder da tua formosura. É isso o que me dá forças, o que me encoraja a tudo...
      MARIA — Oh! quem me libertará do seu furor?
      MORTIMER — Um favor ousado deve ser pensado bem ousadamente! Porque o bravo derrama o seu sangue se a vida é o bem supremo?! Louco é o que a prodigaliza em vão! Quero descansar a cabeça no teu colo ardente... (Abraça-a).
      MARIA — Preciso pedir auxílio contra o homem que quer me salvar!
      MORTIMER — Não és insensível... O mundo não te acusa de frieza... A apaixonada súplica do amor pode te comover. Fizeste venturoso o cantor Rizzio e Bothwell poude te arrastar...
      MARIA — Insolente!
      MORTIMER — Ele não foi mais que teu tirano. Tremias na sua presença. Tu o amavas... Se somente pavor pode te conquistar... Deus dos infernos!
      MARIA — Deixe-me! Está louco!
      MORTIMER — Também tremerias na minha presença.
      ANA (entrando precipitadamente) — Eles vêem aí! Eles vêem aí! Homens armados invadem o parque!
      MORTIMER (desembainhando a espada e preparando-se) — Defendo-te eu.
      MARIA — Ana, Ana, livra-me das suas mãos! Infeliz de mim, onde encontrarei abrigo?... A que santo me apegar? Aqui está a força, além está a morte!... (Retira-se precipitadamente para o castelo).



Cena VII

(Mortimer, Paulet e Drury chegam apressados, acompanhados de grande escolta).

      PAULET — Fechem as portas, levantem as pontes!
      MORTIMER — Que foi que aconteceu?
      PAULET — A rainha! Oh! ousadia infernal!...
      MORTIMER — A rainha? Que rainha?
      PAULET — A rainha da Inglaterra! Foi assassinada nas ruas de Londres! (Encaminha-se apressado para o castelo).



Cena VIII

(Mortinzer, depois Okelly.)

      MORTIMER — Estarei sonhando? Assassinada a rainha? Não, é apenas um sonho. O febril ardor que me empolga faz se apresentar aos meus sentidos como uma realidade aquilo que me enche o pensamento... Quem é que vem ali? É Okelly!
      OKELLY (entrando precipitadamente) — Fuja, Mortimer, fuja! Tudo está perdido!
      MORTIMER — Mas o que é que está perdido?
      OKELLY — Não me faça mais perguntas. Fuja!
      MORTIMER — O que é que aconteceu?
      OKELLY — O louco vibrou o golpe.
      MORTIMER — Verdade?
      OKELLY — Sim, verdade. Fuja.
      MORTIMER — A rainha foi mesmo assassinada e Maria sobe ao trono da Inglaterra?
      OKELLY — Assassinada! Quem é que diz tamanho disparate?
      MORTIMER — Tu mesmo.
      OKELLY — Ela está viva. Nós é que nos devemos considerar mortos.
      MORTIMER — Está viva?
      OKELLY — O golpe fracassou. Rasgou apenas o manto e Shrewsbury desarmou o assassino.
      MORTIMER — Está viva!
      OKELLY —~ Está viva, para ser a nossa desgraça.
      MORTIMER — Quem foi que praticou semelhante loucura?
      OKELLY — O fanático Tolon, aquele que viu sentado pensativamente na capela, quando o capelão proferia o anatema com que o papa amaldiçoou a rainha. Tentou aproveitar a primeira ocasião que lhe apareceu para libertar a igreja de Deus e alcançar dessa forma a coroa do martírio. Somente ao capelão confiou ele os desígnios que pôs em prática nas ruas de Londres.
      MORTIMER (depois de um momento de silêncio) — Um destino terrível te persegue, infeliz! Tens de morrer! O teu anjo preparou a tua queda!
      OKELLY — Para onde vais fugir? Eu vou me esconder nos bosques do norte.
      MORTIMER — Que Deus te proteja! Eu ficarei aqui. Ainda tentarei libertá-la. Se não conseguir morrerei sobre o seu túmulo.



Ato Quarto

Uma Ante-Sala

Cena I

(O conde de Aubespine, Kent e Leicester.)

      AUBESPINE — Como esta passando sua majestade? Sinto-se tomado pelo terror, milordes. Como foi que se deu o atentado, no meio de um povo tão leal?
      LEICESTER — O autor do atentado não é deste país. É um súdito do seu rei — um francês.
      AUBESPINE — Um louco!
      KENT — Um papista, conde de Aubespine.



Cena II

(Os mesmos e Burleigh, que vem conversar com Davidson.)

      BURLEIGH — Faça-se incontimente ordem de execução e ponham-lhe o selo. Logo que esteja pronta será apresentada à rainha para que a assine. Vá e não perca um instante.
      DAVIDSON — Assim será feito. (Sai).
      AUBESPINE (encaminhando-se ao encontro de Burleigh) — Milorde, meu coração participa do contentamento que nesta hora se sente em toda a ilha. Graças sejam dadas ao céu que preservou a real cabeça do punhal assassino.
      BURLEIGH — Graças sejam dadas a ele também por haver provado publicamente a maldade dos nossos inimigos.
      AUBESPINE — Deus amaldiçoe o autor de tão odioso crime.
      BURLEIGH — O autor e o seu vil instigador.
      AUBESPINE (dirigindo-se a Kent) — Dignar-se-á sua excelência o lorde marechal introduzir-me junto de sua majestade, afim de poder lhe apresentar as felicitações do meu rei e senhor?
      BURLEIGH — Não se dê ao trabalho, conde de Aubespine.
      AUBESPINE (formalizando-se) — Sei perfeitamente qual é minha obrigação, lorde Burleigh.
      BURLEIGH — O que deve fazer é deixar, o mais depressa possível esta ilha.
      AUBESPINE — Como? Que é que me diz?!
      BURLEIGH — A sua sagrada condição protege- lo-á hoje, mas não amanhã.
      AUBESPINE — Que crime pratiquei eu?
      BURLEIGH — Se o disser não poderá ser perdoado.
      AUBESPINE — Espero, milorde, que o direito dos embaixadores...
      BURLEIGH — Protege, menos quando se praticam crimes de alta traição.
      AUBESPINE — O que está me dizendo?
      LEICESTER e KENT — O que é isso?
      AUBESPINE — Milorde, pense com serenidade...
      BURLEIGH — Nos bolsos do assassino foi achado um passaporte assinado pelo seu próprio punho.
      KENT — É possível?
      AUBESPINE — Assino muitos passaportes e não tenho o poder de ler no coração dos homens.
      BURLEIGH — O assassino confessou-se em sua casa.
      AUBESPINE — A minha casa está sempre aberta...
      BURLEIGH — A todos os inimigos da Inglaterra.
      AUBESPINE — Exijo que se proceda as investigações.
      BURLEIGH — Proceda a elas.
      AUBESPINE — O meu monarca foi ofendido na minha pessoa. Romperá a aliança celebrada recentemente.
      BURLEIGH — Já foi rompida pela rainha. A Inglaterra jamais se unirá à França. Lorde Kent, queira se encarregar de levar a são e salvo o conde até ao mar. O povo invadiu a sua casa, onde encontrou um autêntico arsenal, e ameaça reduzi-la a cacos. Esconda-o até que serene esse furor... Responde-me pela sua vida!
      AUBESPINE — Retiro-me, deixo esta terra onde se pisa o direito das gentes, onde não se respeitam os tratados... O meu monarca, porém, exigirá satisfações...
      BURLEIGH — Proceda como bem entender. (Kent e Aubespine saem).



Cena III

(Leicester e Burleigh)

      LEICESTER — E assim quebra-se a aliança que com tanto esforço procurou fazer. Podia ter poupado esse trabalho.
      BURLEIGH — Os meus fins eram bons, Deus, porém, decidiu outra coisa. Feliz aquele que nada pior tenha a censurar-se a si mesmo.
      LEICESTER — Conhecemos perfeitamente os modos misteriosos de Cedil quando está tentando aclarar um crime de estado. Proporciona-se a ele uma esplêndida ocasião. Foi praticado um medonho crime e os que o perpertraram permanecem envoltos em mistério. Vai ser formado um tribunal inquisitorial, onde serão julgadas palavras e olhares. O senhor é o homem eminente, o Atlas do Estado. Toda a Inglaterra repousa sobre os seus ombros.
      BURLEIGH — Em si, milorde, reconheço o meu mestre. Jamais a minha eloqüência conseguiu uma vitória como a que o senhor obteve.
      LEICESTER — O que é que quer dizer com isso?
      BURLEIGH — Não foi o senhor quem, sem meu apoio, levou a rainha ao castelo de Fotheringhay?
      LEICESTER — Sem seu apoio? Quando e em que ocasião receei mostrar-lhe as minhas ações?
      BURLEIGH — Levou a rainha a Fotheringhay... Não foi a rainha porém que, complacentemente, o quis levar ali.
      LEICESTER — O que quer dizer com tais palavras, milorde?
      BURLEIGH — Fez a rainha desempenhar ali um papel muito nobre! O triunfo glorioso que lhe preparou quando ela se lhe entregou plena de confiança! Excelente princesa, quão vilmente zombavam de vós! Sacrificaram-vos sem piedade! É essa a magnanimidade e a cordura que tanto nos tem aconselhado no conselho privado! Essa Stuart era uma inimiga tão fraca e tão pouco merecedora de atenção que não pagava a pena derramar o seu sangue! Um plano bem arquitetado, soberbo! Infelizmente era tão frágil que se quebrou!
      LEICESTER — Imbecil! Acompanhe-me imediatamente, pois vai me dar explicações diante da rainha.
      BURLEIGH — Perfeitamente e tenha cautela, milorde — não lhe falte a eloqüência na ocasião.



Cena IV

(Leicester só, depois Mortimer).

      LEICESTER — Estou descoberto, estão ao par dos meus intentos. Como esse malvado seguiu meus passos! Pobre de mim se ele tem provas. Se a rainha vem a saber que houve entendimentos entre mim e Maria, que criminoso não serei para ela! Que ardil, que traição não verá nos meus conselhos, nos meus infelizes esforços para levá-la a Fotheringhay! Imaginará que zombei dela e que a vendi a uma inimiga que detesta. Oh, jamais, jamais me perdoará! Acreditará que tudo foi calculado e preparado de antemão, até mesmo o próprio tormento que lhe produziu a entrevista e a vitóría da sua inimiga, o seu sarcasmo e a própria mão ensanguentada do assassino, que a terrível fatalidade veiu juntar a tudo isto... Na sua opinião terei sido eu quem arquitetou tudo! Não econtro salvação... Ah! Vem gente...
      MORTIMER (tomado de grande agitação, olha receiosamente para todos os lados) — Conde de Leicester, estamos a sós?
      LEICESTER — Desgraçado! Vá-se embora. Que é que vem fazer aqui?
      MORTIMER — Seguem os seus passos. Aja com cuidado.
      LEICESTER — Vá-se embora! Vá-se embora!
      MORTIMER — Já se sabe que houve uma reunião secreta em casa do conde de Aubespine.
      LEICESTER — Que me importa isso?
      MORTIMER — Encontraram o assassino.
      LEICESTER — Isto é com os senhores. Audacioso! Por que querem me associar aos seus atentados armados? Defendam os senhores as suas ações de impiedade.
      MORTIMER — Queira me ouvir.
      LEICESTER (muito encolerizado) — Vá para o diabo! Por que vem me tentar, como o espírito do mal? Saia daqui! Não o conheço, nada tenho que ver com os assassinos!
      MORTIMER — Não quer me onvir? Vinha avisá-lo de que os seus passos foram descobertos.
      LEICESTER — Ah!
      MORTIMER — O lorde tesoureiro esteve em Fotheringhay imediatamente depois da sinistra tentativa. Os aposentos da rainha foram revistados com o máximo cuidado e encontrou-se..
      LEICESTER — O que?
      MORTIMER — Uma carta inacabada da rainha para si, conde...
      LEICESTER — Infeliz!
      MORTIMER — E na qual lhe exige que cumpra a sua palavra, renovando a promessa de lhe dar a sua mão e lembra-lhe o retrato...
      LEICESTER — Oh!
      MORTIMER — A carta está nas mãos de lorde Burleigh.
      LEICESTER — Estou liquidado!... (Tomado de desespero, anda na sala dum lado para o outro, enquanto Mortimer continua falando).
      MORTIMER — Não perca um segundo! Salve-a e salve-se também! Jure que está inocente, invente desculpas, evite o pior! Eu não posso fazer nada. Meus companheiros fugiram cada um para seu lado. A conjuração não existe mais. Vou para a Escócia em procura de amigos leais. E o senhor trate de fazer o que lhe sugerir o seu espírito e a sua coragem.
      LEICESTER (pára, como que tomado por uma resoluçao súbita) — É o que vou fazer. (Encaminha-se para a porta, abre-a e chama): Soldados da guarda! (Ao oficial que entra, seguido de alguns soldados armados): Prendam esse traidor de Estado e vigiem-no bem! Uma nova conspiração foi descoberta. Vou falar à rainha. (Sai).
      MORTIMER (mudo pelo assombro, contém-se e põe em Leicester um olhar do mais absoluto desprezo) — Ah, miserável! Mas eu mereço-o!... Para que fui me fiar nesse bandido? A minha desgraça serve-lhe de degrau... Salva-te, que a minha boca permanecerá muda. Não quero te arrastar à perdição, nem na morte quero a tua aliança. A vida é o único bem dos perversos. (Ao oficial da guarda, que avança para o prender): O que é que pretendes, covarde escravo da tirania? Rio-me de ti, estou livre. (Saca um punhal).
      OFICIAL — Tirem-lhe essa arma.
      MORTIMER — E o meu coração vibrará livremente no meu último instante, a minha boca abrir-se-á para falar. Amaldiçoados sejais, vós que atraiçoais o vosso Deus e a vossa legítima rainha, que fugís da Maria terrena, assim como da Maria celestial, para vos venderdes a uma rainha bastarda!
      OFICIAL — Ouvem as suas blasfêmias? Prendam- no! Prendam-no!
      MORTIMER — Amada minha, não pude te salvar mas dou-te um exemplo varonil! Maria, reza por mim... e chama-me para teu lado na tua vida celestial! (Enterra o punhal no peito e cai nos braços dos guardas).



APOSENTOS DA RAINHA

Cena V

(Isabel, com uma carta na mão e Burleigh).

      ISABEL — Acontecer o que aconteceu! Zombou de mim? Traidor! Levar-me como um troféu para a sua amante me ver!... Oh, nenhuma mulher, Burleigh, foi de tal forma enganada!
      BURLEIGH — Não consigo atinar de que recursos se valeu para assim surpreender a boa fé da minha rainha.
      ISABEL — Sinto-me morta de vergonha! Como zombou da minha fraqueza! Pensei que seria ela quem se curvaria e fui eu o alvo dos seus sarcasmos!
      BURLEIGH — Agora vêdes como lealmente vos tenho aconselhado.
      ISABEL — Fui tremendamente castigada por não ter seguido seus prudentes conselhos, mas como poderia supor que aconteceria o que aconteceu? Poderia por acaso suspeitar de ciladas armadas no meio das mais afetuosas juras de amor? Em que hei de confiar se ele me traiu, ele a quem tornei grande entre os grandes, ele, o homem que mais perto estava do meu coração, ele a quem outorguei poderes para agir na corte como um senhor, como um rei!
      BURLEIGH — E ao mesmo tempo vendia-vos a falsa rainha da Escócia!
      ISABEL — Oh! Ela há de me pagar com o seu próprio sangue. Diga-me: a sentença já foi proferida?
      BURLEIGH — Deve ser proferida tal como o ordenastes.
      ISABEL — Haverá de morrer! E ele ve-la-á e cairá depois dela. Tirei-o do meu coração. O amor morreu. Sinto somente a sede da vingança! A sua queda há de ser tão grande como alta e grande foi a sua elevação! Será um marco da minha força e do meu poder. Levem-no para a torre! Nomearei os lordes que o irão julgar. Que sobre ele caia todo o peso da lei!
      BURLEIGH — Apresentar-se-á e justificar-se-á.
      ISABEL — Justificar-se-á?! Como é que há de fazê-lo? Não se sente perdido com esta cartada? Oh, mas o seu crime está claro como a luz do dia!
      BURLEIGH — Porém sois bondosa e clemente. Quando na sua presença..
      ISABEL — Não quero vê-lo. Nunca, nunca! Deu ordem para o prenderem, se tentar vir aqui?
      BURLEIGH — Essa ordem foi dada.
      UM PAJEM (entrando) — Milorde de Leicester.
      ISABEL — Miserável! Não quero vê-lo! Dize-lhe que não quero recebê-lo.
      PAJEM — Não me atrevo a fazê-lo. Ele não acreditará em mim.
      ISABEL — De tal sorte o elevei que os meus servos tremem mais na sua presença do que na minha!
      BURLEIGH (ao pajem) — A rainha proibe-lhe que venha aquí. (O pajem sai hesitante).
      ISABEL (depois de uma pausa) — Contudo, se fosse possível... Se pudesse se justificar! Diga-me: não pode ser uma armadilha que Maria me arma, para me separar do meu amigo mais fiel? Ela é uma mulher muito hábil! Se ela tivesse escrito a carta com o fito apenas de lançar no meu coração uma suspeita e precipitar na ruína o homem a quem abomina...
      BURLEIGH — Rainha, lembrai-vos de que...



Cena VI

(Os mesmos e Leicester).

      LEICESTER — (forçando a porta e entrando com maneiras autoritárias) — Quero ver quem é o canalha que me fecha as portas dos aposentos da rainha.
      ISABEL — Ousado!
      LEICESTER — Repeli-me! Quando pode receber Burleigh, também pode me receber, a mim...
      BURLEIGH — É muito atrevido, milorde, vindo à real presença depois de haver proibição expressa de o fazer.
      LEICESTER — É o senhor bastante impertinente, lorde Burleigh, tomando a palavra. Proibição! Que diz? Haverá alguém nesta corte, de cuja boca o conde de Leicester tenha de receber uma proibição ou uma licença? (Enquanto fala, aproxima-se com humildade de Isabel). Da própria boca da minha rainha desejo...
      ISABEL (sem olhá-lo) — Saia da minha presença, infame!
      LEICESTER — Nessas palavras rudes eu reconheço, não a minha bondosa Isabel, mas o meu inimigo, lorde Burleigh... Apelo para a minha Isabel. Se atendestes o que ele vos disse, a mesma coisa exijo eu...
      ISABEL — Fala, miserável! Aumenta o teu crime, negando-o!
      LEICESTER — Ordenai que esse importuno se retire. Retire-se, milorde. O que tenho para contar à rainha não requer testemunhas... Retire-se.
      ISABEL (a Burleigh) — Não, mando eu!
      LEICESTER — Uma outra pessoa entre mim e sua majestade! Reclamo os meus direitos... São direitos sagrados e invoco-os para que lorde Burleigh se retire.
      ISABEL — Não gaste linguagem tão altiva!
      LEICESTER — Gasto-a porque sou o homem ditoso a quem dispensastes o vosso valimento... Por tal razão estou acima desse lorde e de todos os mais. O vosso coração concedeu-me esse alto posto e o que o amor me trouxe, juro-o por Deus, saberei conservá-lo, embora com o preço da minha vida! Que se retire! Basta um minuto para ouvir tudo o que tenho a vos dizer.
      ISABEL — É inútil pensar que vai me enganar com os seus ardis.
      LEICESTER — Esse charlatão poderia vos enganar, eu, porém, quero falar ao vosso coração e o que me aventuro a fazer só diante dele o devo justificar. A vossa tolerância é o único tribunal que eu reconheço...
      ISABEL — Vil! Isso condena-o radicalmente. Mostre-lhe a carta, Burleigh.
      BURLEIGH — Aqui está.
      LEICESTER (olhando para a carta, sem a menor perturbação) — Essa letra é da Stuart.
      ISABEL — Leia e ficará confundido.
      LEICESTER (depois de lê-la) — Contra mim são as aparências, todavia tenho fé em que não me julgarão por elas.
      ISABEL — Pode me negar que teve combinações secretas com a Stuart, que dela recebeu o retrato e que lhe fez conceber esperanças de conseguir a sua liberdade?
      LEICESTER — Ser-me-ia bem fácil, se me sentisse culpado, dispensar o testemunho de uma inimiga. A minha consciência, porém, nada tem de que me acuse e confesso que ela escreve a verdade.
      ISABEL — Então... desgraçado!
      BURLEIGH — Ele mesmo se condena.
      ISABEL — Saia da minha presença! Para a torre, traidor!
      LEICESTER — Não sou traidor. Errei, agindo secretamente, mas os meus propósitos eram os melhores. Assim procedi para conhecer a vossa inimiga e perdê-la!
      ISABEL — Vil subterfúgio!
      BURLEIGH — Como, milorde? Acredita que...
      LEICESTER — Desempenhei um papel bastante perigoso, sei-o perfeitamente e nesta corte só o conde de Leicester se atreveria a um tal procedimento... O mundo sabe como odeio essa Stuart. O meu posto, a confiança com que me honra a minha rainha, não poderão dar margem a dúvidas quanto à lealdade dos meus propósitos. O homem, a quem o vosso favor distinguiu entre todos, podia perfeitamente escolher um caminho perigoso para cuniprir o seu dever.
      BURLEIGH — Se os seus propósitos eram bons, porque razão se calou?
      LEICESTER — Milorde fala antes de agir, é o pregão do que faz. Eu ajo primeiro, depois então é que falo.
      BURLEIGH — Diz isso porque está comprometido.
      LEICESTER (olhando-o de alto a baixo e com uma expressão de orgulho e desdém) — E vangloria-se de ter praticado uma ação maravilhosa, de ter salvo a sua rainha, de ter desmascarado os traidores? Tudo sabe, assim o crê. Mísero charlatão! Apesar da sua esperteza, Maria Stuart estaria livre hoje se eu não o tivesse impedido.
      BURLEIGH — Se não tivesse impedido...
      LEICESTER (interrompendo-o) — Sim, milorde. A rainha confiou em Mortimer, abriu-lhe o coração e foi tão longe que até o encarregou duma missão sinistra contra Maria, depois que o tio de Mortimer recusou com horror uma tal missão. Dizei: não é verdade? (A rainha e Burleigh olham-se assombrados).
      BURLEIGH — Como foi que soube?
      LEICESTER — Não é verdade, milorde? Apesar da sua perspicácia, não viu que Mortimer o traia, que era um fanático papista, um instrumento dos Guise e da Stuart, um homem decidido a libertar essa Maria e assassinar a rainha?
      ISABEL (com verdadeiro espanto) — Quer me dizer que esse Mortimer...
      LEICESTER — Por seu intermédio Maria se comunicava comigo e, por tal meio, pude conhecê-la, Hoje era o dia marcado para tirá-la da prisão. O próprio Mortimer confessou-me. Mandei prendê-lo. Desesperado ao ver que ruíam os seus intentos e temendo ser desmascarado, suicidou-se...
      ISABEL — Oh! Fui enganada de maneira incrível por esse Mortimer!
      BURLEIGH — E isso aconteceu agora, depois de nos separarmos?
      LEICESTER — Lamento que ele tenha tido tal fim. O seu testemunho, se fosse vivo, justificar-me-ia inteiramente, de toda e qualquer culpa. Por esse motivo queria entregá-lo à justiça, porquanto uma devassa rigorosa teria feito triunfar a minha inocência perante o mundo.
      BURLEIGH — Diga: ele suicidou-se, ou foi o senhor que mandou matá-lo?
      LEICESTER — Infame suspeita! Interrogue-se os guardas a quem o entreguei. (Caminha para a porta e chama. Entra o oficial da guarda.) Conte a sua majestade o que se passou com Mortimer.
      OFICIAL — Estava de guarda na ante-sala quando milorde abriu repentinamente a porta e me deu ordem que prendesse esse homem como traidor do Estado. Ele se enfureceu, sacou de um punhal, rugiu maldições contra a rainha e perpassou o coração com a arma que empunhava.
      LEICESTER — Está bem, pode se retirar. A rainha está plenamente informada.
      ISABEL — Que sucessão de horrores!
      LEICESTER — E, então, quem foi que vos salvou? Foi milorde de Burleigh, por acaso? Que sabia ele dos perigos que vos cercavam? Livrou-vos deles? O vosso fiel Leicester foi o vosso anjo da guarda.
      BURLEIGH — Conde, a morte de Mortimer foi para vós uma verdadeira providência.
      ISABEL — Estou no ar. Acredito-o e duvido ao mesmo tempo. Penso que é culpado e que não é. Oh, mulher execrada! Foi ela quem arrumou estas cmplicações todas.
      LEICESTER — Deve morrer. Agora sou eu que exijo a sua morte. Tinha-vos aconselhado a que não désseis a ordem para a execução da sentença, enquanto aigum outro braço armado não se levantasse em sua defesa. Isso já aconteceu e tenho minhas razões para exigir que a sentença se execute.
      BURLEIGH — Aconselha-me isso, o senhor?
      LEICESTER — Muito embora pese tomar uma tão formal resolução, acredito que a segurança da rainha impõe essa vítima. Portanto, sou de opinião que a ordem de execução deva ser dada imediatamente.
      BURLEIGH (à rainha) — Já que milorde tem opinião tão firme e leal, proponho que a execução seja confiada a ele.
      LEICESTER — A mim?!
      BURLEIGH — Exatamente. Não haverá melhor meio de afastar todas as suspeitas que caem sobre o conde, do que mandá-lo decapitar aquela a quem o acusam de ter amado.
      ISABEL (pondo os olhos nos de Leicester) — Milorde deu-me um bom conselho — estou de acordo com o que disse.
      LEICESTER — O meu alto posto devia impedir de uma comissão positivamente desagradável e que melhor quadraria a um Burleigh. Quem está tão perto da rainha não devia desempenhar comissões de tal espécie. Contudo, para demonstrar meu zelo e çumprir as deliberações da minha rainha, renuncio aos privilégios do meu posto e me encarrego de tão dolorosa missão.
      ISABEL — Lorde Burleigh auxiliá-lo-á. (Dirigimdo-se a Burleigh) Providencie para que a ordem seja executada imediatamente. (Burleigh sai. Fora ouve-se um tumulto.)



Cena VII

(Isabel, Leicester e o conde de Kent.)

      ISABEL — O que é que há, milorde de Kent? Que tumulto é esse?
      KENT — É o povo que cerca o palácio e pede insistentemente para vos ver.
      ISABEL — O que deseja o meu povo?
      KENT — O terror campeia pelas ruas de Londres. Que a vossa vida está ameaçada, que vos rodeiam assassinos que o papa mandou contra vós, que os católicos conjuraram-se para arrancar Maria à força da prisão e a proclamarem rainha, tais são as coisas em que o povo acredita e o que o enraivece. Somente se a cabeça da Stuart for cortada hoje mesmo, ele poderá serenar.
      ISABEL — Como? Obrigar—me-ão a tal?!
      KENT — O povo não se retirará enquanto não tiverdes assinado a sentença de morte.



Cena VIII

(Os mesmos, Burleigh e Davidson, que trazem um papel na mão).

      ISABEL — Que tem ai, Davidson?
      DAVIDSON (aproximando-se solenemente) — Destes ordem, rainha...
      ISABEL — Que é isso? (Vai pegar o papel mas recua) Oh, meu Deus!
      BURLEIGH — Obedecer à voz do povo é obedecer a voz de Deus.
      ISABEL (indecisa, lutado consigo mesma) — Oh, milorde! Quem é que pode me garantir que essa voz seja na verdade a voz de todo o meu povo e a voz do mundo? Ah! como temo ao obedecer aos desejos do povo, que seja outra voz a que me deixem ouvir!... E que aqueles que tão violentamente me impelem a este ato me increpem com rigor se não lhes atender a vontade!



Cena IX

(Os mesmos e o conde de Shrewsbury)

      SHREWSBURY (agitadíssimo) — Querem vos impelir, rainha... Mantende-vos firme... firme... (Vê Davidson com o papel na mão). Já está feito? Está verdadeiramente feito? Vejo naquela mão um infausto papel. Dêem-no à rainha para que o leia.
      ISABEL — Obrigam-me, Shrewsbury!
      SHREWSBURY — Quem é que vos pode obrigar? Sois a soberana... Trata-se agora de mostrar a grandeza de vossa majestade. Mandai calar essas vozes bárbaras que se atrevem a forçar a vontade real. O temor, um desvario sacodem o vosso povo. Vós própria estais irritada. Sois mulher e nesta hora não podeis deliberar.
      BURLEIGH — Não se trata de pronunciar uma sentença, mas sim de executá-la.
      KENT (que saira logo que Shrewsbury entrara, volta) — O tumulto cresce. Não é possível conter o povo por mais tempo.
      ISABEL (a Shrewsbury) — Vê como me forçam?
      SHREWSBURY — Peço apenas um adiamento. Uma penada decidirá da felicidade e da paz da vossa vida. Tendes refletido há muitos anos e um minuto de tempestade há de perturbar-vos? Um pequeno adiamento... Serenai-vos... Esperai estar mais calma.
      BURLEIGH (vivamente) — Esperai, vacilai, adiai, até que o reino pegue fogo, até que a vossa terrível inimiga consiga fugir e descarregar-vos o golpe mortal. Três vezes Deus já vos livrou dele. Hoje tivestes a morte bem perto e aguardar mais um milagre é tentar a Deus.
      SHREWSBURY — Esse Deus que com mão milagrosa pela quarta vez vos preservou, que emprestou hoje ao braço fraco e trêmulo do ancião força bastante para desarmar um louco, merece bem que nele se confie. Não quero fazer ouvir a voz da justiça, porque não a ouvireis nesta hora de tormenta. Ficai sabendo apenas uma coisa: tremeis na frente de Maria, que ainda está viva! Pois não é, enquanto ela viver, que dever tremer — tremei quando ela tiver sido sacrificada... Levantar-se-á do seu túmulo tal como deusa da discórdia, como uma sombra para percorrer o vosso reino e pôr longe de vós o coração do povo. O povo odeia agora essa mulher, a quem ao mesmo tempo teme, mas vinga-la-á quando ela tiver caido. Verá nela não uma inimiga da sua fé, mas a filha dos seus reis, vítima de ódios e de ciúmes. Depressa constareis essa transformação. Atravessai a cidade de Londres apos a sua execução, mostrai-vos a esse povo que pouco antes se comprimia em volta de vós cheio de contentamento e vereis então outra Inglaterra, outro povo. Não vos verão por essa alta justiça que tantos corações vos conquistou... O temor, cortejo sinistro da tirania, antecederá os vossos passós e fará a multidão fugir das ruas por onde ides passar. Que cabeça poderá estar segura nos ombros se tombar essa, que é sagrada?
      ISABEL — Ai, Shrewsbury, hoje salvou-me a vida, afastou de mim o punhal assassino! Porque impediu o golpe? A luta teria já acabado e liberta de todas as dúvidas, limpa de todas as culpas, jazeria tranqüila no meu jazigo. Já estou cansada de viver e de reinar. Se é necessário que morra uma de nós, rainhas, para que a outra viva, e isso não pode deixar de ser, porque não hei de ser eu a que tombe? O meu povo pode escolher — devolvo-lhe a sua majestade e o seu poder. Deus é testemunha de que não tenho vivido apenas para mim, mas sim para tornar meu povo feliz. Se ele conta que essa vaidosa Stuart traga dias melhores, voluntariamente descerei do trono e voltarei a minha boa solidão de Woodstock, onde passei a minha humilde mocidade e onde, distante da vaidade das grandezas da terra, me encontro em plena liberdade. Não, eu não nasci para reinar. O soberano deve possuir forças e o meu coração é bem fraco. Se até agora reinei com felicidade, foi porque só tinha que cuidar dessa felicidade, mas quando pela primeira vez me surge um dever grave de rainha, sinto toda a minha impotência.
      BURLEIGH — Por Deus! Quando ouço tais palavras da boca da rainha, atraiçoaria o meu dever, atraiçoaria a minha pátria se me calasse por mais tempo. Se dizeis que amais o vosso povo mais que a vós propriamente provai-o! Não escolhais a paz para vós e o tormento para ele! Pensai na Igreja. Com essa Stuart voltarão as superstições e o antigo fanatismo. Os frades voltarão a reinar e o delegado de Roma fechará as vossas igrejas e destronará os nossos reis. Considero-vos responsável pelas almas de todos os vossos súditos que, ou se salvarão, ou se perderão para sempre conforme procederdes agora. A hora não é propícia para clemências. Neste momento o bem-estar do povo constitui o vosso mais alto dever. Se Shrewsbury salvou a vossa augusta vida, eu quero salvar a Inglaterra — o que representa muito mais!
      ISABEL — Deixem-me só! Em tão transcendente assunto não é aos homens que se deve pedir conselho ou consolo. Ajoelho-me aos pés do supremo júiz e o que ele me inspirar será então o que farei. Retirem-se, milordes. (A Davidson.) O senhor não se afaste muito. (Os lordes saem. Shrewsbury fica durante alguns instantes em frente à rainha, põe nela um olhar cheio de contentantento, depois sai vagarosamente com uma expressão de profundo pesar).



Cena X

(Isabel, só).

      — Oh, escravidão de servir o povo, vergonhosa escravidão! Já estou cansada de queimar incenso nas aras desse ídolo que intimamente desprezo. Quando ficarei livre no meu trono? Sou obrigada a respeitar a opinião, forçar o aplauso da turba, dar razão a uma ralé que ama os espetáculos. Oh, não é rei quem procura agradar ao mundo! mas sim quem não tem precisão de regrar a sua conduta pela opinião dos homens. Em virtude de não ter feito durante a minha vida mais que executar a justiça e odiar o arbítrio, eu própria algemei as minhas mãos, não podendo executar um ato de poderio e violência. O exemplo que eu própria me dei me condena. Se fosse titânica como a espanhola Maria, que me antecedeu no trono, poderia fazer correr até sangue real sem ficar exposta a vitupérios. O ser justa fui eu mesma que o quis. A necessidade, que é onipotente e que faz dobrar até a própria vontade dos reis, impôs-me essa virtude. Cercada de inimigos, é somente o favor do povo que me conserva no trono. Todas as potências da Europa desejam me aniqüilar. O papa, irreconciliável, excomungou-me. A França atraiçoa-me com sua falsa amizade e a Espanha prepara nos mares uma guerra sem quartel, uma guerra de extermínio. Assim, estou lutando só contra o mundo inteiro, eu, uma fraca mulher! É preciso cobrir com imensas virtudes a fragilidade dos meus direitos, a nódoa do meu nascimento real, que meu pai me transmitiu. Em vão, porém, me esforço por o fazer — o ódio das minhas rivais desnuda-a e essa Stuart vem ao meu encontro como um fantasma ameaçador. Não, é necessário que acabe este medo. É necessário que caia essa cabeça. Quero ter tranqüilidade!... Ela é a fúria da minha vida, o espírito do mal que a fatalidade me destinou. Onde quer que ponha uma alegria ou uma esperança, surge essa serpente infernal. Rouba-me o amante, rouba-me o prometido esposo! Maria Stuart é o nome de toda a infelicidade que me abate. Que seja cortada do número dos vivos e então eu serei livre como o ar puro das montanhas (Fica silenciosa por alguns instantes). Com que ar sarcástico me olhou! Como se o seu olhar tivesse a força de me arruinar! Impotente! Eu possuo armas melhores, armas mortais e deixarás de viver. (Com rápidos passos aproxima-se da mesa e pega na pena). Para ti eu sou uma bastarda, não? Infeliz, sou-o porque ainda vives, porque respiras! A dúvida quanto ao meu real nascimento desaparecerá tão cedo tu sucumbas. Logo que os ingleses não tenham por onde escolher, terei sido concebida em tálamo legítimo. (Assina a sentença com um golpe rápido e firme. Deixa cair a pena e recua com expressão de horror. Depois duma pequena pausa puxa o cordão da campainha).


Cena XI

(A mesma e Davidson).

      ISABEL — Onde estão os lordes?
      DAVIDSON — Foram serenar o povo amotinado. A agitação cedeu logo que apareceu o conde de Shrewsbury. Foi ele! foi ele! — gritavam cem vozes ao mesmo tempo — foi ele quem salvou a rainha! Ouçam-no! É o homem mais valente da Inglaterra! Então o nobre Talbot pôs-se a arengar, censurando o povo, com palavras delicadas, a sua turbulenta atitude. Falava de um tal jeito que tudo se acalmou como por encanto.
      ISABEL — Povo leviano que se deixa impelir por todos os ventos! Pobre de quem se apoia em tal sustentáculo. Está bem, sir Davidson, pode se retirar. (Ao ver que Davidson se dirije para a porta) E aquele papel... Leve-o...
      DAVIDSON (Pondo no papel um olhar de surpresa) — Rainha! A vossa assinatura! Tomastes uma resolução?!
      ISABEL — Devia assiná-lo e foi o que fiz. Uma folha de papel não resolve nada — um nome escrito não faz morrer.
      DAVIDSON — Mas o vosso, rainha, resolve tudo — faz morrer, é como um raio que tomba! Esta folha de papel ordena aos delegados de justiça e ao xerife que se dirijam com toda urgência a Fotheringhay para anunciarem a morte à rainha da Escócia e para a executarem ao romper da aurora. Não haverá demora e ela deixará de existir tão cedo este papel sair das minhas mãos.
      ISABEL — Perfeitamente, cavalheiro. Deus coloca-lhe nas mãos um grande e importante destino. Rogue-lhe que o esclareça com a sua sabedoria. Vou-me embora e deixo-o para cumprir o seu dever. (Prepara—se para sair).
      DAVIDSON (Embargando-lhe o passo) — Não, rainha, não sairei de vossa presença antes de me comunicardes a vossa vontade. Precisa-se por ventura de outra sabedoria além da de obedecer as vossas ordens ao rigor da letra? Pondes este papel nas minhas mãos — é para que eu mande executar rapidamente o que nele se ordena?
      ISABEL — Procederá discretamente...
      DAVIDSON (Surpreendido e aterrado) — Deus me guarde! Toda a minha discreção se resume a obedecer. O vosso vassalo não tem nada que dizer. O menor erro seria neste caso um regicídio, uma pavorosa desgraça. Consenti que em assunte de tal importância não seja mais que um vosso instrumento cego e sem vontade. Dizei-me o que pensais. Que hei de fazer com esta ordem?
      ISABEL — Por si própria ela diz o suficiente.
      DAVIDSON — Quereis que seja cumprida?
      ISABEL (Hesitante) — Não digo isso e só ao pensá-lo eu tremo.
      DAVIDSON — Desejareis que eu a guarde?
      ISABEL — Sob sua responsabilidade? Garante o que possa acontecer?
      DAVIDSON — Eu! Meu Deus do Céu! Falai, rainha, que quereis que seja feito?
      ISABEL (Impaciente) — Não desejo pensar mais nesse infeliz assunto. Deixe-me em paz.
      DAVIDSON — Oh! Dizei o que se há de fazer com esta ordem.
      ISABEL — Já lhe disse, não me aborreça mais.
      DAVIDSON — Já me dissestes? Oh, não, dignaí-vos lembrar...
      ISABEL (Batendo com o pé no chão) — Insuportável!
      DAVIDSON — Sêde generosa comigo! Há poucos meses que sirvo no palácio, não conheço ainda a linguagem da corte e dos reis... Fui educado no meio de gente simples. Tende paciência com o vosso humilde súdito! Não lhe negueis as palavras que lhe mostrarão o seu dever. Dignai-vos esclarecer-me nos meus deveres. (Aproxima-se da rainha com expessão suplicante e ela vira-lhe as costas. Ele demonstra seu desespero falando em tom resoluto): Tomai esta ordem, tomai-a! Nas minhas mãos é como uma brasa ardente! Não me escolhais para vos servir neste horrível negócio.
      ISABEL — Cumpra o que o seu posto obriga. (Sai).



Cena XII

(Davidson, depois Burleigh).

      DAVIDSON — Foi-se, deixando-me sem me aconselhar o que fazer, com este sinistro papel! Que fazer? Devo guardá-lo, ou entregá-lo? (A Burleigh, que entra) Oh, benvindo, milorde! Deu-me o cargo que desempenho, livre-me dele agora. Aceitei-o, sem saber o que representava. Permita-me que torne à obscuridade em que me encontrou. Eu não possuo condições para este lugar.
      BURLEIGH — Nada disso! Acalme. Onde está a sentença? A rainha mandou-o chamar?
      DAVIDSON — Deixou-me enraivecido! Oh, aconselhe-me, arranque-me a angústia diabólica da dúvida! Aqui está a sentença e assinada.
      BURLEIGH (vivamente) Oh, dê-me, dê-me!
      DAVIDSON — Não ouso!
      BURLEIGH — Que!?
      DAVIDSON — A rainha não me deu a conhecer claramente as suas intenções.
      BURLEIGH — Mas assinou-a.
      DAVIDSON — Devo proceder para que a executem ou não? Santo Deus! Como saber o que devo fazer?
      BURLEIGH — Deve fazer com que ela seja executada incontinenti. Dê-me. Estará perdido se se demora com isso.
      DAVIDSON — Também estou liquidado se me apresso.
      BURLEIGH — É louco! Está alucinado! Dê-me! (Arranca-lhe a sentença e sai precipitadamente).
      DAVIDSON (Correndo atrás dele) — Que está fazendo?! Não vá embora — não me perca!



Ato Quinto

A mesma sala do Primeiro Ato

Cena 1

(Ana Kennedy, rigorosamente vestida de luto, com os olhos vermelhos de choro e uma expressão de imensa dor, ainda que sufocada, está arrumando diversas cartas e embrulhos de papéis. A tristeza fá-la, de quando em quando, interromper o seu trabalho pondo-se então a rezar em voz imperceptível. Paulet e Drury, também vestidos de preto, entram, seguidos de alguns criados conduzindo taças de ouro e prata, espelhos, quadros e outros objetos de valor, que vão colocar ao fundo da sala. Paulet entrega a Ana papel e um tinteiro, indicando-lhe por gestos que foi feita uma relação de tudo quanto se trouxe para ali. Ao ver esses objetos, Ana Kennedy sente crescer a dor que a fere e por gestos dá a entender quão profundo é o seu pesar. Quando todos se retiram em silêncio, entra Melvil).

      ANA (Vendo-o) — Melvil, é o senhor? Vejo-o novamente.
      MELVIL — Sim, leal Ana, vemo-nos novamente.
      ANA — Depois de tão longa e penosa separação.
      MELVIL — Mas este encontro é mais triste ainda!
      ANA — Oh, meu Deus! Vem...
      MELVIL — Trazer o último adeus, o adeus à minha rainha.
      ANA — Hoje, no dia da sua morte, permitem-lhe afinal a ventura de tornar a ver os seus servidores... Oh, meu caro amigo! Não lhe pergunto o que lhe sucedeu, quero lhe contar o que temos sofrido desde que o separaram de nós. Ai de nós, rápido chegará o momento!. Oh, Melvil, Melvil, e temos que viver para ver um dia como este!
      MELVIL — Chorarei enquanto viver, jamais um sorriso passará pelos meus lábios, jamais tirarei o lutp. Sofrerei eternamente a dor, mas quero hoje me mostrar diferente. Prometa-me moderar também a sua dor e conquanto todos se entreguem ao desespero apresentemo-nos, nós, de ânimo forte e resignado semblante.
      ANA — Ilude-se Melvil, se pensa que a rainha necessita do seu auxílio para morrer corajosamente. Ela é quem nos vai dar o exemplo de valor e de superioridade. Nada tema. Ela morrerá como rainha e como heroína.
      NELVIL — Ouviu com serenidade a sentença de morte? Corre que a haviam preparado para isso.
      ANA — É mentira. Outro era o temor que a perturbava. Não tremia ante a morte, mas sim diante do seu libertador... Haviam-nos prometido a liberdade. Na noite passada deviam tirar-nos daqui, assim Mortimer nô-lo garantiu. Maria, hesitante entre o temor e a esperança não sabendo se devia ou não entregar a sua honra e sua augusta pessoa àquele audacioso jovem, esperou-o até de madrugada. Aí se elevou um tumulto no castelo, ao ao mesmo tempo que chegavam aps nossos ouvidos as pancadas dum martelo; Pensamos que se tratava dos nossos libertadores e isso aumentou-nos a esperança, o doce impulso da vida, perfeitamente justificável nesse instante, empolgou-nos fortemente! A porta abriu-se... Era sir Paulet que nos vinha anunciar que os carpinteiros estavam levantando um patíbulo junto de Fotheringhay. (Vira-se, tomada pela dor.)
      MELVIL — Deus misericordioso! Diga-me: como é que Maria suportou esse golpe?
      ANA (Depois de uma pausa, esforçando-se por dominar a sua tristeza) — O homem não pode desprender-se vagarosamente da vida, pelo contrário, passa instantaneamente do que é terreno para o que é eterno... Deus, naquele instante concedeu à minha senhora forças sufi cientes para abandonar as esperanças da terra e fixar, cheia de fé, os olhos no céu. Nenhum sinal de temor, nenhuma palavra de queixa diminuiu a minha rainha. Ao saber, porém, da traição de lorde Leicester e da desventurada sorte que teve o jovem que por ela se sacrificou, ao ver a profunda dor que dominava aquele ancião cuja derradeira esperança morrera por sua causa, derramou muitas lágrimas, porque chorava, não a sua própria sorte mas sim a dor alheia.
      MELVIL — Onde ela está? Pode me conduzir à sua presença?
      ANA — Passou o resto da noite rezando. Despediu-se por escrito dos seus amigos mais caros e fez o seu testamento com o próprio punho. Foi descansar um momento — o seu último sono é sereno.
      MELVIL — E quem é que está a seu lado?
      ANA — Está Burgoyn, o médico da câmara, e as suas aias.



Cena II

(Os mesmos e Margarida Kurl.)

      ANA — Que novas nos traz, Margarida? A rainha já se levantou?
      MARGARIDA (Enxugando as lágrimas) — Ela vestiu-se e chama por si.
      ANA — Já vou. (Para Melvil que faz o gesto de segui-la) — Não entre enquanto não a prepare para recebê-lo. (Sai).
      MARGARIDA — Melvil, o velho mordomo do palácio!
      MELVIL — Exatamente, sou eu.
      MARGARIDA — Oh, esta casa já não necessita mais de mordomo! Vem de Londres, Melvil? Que notícias me dá de meu marido?
      MELVIL — Corre que será posto em liberdade logo que...
      MARGARIDA — Que a rainha deixe de existir. Canalha, vil traidor! Ele é que é o assassino da nossa rainha. Foi o seu depoimento que a perdeu.
      MELVIL — Na verdade, é como diz.
      MARGARIDA — Maldita seja a sua alma, até no inferno!...
      MELVIL — Pense no que está dizendo.
      MARGARIDA — Repeti-lo-ei no tribunal, repeti-lo-ei diante do mundo inteiro! A rainha morre inocente!...
      MELVIL — Queira Deus que seja assim!



Cena III

(Os mesmos, Burgoyn, depois Ana Kennedy.)

      BURGOYN (dando com Melvil) — Oh, Melvil!
      MELVIL (abraça-o) — Burgoyn!
      BURGOYN (a Margarida) — Dê-me um cálice de vinho para a nossa rainha, rápido. (Margarida sai).
      MELVIL — Como? A rainha não está se sentindo bem?
      BURGOYN — Sente-se forte. O seu heroismo a ilude — crê que não precisa de alimentos. Luta, e das mais tremendas, é todavia, a que a aguarda.... Que não se envaideçam os seus inimigos, pensando que é o temor da morte que causa a palidez das suas faces. Ela só provém de seu estado de fraqueza.
      MELVIL (a Ana, que acaba de entrar) — Quer me receber?
      ANA — Dentro de poucos instantes a rainha estará aqui. Parece estar surpreendido ao olhar em volta? O seu olhar me pergunta para que há tanta pompa e riqueza neste lugar de morte? Oh! Enquanto vivemos aqui sofremos a falta de tudo, até do mais indispensável e agora, com a morte, dão-nos o supérfluo.



Cena IV

(Os mesmos e as aias de Maria, trajadas de luto. Ao darem com Melvil rompem em pranto).

      MELVIL — Que quadro! Que encontro! Gertrudes!... Rosamunde!...
      ROSAMUNDE — Mandou-nos sair. Deseja, pela derradeira vez neste mundo, dedicar um momento a Deus! (Entram mais duas aias também trajadas de luto e com patentes sinais de dor).



Cena V

(Os mesmos e Margarida Kurl trazendo uma taça de ouro cheia de vinho que coloca na mesa, amparando-se depois, pálida e trêmula a uma das cadeiras.)

      MELVIL — O que é que sente, Margarida? Que é que a aflige?
      MARGARIDA — Oh, meu Deus!
      BURGOYN — Que sente?
      MARGARIDA — O que eu vi!...
      MELVIL — Conte-nos o que há.
      MARGARIDA — Quando ia subir as escadas trazendo esta taça de vinho, a porta abriu-se... e eu vi... eu vi... Santo Deus!
      MELVIL — Que é que viu? Anime-se!
      MARGARIDA — Vi as paredes forradas de preto, um cadafalso também coberto de preto, um cepo, uma almofada e um cutelo. A sala está repleta de gente que se agrupa em volta desses instrumentos de morte, com os olhos ansiosos para verem correr sangue, gente que está à espera da vítima.
      AS AIAS — Deus tenha compaixão da nossa rainha!
      MELVIL — Silêncio! Aí vem ela!



Cena VI

(Os mesmos e Maria, de branco, trazendo ao pescoço uma corrente com um Agnus Dei e um rosário, na mão um crucifixo e sebre os ombros um véu preto. Ao entrar, os presentes abrem alas, com demonstrações de dor. Meivil, involuntariamente, cai de joelhos.)

      MARIA (com plácida majestade, olhando os que a cercam) — Porque gemem, porque choram? Devem se alegrar tanto como eu, porque chega o fim dos meus tormentos, porque quebram-se as minhas algemas, porque a minha prisão se abre e a alma, alegre e feliz, larga as asas angélicas para as alturas da eterna liberdade. Quando eu sofria sob o guante de uma inimiga orgulhosa, suportando vilezas que uma rainha não pode absolutamente suportar, então, sim, era ocasião para chorar! A morte se aproxima de mim como uma amiga bondosa e esperada cobrindo a minha cabeça com suas negras asas. A derradeira sorte que cabe ao homem, a que faz sucumbir, é também a que mais enobrece. Sinto de novo, a coroa sobre a minha cabeça e o orgulho na minha nobre alma. (Avança alguns passos de quando em quando) Como? Melvil aqui? Nessa posição, nobre Melvil?! Levante-se! Veiu assistir, não à morte, mas à vitória da sua rainha. Diga-me, nobre cavalheiro, o que foi que aconteceu nesta terra sinistra desde que o arrancaram do meu lado? Ao pensar em si muitas vezes meu coração chorava.
      MELVIL — A única dor que sofri foi a recordação da vossa dor e a impotência em que estava para vos servir.
      MARIA — Que aconteceu a Didier, meu bom camarista? Talvez já esteja dormindo o sono eterno, visto que era bem idoso.
      MELVIL — Deus não honrou conceder-lhe tal graça. Ainda vive para a recordação dos dias da vossa mocidade.
      MARIA — E não posso, antes de morrer, ter a felicidade de abraçar os entes queridos a que estou ligada pela sangue! É preciso morrer entre estranhos e não vendo em redor de mim somente lágrimas. Deposito, Melvil, no seu peito fiel os meus últimos votos para os meus. Abençôo o rei cristianíssimo, meu cunhado, e toda a real casa de França. Abençôo meu tio, o cardeal, e Henrique de Guise, meu augusto primo. Abençôo o Santo Padre, representante de Jesus Cristo na terra, o qual também me abençôa. E abençôo o rei católico, que magnanimamente se ofereceu para ser meu salvador e me vingar. Todos são nomeados no meu testamento e receberão lembranças da afeição que lhes dedico, que, embora pobres, não deixarão de aceitar. (Vira-se para os seus servidores) Recomendei-os a meu real irmão de França, que zelará por suas vidas e lhes oferecerá uma nova pátria. Se aos seus olhos a minha derradeira súplica tem algum valor, não fiquem na Inglaterra, para que desse modo o coração orgulhoso do inglês não se envaideça com o espetáculo da sua infelicidade e não veja sucumbidos aqueles que lealmente me serviram. Prometam-me sôbre este Crucifixo deixar esta terra maldita logo que eu deixe de existir!
      MELVIL (pondo a mão no crucifixo) — Juro-o por todos.
      MARIA — Tudo quanto eu, pobre e espoliada, possuo, tudo quanto eu possa dispor livremente, reparto entre vocês e conto que seja respeitada esta minha última vontade. Também é de vocês tudo o que levo para a morte. Consintam-me que ao partir para o céu me cubra pela derradeira vez das pompas da terra. (Dirigindo-se às aias) Para Alice, Gertrudes e Rosamunde, deixo as minhas pérolas e os meus vestidos, porque os adereços casam magnificamente com a sua mocidade. Margarida tem maiores direitos à minha generosidade, por ser de todas a que deixo a mais infeliz. O meu testamento mostrará que não pretendo vingar nela o crime de seu marido. Para você, minha fiel e dedicada Ana, não têm valor nenhum o ouro e as pedras preciosas!... A minha lembrança será a teus olhos a jóia de mais alto valor. Fica com este lenço! Fui eu que, nas minhas horas de dor e de sofrimento, o bordei para ti e o lavei com as minhas lágrimas. Com este lenço me taparás os olhos quando chegar o momento... Desejo que a minha querida Ana me faça este último favor!
      ANA — Oh, Melvil, eu não posso suportar mais!
      MARIA — Venham, cheguem-se a mim, todos! Venham e recebam o meu último adeus. (Estende-lhes as mãos, e todos tombam a seus pés e lhe beijam as mãos chorando amargamente). Adeus, Margarida! Obrigada, Burgoyn por seus leais serviços. A tua boca queima, Gertrudes... Fui muito odiada, mas também fui muito amada! Queira Deus que um nobre esposo faça ditosa a minha Gertrudes, porque o seu inflamado coração exige amor! Tu escolheste, Berta, o melhor partido. Serás a virtuosa esposa daquele que está no céu! Apressa-te a cumprir os teus votos. Falaces são os bens deste mundo e já o sabem pelo exemplo da sua rainha. Nada mais! Adeus!... Adeus!... (Vira-se rapidamente. Todos saem, exceto Melvil.)



Cena VII

(Maria e Melvil.)

      MARIA — Já pus em ordem todas as minhas coisas terrenas. Conto ir deste mundo livre de todas as dívidas com os homens. Só uma idéia me punge.
      MELVIL — Dizei-ma... Confiai a um amigo fiel as vossas inquietações.
      MARIA — Acho-me nos umbrais da eternidade, em pouco estarei na presença do Juiz Supremo e ainda não me reconciliei com o santo entre os santos. Negam-me os sacerdotes da minha igreja e eu me recuso a receber das mãos dum falso sacerdote a hóstia consagrada. Quero morrer na fé da minha igreja, a única que dá a salvação eterna.
      MELVIL — Serenai o vosso puro coração. O céu pesa esses desejos tão fervorosos como piedosos, embora não se possam realizar. O poder dos tiranos algema somente as mãos — a piedade do coração sobe até Deus. A palavra morre, mas a fé é imortal.
      MARIA — Oh, Melvil, não basta o coração a si mesmo, a fé precisa de alguma coisa terrena para alcançar os sublimes benefícios celestais. Por isso, Deus se fez homem e misteriosamente encerrou num corpo visível os invisíveis dons celestes. A igreja santa e verdadeira é a que forma uma escada de comunicação entre nós e o céu. Chama-se universal, católica, porque somente a fé de todos é o que afirma e robustece a fé. Quando milhões de corações rezam e adoram, de tantas chamas sobe o calor e então o espírito, soltando as asas voa para o céu. Felizes os que oram reunidos na casa do Senhor! O altar está enfeitado, as velas queimam, vibra a campainha, evola-se a fumaça do incenso, o bispo em seus paramentos sagrados celebra o sacrifício da missa, levanta o cálice, abençoa-o, anuncia o milagre inaudito da transformação do Filho do Eterno. Então o povo crente ajoelha-se diante de um Deus presente. Ah! apenas eu fui excluída e a bênção do céu não vem a este mísero cárcere.
      MELVIL — Vem até vós, sim. Está próxima de vós! Confiai no Onipotente! A vara estéril pode florescer na mão do que tem fé e aquele que faz jorrar a água da pedra pode vos preparar um altar no vosso cárcere e transformar o licor terreno dessa taça num licor celestial. (Toma a taça que está sôbre a mesa).
      MARIA — Será que o compreendi, Melvil? Sim, compreendi-o. Aqui não há nenhum sacerdote, nenhuma igreja, coisa alguma sagrada; o Salvador, porém, disse: “Onde quer que se reunam em meu nome ali estarei presente.” O que é que torna um sacerdote ministro do Senhor? Um coração e um procedimento puros. Dessa forma sua pessoa embora não consagrada, chega a mim como mensageiro de Deus, trazendo-me a paz. Quero lhe fazer a minha última confissão para que da sua boca me venha o anúncio da minha salvação eterna.
      MELVIL — Se tão fortemente vos impele o coração, sabei, rainha, que para vos consolar Deus pode fazer um milagre. Dizeis que não há aqui nenhum sacerdote, nem uma igreja, coisa alguma sagrada, mas estais enganada. Há aqui um sacerdote e Deus está presente. (Descobre a cabeça e mostra-lhe uma hóstia dentro de um relicário de ouro). Sou sacerdote para ouvir a vossa última confissão e vos garantir a paz eterna no caminho da morte. Recebi as sagradas ordens e esta hóstia que aqui vos mostro foi consagrada pelo Santo Padre.
      MARIA — Já no limiar do eterno sono ainda me é proporcionada uma ventura celestial. Tal como um ser imortal que baixasse das nuvens douradas em que repousa, tal como o anjo que atravessando as paredes do cárcere livrou o apóstolo, sem que pudessem deter-lhe nem os ferrolhos, nem a espada das sentinelas para transpor as portas cerradas, assim me surge na prisão, surpreendendo-me, o enviado do céu, quando fui enganada por todos os libertadores da terra. E você, Melvil, que foi durante algum tempo meu servidor, é servidor agora do Ser Supremo e seu instrumento. Da mesma forma como em outro tempo ajoelhava-se diante de mim, eu hoje me curvo na sua presença. (Tomba ajoelhada diante de Melvil).
      MELVIL (após fazer sobre Maria o sinal da cruz) — Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, inquiriste o vosso coração, rainha Maria? Jurais e prometeis confessar toda a verdade perante o verdadeiro Deus?
      MARIA — O meu coração se abre na sua presença.
      MELVIL — Dizei então: de que pecados a consciência vos acusa desde a última vez em que vos reconciliastes com Deus?
      MARIA — Estava cheio de ódio o meu pobre coração. Pensamentos de vingança o sufocavam. E eu, pecadora, espero que seja perdoada por Deus, assim como perdôo à minha rival.
      MELVIL — Arrependei-vos das vossas culpas e estais decidida a deixar este mundo, reconciliada com todos?
      MARIA — Sim, estou, e que Deus me perdoe.
      MELVIL — Há mais alguma coisa de que vos acuseis?
      MARIA — Pobre de mim! Não apenas por ódio, mas também por um amor criminoso ofendi a graça suprema. Amei um homem que me enganou, e deslealmente me abandonou.
      MELVIL — Arrependei-vos dessa culpa? Consagrastes o vosso coração a Deus, abandonando esse ódio vão?
      MARIA — Luta bem cruel se travou o meu coração, contudo finalmente rompi o derradeiro laço que me prendia à terra.
      MELVIL — De que outras culpas vos acusa a consciência?
      MARIA — Pobre de mim! Uma culpa terrível, confessada há muito tempo já, me perturba e amedronta no momento da minha última justificação, pondo-se cada vez mais negra na minha frente, para impedir que me sewjam abertas as portas do reino do céu. Consenti em que assassinassem o rei meu esposo e concedi o coração e mão ao autor desse crime. Expiei a culpa com os castigos que a igreja impõe, todavia o remorso que me corrói a alma nunca abrandou.
      MELVIL — Não vos acusa o coração de nenhum outro pecado mais?
      MARIA — Já sabe tudo quanto pesa sobre ele.
      MELVIL — Pensai na presença daquele que nada ignora, pensai nos castigos com que a igreja ameaça uma confissão incompleta. Quem fizer isso, cai em pecado mortal.
      MARIA — Deus me prive da vitória nesta última luta se voluntariamente escondi algum.
      MELVIL — Como? Pretendeis esconder a Deus o crime pelo qual os homens vos punem? Não me dizeis nada da participação que tivestes no crime de alta traição perpetrado por Babington e Parry? Se por ele sofreis a morte temporal, quereis também merecer a morte eterna?
      MARIA — Estou perfeitamente preparada para a eternidade. Alguns minutos mais e estarei diante do trono do Juiz Supremo, e repito — a minha confissão é completa.
      MELVIL — Pensai bem. O coração muitas vezes se engana. Por malicioso engano não dissestestes a palavra que vos torna culpada... Mas não vos esqueçai de que não há ardil, artifício ou subterfúgio que escape aos olhos infalíveis daquele que lê no coração humano.
      MARIA — Implorei a todos os príncipes que me lvrassem de cadeias indignas, mas jamais conspirei contra vida da minha inimiga.
      MELVIL — Quer dizer que os vossos secretários depuseram falsamente?
      MARIA — O que eu disse é verdade. Que Deus os julgue!
      MELVIL — Sobes, então, ao patíbulo segura da tua inocência?
      MARIA — Deus na sua sabedoria quís que eu expiasse com esta morte imerecida sangrentos pecados que cometi.
      MELVIL (abençoando-a) — Ide, rainha, e expiai com a morte os vossos pecados. Como resignada vítima caí aos pés do santo altar. Com o sangue se pode pagar o que pelo crime se pecou. Pecastes apenas por fraqueza de mulher. As almas bem fadadas não levam a sua fraqueza terrena além da sua transfiguração. Por isso, em virtude das faculdades que me foram concedidas, eu vos absolvo de todos os vossos pecados. (Apanha a taça que está sobre a mesa, consagra-a, orando em silêncio, e ofe rece-a depois a Maria, que hesita em tomá-la e repelindo-a com a mão). Bebei esse sangue que por vós foi derramado. Bebei! O Papa vos concede essa graça! No limiar da morte podeis alcançar os mais altos direitos dos reis. (Maria aceita a taça). Assim como nos vossos sofrimentos na terra vos unistes a Deus, assim, no seu reino, de paz, onde não há pecados, vos reunireis para a eternidade, como um anjo de luz, à divindade. (Coloca a taça na mesa. Ouve-se um ruído fora e Melvil cobre a cabeça e caminha para a porta. Maria continua rezando, ajoelhada).
      MELVIL (voltando) — Tendes todavia uma última e dura batalha que sustentar. Senti-vos com forças bastantes para vencer toda a emoção, todos os impulsos de amargor e de ódio?
      MARIA — Não temo tornar a cair. O meu ódio e o meu amor, sacrifico-os a Deus.
      MELVIL — Se é assim, preparai-vos para receber lorde Leicester e lorde Burleigh. EIes estão aí.



Cena VIII

(Os mesmos, Burleigh, Leicester e Paulet. Leicester posta-se ao fundo sem levantar os olhos. Burleigh, que o contempla, coloca-se entre ele e a rainha.)

      BURLEIGH — Eu venho, lady Stuart, receber as vossas últimas ordens.
      MARIA — Muito obrigada, milorde.
      BURLEIGH — A minha rainha deseja que não vos seja negado nada que seja justo.
      MARIA — No meu testamento deixei os meus últimos desejos. Entreguei-o ao cavalheiro Paulet e exijo que seja rigorosamente executado.
      PAULET — Podeis ficar descansada.
      MARIA — Rogo que seja dada inteira liberdade aos meus servidores para irem para onde bem quiserem.
      BURLEIGH — O que desejais sera feito.
      MARIA — E já que o meu corpo não pode repousar em terra sagrada, que seja consentido aos meus fiéis servidores levarem o meu coração para os meus parentes de França. Infeliz que fui! Sempre ele esteve lá.
      BURLEIGH — Assim será feito. Tendes mais algum desejo a pedir?
      MARIA — Levai à rainha da Inglaterra a minha fraternal saudação. Dizei-lhe que do fundo do meu coração eu lhe perdôo a minha morte e que me arrependo sineramente da minha agressividade de ontem. Que Deus proteja e lhe favoreça um feliz reinado!
      BURLEIGH — Dizei-me: não mudastes de idéia? Não quereis a assistência do deão?
      MARIA — Já estou reconciliada com o meu Deus. Sir Paulet, causou a vossa desgraça. Oh, como seria feliz se não tivésseis nenhum ódio de mim!
      PAULET (oferecendo-lhe a mão) — Deus vos conduza em paz, senhora!...



Cena IX

(Os mesmos. Ana e as outras aias da rainha entram dando mostras de terror. Atrás delas vem o cherif empunhando uns pequeno bastão branco. Para aquem da porta, que fica escancarada, vêem-se homens armados).

      MARIA — O que é que tens, Ana? Sim, é tempo... Chega o cherife para me levar para a morte... É forçoso nos separarmos! Adeus!... Adeus! (As aias aproximam-se dela, dando mostras de intensa dor. Maria dirige-se a Melvil) O senhor, honrado cavalheiro, e tu, minha leal Ana, acompanhar-me-ão. Não me negues este favor, milorde.
      BURLEIGH — Isso não depende de mim.
      MARIA — Como? Nega-me um pedido tão pequeno? Lembre-se do meu sexo. Quem me há de prestar esse último serviço? Certamente que minha irmã não quererá que o seu sexo seja ofendido na minha pessoa e que as grosseiras mãos desses homens me toquem.
      BURLEIGH — Nenhuma mulher deve subir convosco os degraus do patíbulo... Os seus gritos e lamentos...
      MARIA — Ana não se lamentará. Respondo pela sua firmeza de ânimo. Seja bondoso, lorde Burleigh, não me separe, no umbral da morte, da minha ama e mestra, daquela que me levantou nos braços quando nasci e que com a sua mão me deixará nos braços da morte.
      PAULET (a Burleigh) — Consentí.
      BURLEIGH — Pois que seja assim.
      MARIA — Não tenho mais nada a esperar deste mundo. (Toma o crucifixo e beija-o). Tu, minha salvação, meu redentor, assim como estendestes os braços sobre a cruz, abre-os hoje também para me receberes! (Vira-se para sair e dá com o olhar do conde de Leicester, que, involuntariamente confuso ao ouvi-la, a fitava. Maria estremece, os seus joelhos dobram — vai cair. O conde de Leicester ampara-a nos braços. Ela fixa-o por um minuto, em silêncio, e vendo que ele não pode sustentar o seu olhar, diz-lhe): Deu-me a sua palavra, conde de Leicester, prometeu-me dar o seu braço para me arrancar desta prisão e, na verdade, assim está fazendo. (Ele mostra-se como que apalermado e Maria continua em voz mais doce) Sim, conde, a sua mão não só devia me trazer a liberdade como tornar essa liberdade mais cara para mim. Conduzida pela sua mão, feita ditosa por seu amor, ter-me-ia regozijado ao iniciar uma nova vida. Agora, que em pouco, bem pouco, vou deixar este mundo para me tornar um espírito celeste, para quem não tem mais tentações nem nenhum desejo terreno, agora, conde, posso lhe confessar sem pêjo a fraqueza que consegui vencer. Adeus! seja feliz, se for possível ser! Sonhou com o favor de duas rainhas, desprezou um coração meigo e apaixonado e vendeu-o para conquistar outro cheio do mais desmedido orgulho. Poste-se de joelhos aos pés de Isabel! Queira Deus que a sua recompensa não se transforme em duro castigo! Adeus! Não tenho mais nada com as coisas da terra! (O cherife rompe a marcha: Maria segue-o com Melvil de um lado e Ana do outro. Seguem-se Burleigh e Paulet. Os demais, com demonstrações de desespero, seguem-nos com o olhar até desaparecer, retirando-se imediatamente depois por duas outras portas).



Cena V

(Leicester, só).

      Ainda estou vivo, ainda não morri! Porque estas abóbodas sombrias não tombam sobre mim e me esmagam?! Porque não se abre a meus pés um tenebroso abismo para engulir o mais desventurado dos homens?! O que não desperdicei, que pérola não perdi, de que maravilhosa felicidade me privei!... Ela vai morrer! Vai subir ao céu como um anjo de luz, deixando-me entregue ao desespero dos réprobos! Onde está essa segurança com que vim — essa firmeza com que pretendia sufocar a voz do coração e ver como rolava a sua cabeça gentil, sem nem ao menos desviar os olhos? A sua presença faz renascer por acaso uma afronta que eu já havia olvidado? E ela, no limiar da morte, vai me prender com os liames do amor? Homem amaldiçoado, não te deixes envolver pela demência da mulher, a ventura do amor não está no teu caminho! Defenda o peito com uma armadura de ferro! Que a tua fronte seja um rochedo! Se não desejas perder o preço da tua miserável ação, toca para a frente, toca... Quero ser testemunha... (Encaminha-se com passo decidido para a porta por onde Maria saira, mas pára a meio do trajeto). Em vão! É inútil! Um pânico demoníaco se apossa de mim! Não! não posso presenciar essa cena terrível... Não posso vê-la morrer! Atenção! Ah! já chegaram!... Sob os meus pés se prepara essa obra fatal! Estou ouvindo vozes... Fujamos, fujamos deste lugar de pavor e de morte! (Quer fugir por outra porta, mas encontra-a fechada e volta para trás). Deus prendeu-me aqui? É preciso que ouça o que tanto me apavora presenciar? Ouço a voz do deão... Exorta-a... Ela interrompe-o... Ouçamos! Ela reza em voz alta... Sua voz é majestosa... Agora fez-se silêncio... Nem uma voz! Ouço apenas soluços... As mulheres choram... Recolhem o seu vestido... Escutemos!... Tiraram o banquinho... Ela se ajoelha sobre a almofada... Pousa a cabeça no cepo... (As últimas palavras são proferidas com uma angústia crescente. Depois pára um instante e de repente tomado de violenta agitação, cai no chdo desmaiado ao mesmo tempo que se ouve debaixo do palco um surdo murmúrio de vozes).


O SEGUNDO CENÁRIO DO QUARTO ATO

Cena XI

(Isabel entra por uma das portas laterais. O seu andar e os seus gestos denotam a viva agitação que a empolga).

      ISABEL — Não há ninguém aqui. Não há nenhuma notícia ainda... A tarde não chegará? Será que o sol parou na sua carreira? Não posso ficar por mais tempo nesta cruel impaciência. Foi cumprida, ou não? Ambas as coisas me apavoram e não me atrevo a perguntar a ninguém... O conde de Leicester não parece, nem Burleigh, e foram nomeados por mim para dirigirem a execução. Terão saido de Londres? Se na verdade é assim, a seta já foi lançada, voa, acerta no alvo, crava-se, cravou-se já, e embora mesmo que o exigisse a salvação do meu reino já não poderia eu detê-la. Quem é que vem ali?


Cena XII

(Isabel e um pajem)

      ISABEL — Voltas sozinho? Onde estão os lordes?
      PAJEM — Milorde de Leicester e o tesoureiro da câmara...
      ISABEL — (com tremenda impaciência) — Onde estão?
      PAJEM — Não estão em Londres.
      ISABEL — Não estão em Londres? Onde estão então?
      PAJEM — Ninguém o soube dizer. Ao raiar do dia ambos sairam rápida e misteriosamente da cidade.
      ISABEL (vivamente) — Sou rainha da Inglaterra (Tomada de violenta agitação caminha de um lado para o outro). Vai!... Chama. Não! Não saias. Ela já morreu! Agora posso viver em sossego. Porque é que estou tremendo? Porque é que sinto esta cruel angústia? O túmulo cobre o meu temor e quem dirá que fui eu que o fiz? Não faltarão lágrimas para chorar a que morreu. (Ao pajem) Ainda estás aqui? Chama o meu secretário. Davidson! que ele venha imediatamente... Mandem chamar o conde de Shrewsbury também. Ah! aí vem ele. (O pajem sai.)



Cena XIII

(Isabel e o conde de Shrewsbury).

      ISABEL — Benvindo seja, nobre lorde! Que notícias me traz? Certamente nada deve ter havido de importante, já que vem tão tarde.
      SHREWSBURY — Nobre rainha, interessado pela vossa maior glória, vi-me obrigado a ir hoje à Torre onde se acham presos Kurl e Nau, secretários da Stuart, pois precisava pôr à prova mais uma vez a verdade do seu testemunho. A principio o governador proibiu-me que visse os prisioneiros, todavia à força de ameaças consegui vê-los. Deus misericordioso! Com que cena os meus olhos depararam! Com os cabelos revoltos e o olhar alucinado de um homem perseguido pela loucura, foi assim que eu vi o escocês Kurl estendido no seu catre. Logo que me reconheceu, o desgraçado arrojou-se aos meus pés, abraçou-me os joelhos soltando gemidos de dor, estorcendo-se como uma serpente, tomado pelo desespero, implorando-me, suplicando-me que lhe dissesse a sorte que tivera a sua rainha porquanto chegara aos cárceres da Torre o eco de que ela fora condenada à morte. Quando lhe contei toda a verdade, ajuntando que fora o seu testemunho que a conduzira ao patíbulo, atirou-se como um alucinado contra o seu companheiro, jogou-o ao chão com força brutal dos doidos, com o fito de estrangulá-lo. E foi com dificuldade que conseguimos arrancar o pobre homem das suas garras. Depois, a ira virou-se contra si próprio; entrou a dar tremendos socos no peito e invocando, em meio das maldições que proferia, todos os diabos do inferno. Prestara um juramento falso. As fatídicas cartas dirigidas a Babington, que jurara serem verdadeiras, são falsas, já que escrevera palavras diversas das que a rainha lhe ditara. O miserável Nau fora quem o induzira a assim fazer. Correu depois à janela, rebentou-a com uma fúria devastadora e pôs-se a berrar de tal maneira que o povo começou a se aglomerar na rua. Dizia que fora o secretário de Maria, o bandido que a havia injustamente acusado, que ele era uma testemunha falsa e um maldito.
      ISABEL — O senhor mesmo disse que ele estava alucinado. As palavras de um doido furioso não podem provar nada.
      SHREWSBURY — Mas esse próprio alucinamento o prova. Oh, rainha ilustre, consenti que vos implore que não precipiteis os acontecimentos, que ordeneis que novas inquirições sejam processadas.
      ISABEL — Mandarei fazê-las já que é do seu desejo, mas não porque acredite que os meus lordes tenham julgado a causa parcialmente. Para tranqüilizá-lo, novas inquirições serão feitas. Felizmente ainda está em tempo. Sôbre a nossa honra real não deve pairar a menor sombra de qualquer dúvida.



Cena XXV

(Os mesmos e Davidson).

      ISABEL — Onde está a sentença que eu lhe entreguei ontem?
      DAVIDSON (demonstrando a maior estupefação) — A sentença?!...
      ISABEL — Sim, a sentença que lhe dei ontem para guardar.
      DAVIDSON — Para guardar?
      ISABEL — O povo, amotinado, forçou-me a assiná-la. Tive de satisfazer-lhe a vontade. Todavia ardilosamente entreguei-lhe a sentença afim de ganhar tempo. Dê-ma agora!
      SHREWSBURY — Dê-lha, cavalheiro, as coisas mudaram muito e novas investigações vão ser procedidas com urgência.
      ISABEL — Não é preciso pensar tanto. Devolva esse papel.
      DAVIDSON (desesperado) — Caí num abismo, sou um homem liquidado!
      ISABEL (interrompendo-o vivamente) — Não quero pensar que...
      DAVIDSON — Estou perdido! Não a tenho comigo...
      ISABEL — Como?! Não a tem?!
      SHREWSBURY — Deus misericordioso!
      DAVIDSON — Está com Burleigh, e desde ontem.
      ISABEL — Infeliz! Foi dessa forma que me obedeceu? Não lhe ordenei que a guardasse?
      DAVIDSON — Não me ordenastes absolutamente isso, senhora.
      ISABEL — Ousa me desmentir, miserável! Quando foi que lhe disse que entregasse a sentença a Burleigh?
      DAVIDSON — Com palavras claras e diretas, não o fizestes, porém...
      ISABEL — Vil criatura, interpretar as minhas palavras? Atreveste-te a lhes dar um sentido fatal e sangrento? Pobre de sua alma se essa ação, de sua inteira iniciativa, resultou nalguma desgraça. Cairá a sua cabeça, se tal acontecer!... Veja, conde de Shrewsbury, como se abusa do meu nome!
      SHREWSBURY — Estou vendo... oh, meu Deus!
      ISABEL — Que me diz?
      SHREWSBURY — Se sob a sua responsabilidade e sem contar conosco, Davidson agiu assim, deve comparecer diante do tribunal dos lordes para que seja julgado por uma ação que entregou o vosso augusto nome à execração de todos os séculos.



Cena XV

(Os mesmos, Burleigh e depois Kent).

      BURLEIGH (ajoelhando-se aos pés da rainha) — Dilatados anos viva a minha real senhora e queira Deus que todos os inimigos de nossa ilha acabem como acabou essa Stuart! (Shrewsbury cobre o rosto com a mão. Davidson torce as mãos desesperadamente).
      ISABEL — Fale, lorde Burleigh. Foi de mim que recebeu a ordem de execução?
      BURLEIGH — Não, minha amada soberana. Recebi-a de Davidson
      ISABEL — E Davidson entregou-a em meu nome?
      BURLEIGH — Não, não o fez assim...
      ISABEL — E mandou executá-la ignorando qual fosse a minha vontade? Era justa a sentença, o mundo não pode em absoluto nos censurar, não lhes competia, porém, anteciparem-se à magnitude do meu coração. Portanto, desterro-o da nossa presença. (A Davidson). Será punido pelo crime de haver exorbitado das suas funções e poderes e por ter extraviado um depósito sagrado que lhe havia sido confiado. Levem-no para a Torre e a minha vontade é que lhe seja imposta a pena capital! Meu nobre Talbot, é o único dos meus conselheiros que sempre considerei justo. De hoje em diante será meu guia e meu amigo...
      SHREWSBURY — Não exileis os vossos mais fiéis amigos e servidores, não envieis para uma prisão os que agiram por vós e por vós também se calam. Quanto a mim, rainha ilustre, deposito nas vossas mãos o selo que por doze anos me foi confiado.
      ISABEL (assombrada) — Não, Shrewsbury, não me abandonará! Agora, não...
      SHREWSBURY — Perdoai-me, senhora, mas já sou muito velho e esta mão honrada não tem mais força para selar os novos atos.
      ISABEL — E quer me abandonar o homem que me salvou a vida?
      SHREWSBURY — Bem pouco foi o que fiz, senhora. Não me foi possível salvar a mais nobre parte de vós... Vivei, rainha venturosa! Está morta a vossa rival. De agora em diante nada tendes mais a temer, não precisareis respeitar coisa alguma. (Sai).
      ISABEL (para o conde de Kent, que entra) — Mande chamar o conde de Leicester.
      KENT — Lorde Leicester roga-vos que o perdoeis, mas a esta hora já embarcou para a França (Isabel tenta aparentar calma e indiferença).


(CAI O PANO)


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