Um breve para estudo de A Serpente




A Serpente Nelson Rodrigues
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Nelson Rodrigues (1912-1980)
A Serpente
Peça em um ato (1978)
Roteiro para apresentação em 15 minutos com elenco reduzido a
três participantes para apresentação em oficina no Espaço dos Satyros.
08 de maio de 2004
Personagens
DÉCIO .................................... Helder da Rocha
LÍGIA........................................Janaína Araújo
GUIDA.......................................Denise Janoski
PAULO...................................................Helder
NARRADOR 1 .......................................Janaína
NARRADOR 2.........................................Helder
NARRADOR 3.........................................DeniseA Serpente Nelson Rodrigues
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A Serpente: síntese e símbolos
"Foi o próprio Deus que, ao fim da sua jornada de trabalho,
estendeu-se em forma de serpente sob a Árvore do
Conhecimento: assim descansou de ser Deus. Havia feito
tudo demasiado bonito. O Diabo é apenas a ociosidade de
Deus a cada sete dias."
(Friedrich W.  Nietzsche, “Ecce Homo”)
 serpente é uma peça em um ato cujo tema é o triângulo amoroso formado por duas
irmãs e o marido de uma delas. Destaca-se a cumplicidade obsessiva dos
relacionamentos, o ciúme, a inveja e o medo de rejeição, do abandono e da solidão,
que significam a morte.
No início, dois casais vivem no mesmo apartamento, em quartos separados por uma
parede. As mulheres são irmãs, cúmplices e muito íntimas. Casaram-se no mesmo dia, na
mesma igreja e com o mesmo padre.
A peça tem início com a separação de um dos casais, concretizado com a partida violenta
de Décio, que nunca conseguira satisfazer sexualmente a mulher, Lígia. A tristeza de Lígia é
intensa e ela deseja se matar, pois mesmo após um ano de casada ainda era virgem e infeliz.
Mas a semente do conflito que move a história começa quando a sua irmã Guida propõe
emprestar-lhe o próprio marido, Paulo, por uma noite. Este fato cria o triângulo e inicia a
tensão entre as irmãs, que passam a disputar o amor do mesmo homem. Com a tensão
crescente, aumenta o risco da obsessão e ciúme transformarem-se em morte. Paulo mantém
as duas sob seu controle até o momento em que a situação torna-se insustentável e o triângulo
rompe-se de forma trágica.
Apesar de classificada por Sábato Magaldi como uma tragédia carioca, A Serpente
também esconde um fundo mítico, mais explícito no seu título1
. Guida age como a serpente do
Éden ao tentar a irmã com a promessa de uma felicidade que ela nunca teve: o prazer do sexo.
Como a serpente, ela estimula a desobediência de Lígia, neste caso, ao mandamento que
proíbe o adultério.
AA Serpente Nelson Rodrigues
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A participação de Décio na história é secundária, mas é ele quem dá início ao conflito e
depois volta para, indiretamente, aumentar o ciúme de Guida e intensificar a ligação entre
Paulo e Lígia. Ele descobre o sexo sem a participação de Guida ou Lígia, mas com a lavadeira:
a crioula das ventas triunfais. Mas é apenas sexo e nada mais. Eufórico, ele tenta voltar para
Lígia, mas a Lígia de antigamente não mais existe e ele é expulso por Lígia e Paulo.
Ao aceitar a proposta de Guida, e concretizar o ato, Lígia e Paulo comeram do fruto da
árvore do conhecimento do bem e do mal, simbolizada pela maçã. Lígia encontra o prazer
nunca antes sentido e deixa o paraíso da inocência, e Paulo deixa o paraíso da fidelidade
matrimonial e conhece uma amante muito mais fogosa que a sua esposa. Dali pra frente os
dois nunca mais serão os mesmos, pois têm novo conhecimento da vida, e da morte.
A expulsão simbólica do paraíso significa a morte da inocência de Lígia. Lígia diz: "O que
senti foi tudo - a vida e a morte. Agora posso viver e posso morrer." Para Guida, assim como
para a serpente do Éden, a punição é muito pior. Significa a queda. Significa habitar no
inferno. Para Guida, o inferno precede a queda. Ela não é mais a esposa. Ela mesma sabe
disso. Em certo momento diz a Paulo: “Estou esperando a tua mulher, a mulher que eu deixei
de ser. (...) Sabe o que eu sou? Sou a tua cunhada.”
Guida não pode mais existir. A maldição da serpente do Éden é ser temida por todas as
mulheres e ser morta pelos homens
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. Lígia ainda teme Guida. Mas é Paulo que causa a sua
queda e morte.
                                                                                                                                                                             
1
 Esta associação foi sugerida por Francisco C. da Cunha em seu livro “Nelson Rodrigues Evangelista”, 2000.
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 Genesis 3:15 “E haverá inimizade entre ti [a serpente] e a mulher (...) Ele [o homem] irá feri-la na cabeça e tu
irás feri-lo no calcanhar” (The New Oxford Annotated Bible, NRSV, 1992)A Serpente Nelson Rodrigues
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A Serpente: narrativa com encenações
NARRADOR 1 – É a separação. Décio está fechando a mala. Lígia pergunta se ele não vai
falar com o sogro, ao que ele responde que é inútil falar com tal múmia, Inicia-se uma
discussão. Lígia lembra que estão casados há um ano e meio e que, neste período, ele só
a procurou três vezes e, ainda assim, não conseguiu realizar o ato – o famoso ato!
Décio irrita-se com a ironia, por ter sua virilidade ridicularizada pela mulher. Tornase violento. Bate em Lígia a humilha.
NARRADOR 2 – E então entra Guida, a irmã de Lígia, que aparenta estar surpresa com a
separação. Lígia chora de raiva. Chama Décio de canalha o tempo todo. Acha estranho
que Guida nunca desconfiasse que o casamento deles estava falido. Os dois casais
moram no mesmo apartamento e em quartos vizinhos. Lígia ouvia os gemidos de
Paulo e Guida e imaginava que, ao não ouvir os dela com Décio, a irmã pelo menos
desconfiasse que algo ia mal (o pai, coitado, tinha perdão, pois era mesmo uma
múmia, com todos os achaques de uma múmia). Lígia confessa à sua irmã que Décio
nunca foi homem com ela. E depois conta a humilhação e violência que sofreu nos
braços de Décio no momento da separação. Guida a consola, declarando sua lealdade,
que nunca deixaria a irmã sozinha. Lígia deseja se matar. Fala em se atirar do décimo
segundo andar. Guida declara a sua lealdade à irmã, dizendo:
GUIDA - Se você se atirar, eu me atiro.
NARRADOR 2 – Mas Lígia duvida da sinceridade da irmã. Diz que ela jamais abandonaria a
vida pois tem o marido que é muito mais importante que a morte. Então, ela corre e
senta-se sobre o parapeito da janela, no décimo segundo andar.
GUIDA – Não, Lígia! Volta!
LÍGIA – Não dê um passo que eu me atiro. (Elevando a voz) Você está pensando: - “Essa fracassada
não se mata”. Você se julga a mulher mais feliz do mundo e a mim a mais infeliz. Tão infeliz,
que tive de me deflorar com um lápis. Quantas vezes, te vi entrando no quarto com teu
marido.
GUIDA (veemente) – Não precisa contar o que faço com o meu marido.
LÍGIA – Sai do meu quarto, anda! Ou fazes questão de me ver atirando daqui? Queres ver, é isso?A Serpente Nelson Rodrigues
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GUIDA – Lígia, faça o que você quiser, mas escuta um minuto. Você quer ser feliz como eu, quer? Por
uma noite? Olhe para mim, Lígia. Quer ser feliz por uma noite?
LÍGIA – Você não sabe o que diz.
GUIDA – Te dou uma noite, minha noite. E você nunca mais, nunca mais terá vontade de morrer.
LÍGIA – É impossível que. Fale claro. O que é que você está querendo dizer?
GUIDA – É o que você está pensando, sim.
LÍGIA (atônita) – Paulo?
NARRADOR 2 – Lígia sai da janela. Vem conversar com Guida.
LÍGIA – Olha pra mim. Você me está oferecendo uma noite com Paulo? Sexo, como você mesma faz
com ele? Por uma noite eu seria mulher de Paulo? É isso?
GUIDA – É isso.
LÍGIA – Mas nunca houve entre nós nada que. Como uma noite, se ele não me olhou, não me sorriu,
não reteve a minha mão? E, de repente, acontece tudo entre nós? E ele quer, sem amor, quer?
GUIDA – O homem deseja sem amor, a mulher deseja sem amar.
NARRADOR 2 – Guida acerta com Paulo, e Lígia vai ao seu encontro. Ao entrar no quarto de
Paulo, Lígia hesita. Não tem mais certeza se aquilo foi uma boa idéia. Acha que ir para
a cama com o cunhado é algo incestuoso; pior que ir para a cama com irmão. Mas
Paulo não aceita que ela desista. Pede um beijo. Ela hesita. Ele a domina. Introduz a
língua na sua orelha. Ela resiste. Grita. Chama por Guida. Mas seu esforço é em vão.
Os dois fazem um sexo selvagem e Lígia grita durante toda a duração do ato.
Enquanto isto, Guida, no quarto ao lago, enlouquece, revira-se, esfrega-se e tem seu
orgasmo sozinha.
NARRADOR 2 – Depois da tempestade nada é mais como era antes. Lígia encontra Guida mas
não consegue falar; não consegue pensar. Está espantada, como se estivesse acabado
de nascer. Tem vergonha de Guida. Inicialmente não quer falar, mas depois reconhece
e elogia a irmã por sua bondade. Guida aparenta se arrepender do que aconteceu.
Talvez  não esperasse gritos tão intensos da irmã. Tem inveja. Sabe que há segredos
entre a irmã e Paulo. Sente-se inferior.
GUIDA – Agora, responde: - você se arrependeu?A Serpente Nelson Rodrigues
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LÍGIA  (ressentida) – Sim!
GUIDA – Sua mentirosa.
LÍGIA (em súbita euforia) – Quer saber, quer? Sou mentirosa sim. O que eu senti foi tudo – a
vida e a morte. Agora posso viver e posso morrer.
NARRADOR 2 – Lígia abraça-se à irmã. Deixa-se escorregar ao longo de seu corpo e beija-lhe
os pés. Ao encontrar-se com Paulo, insegura, implora a ele que nunca mais falem no
assunto. Guida está confusa. Não diz mais coisa com coisa. Age como se estivesse
arrependida, mas depois afirma que tudo foi certo. Se martiriza. Acha-se vulgar.
Elogia a bondade do marido mas num acesso de ciúmes, grita com ele. Proíbe-o de
dizer sequer um bom dia que seja para a irmã. Diz que Lígia vai morrer. Desespera-se
quando o marido, calmo, diz que não. Depois, chorando, contradiz-se: “se a quisesse
morta não faria o que fiz”. Proíbe-o de se encontrar com a irmã fora do apartamento.
NARRADOR 1 - Enquanto isso, em outro quadro vemos Décio, triunfante por ter redescoberto
sua virilidade. Ele, que casara-se virgem e foi menino e adolescente sem nunca ter
conhecido sequer o prazer solitário, nunca soube o que fazer. Passou todo o casamento
sem nunca ter tesão algum pela mulher, até que viu, um dia, a nova lavadeira: seus
peitos, sua barriga, suas nádegas e suas ventas triunfais. Deu um dinheiro para ela,
mandou que ela fosse embora, que telefonasse para ele e não viesse mais trabalhar. E
nesse dia, aconteceu o milagre. Ele proclama:
DÉCIO – Ouçam, ouçam! Eu sou outro. Dei, dei nessa crioula, quatro sem tirar.
NARRADOR 3 - E então, eis que um dia ele aparece no quarto de Lígia como se fosse um
assaltante. Começa tentando pedir desculpas. Quer a reconciliação. Lígia não acredita
que ele tenha tido a coragem. Chama-o de canalha. Décio não desiste. Conta o milagre
que lhe ocorreu. Tenta dominar a mulher. Lígia grita e chama Paulo. Lígia atira-se nos
braços de Paulo. Décio é expulso da casa.
LÍGIA – Ele quis me violentar!
GUIDA – Mas violentar como? Você não disse que vocês nunca foram mulher e homem, por
culpa dele?
NARRADOR 2 - Guida está confusa. Como é que Décio poderia violentar Lígia se ele era
impotente. Ela desconfia que a história da separação não foi bem contada. Guida quer A Serpente Nelson Rodrigues
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falar com Lígia e Paulo deixa as duas sozinhas. Guida acusa Lígia de tentar roubar-lhe
o marido.
NARRADOR 1 – Uma semana depois, no quarto, Paulo e Guida discutem. Reclama que Paulo
não tem mais a procurado sexualmente. Guida se afasta. Com retórica e argumentos
cínicos mas convincentes, ele finalmente consegue convencer a mulher de sua
sinceridade, e Guida promete não vigiá-los mais. Permitirá que ele e Lígia saiam de
casa quantas vezes quiserem.
NARRADOR 3– Guida havia mudado. Passou a tratar Lígia e Paulo cordialmente e até
insistiu que os dois saíssem juntos e se encontrassem no exterior. Paulo e Lígia, então,
encontram-se. Lígia ainda teme Guida. Pergunta o que Paulo faria se flagrasse Guida
tentando matá-la. Mataria a irmã antes? Lígia pensa na morte. Sonha com Guida
matando Paulo e ela; atirando-os do décimo segundo andar. Teme que Paulo a deixe.
O que mais teme é morrer sozinha. Não deixa Paulo ir embora. Segura-o quando ele
diz que é hora de partir. Beijam-se, começam a agarrar-se em pé. Amam-se no mato.
NARRADOR 2 – Paulo chega em casa. Guida está vestida na cama. Senta-se. Paulo beija-a na
testa. Guida protesta, mas depois não aceita o beijo na boca pois teve que pedir.
Encontra-se com Lígia e arranca dela a confissão que os dois ficaram juntos. Discute
com ela na frente de Paulo.
NARRADOR 3 – Paulo e Guida discutem na cama. Ele nega que tenha ficado com Lígia e os
dois beijam-se loucamente . Mas Guida logo desprende-se. Sente o gosto de sexo na
boca do marido. Desespera-se. Certa da mentira do marido, decide que os dois não
dormirão mais na mesma cama. Ameaça ir embora. Paulo corre para o peitoril da
janela, e solta as mãos.
GUIDA – Não faça isto, Paulo.
PAULO – Vem cá. Fica atrás de mim.
(Guida obedece.)
PAULO – Você disse que me mataria? Basta que me empurre com as duas mãos. Eu cairei e em
três segundos estarei morto.
(Guida falando alto para Lígia ouvir)
GUIDA – Eu não mataria você, nunca. Lígia, sim, Lígia eu mataria.A Serpente Nelson Rodrigues
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PAULO – Senta comigo.
NARRADOR 1 – Ele ajuda Guida a sentar-se.
PAULO – Eu te seguro. E agora? Tem medo?
GUIDA – Contigo não tenho medo de nada.
PAULO (abraçado à mulher) – Hoje, vou te amar como nunca. Quero ver você gritar como
Lígia.
GUIDA – Outra vez ela, sempre ela. Será assim, sempre assim, até a minha morte. Morrerei
ouvindo você dizer o nome de Lígia.
PAULO – Se fosse ela, não você. Ela sentada aqui, abraçada por mim. Eu deveria empurrar?
GUIDA – Devia empurrar.
PAULO – E não te espantaria a morte de tua irmã?
GUIDA (apavorada) – Me tira daqui. Tenho medo.
NARRADOR 2 – Neste momento, Paulo solta Guida e a empurra. Guida grita. Ao ouvir os
gritos da irmã, Lígia corre para o quarto. Bate na porta. Ela quer entrar. Paulo sai da
janela e abre a porta. Ela entra.)
LÍGIA (desatinada) – O que foi isto?
PAULO – Guida caiu.
LÍGIA – Foi você.
PAULO – Ou pensava que fosse quem?
LÍGIA – Nunca pensei que.
PAULO (desesperado)  – Desce comigo. Temos que dizer que foi loucura – um acesso de
loucura.
LÍGIA (frenética) – Mas eu tenho medo de não chorar!
PAULO – Não grita, pelo amor de Deus, não grita! Pensa na tua culpa e chora!
LÍGIA  (aos soluços) – Eu sei que não vou chorar!
(Paulo tenta segurar Lídia, que se desprende feroz)
LÍGIA – Não me toque! Eu não sou a culpada! Foi você que matou! Assassino!
LÍGIA – O assassino está aqui! É o meu cunhado! Assassino! Assassino! Assassino!

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