Diário de Bordo IV - O Incidente em Capão da Canoa

Palco Vazio

                    Ainda na marcha dos mortos sobre Capão da Canoa, enquanto o público ia abrindo o corredor humano para dar passagem aos sete atores do Máschara, eu ví o palco. E o palco era frio, nele não subiriam os mortos de O Incidente. Nele não estaría o Barcelona cabeludo de botas marrons interpretado por Rafael Aranha; Nele não estaria o Pudim de Cachaça de Barba preta cerrada e dedos atrofiados de Cristiano Albuquerque; Nem o coronel baixinho com timbre quase certanejo criado por Ezequiel Mattos; ou a Erotildes de longos cabelos soltos composta por Lauanda Varone; a interpretação magistral de Cícero por Alexandre Dill; ou ainda as mãos de Cléber Lorenzoni dedilhando um piano imaginário pelo ar em Menandro Olinda.
                    Não, definitivamente eles nunca mais etariam alí (eis uma colocação dramática digna do teatro).
Que a vida é passageira, que as coisas acontecem depressa demais, e que nada dura para sempre... Isso eu já havia aprendido. Mas precisei me perguntar o que estava fazendo ali se meus companheiros de jornada haviam me abandonado. Como então dar vida, chocar, causar espanto, se só me restavam Dulce Jorge e Gelton Quadros, e arriscaria dizer apenas a Dona Quitéria de 2005. O Teatro é uma arte que se renova a cada encenação, a cada abertura de cortinas. Mas a renovação não pode perder sua linha objetiva.
Quando um ator substitui um intérprete, precisa compreender muito bem a narrativa em que está embarcando... Precisa saber os objetivos de tal montagem, compreender que faz parte de uma engrenagem que deverá estar afiada. Ou estará apenas fazendo a encenação de uma interpretação e isso cheira a cópia e cópia meus queridos, é um dos fantasmas malévolos do teatro.
                      O público aplaude meu melhor e ovaciona com a mesma admiração meu fracasso...
                      Nesse dia não tenho certeza do que foi aplaudido... Ora eu sei, foi o novo, o diferente, foi a morte, a viceralidade da cena, o medo do desconhecido, a sagacidade de Erico Verissimo, foram mil coisas... Mas o ator em cena precisa correr em busca da certeza única de que o aplauzo vem pela sua performance.
                      O verdadeiro ator é como um profeta que recebe um chamado... E ele levanta e vai, não se sabe ao certo fazer o que, ele procura um motivo, as vezes usa como pretexto seu cachê, as vezes sua carencia que corre em busca do aplauso de uma platéia desconhecida, a admiração pelo trabalho de sua equipe, a praia, a festa, o prazer... Mas afinal por que ele vai?
                       No palco ocorre um frenesí, uma vertigem de emoções e sensações que felizmente alguns jamais sentirão. No palco existe um mundo paralelo, repleto de convenções, de signos, de macetes que somente os atores conhecem, de códigos que passam de um para o outro, de microgestos, de olhares que os interpretes cruzam ali, aos olhos da platéia, mas ele, inebriada pela encenação não percebe... Esses códigos são chamados de "jogo". E não há bola ou tabuleiro mais excitante que tal jogo. É uma disputa, quase sempre honesta, pela atenção da assistência, pela sua emoção, pelo seu apláuso.
                       Naquele palco as 20 horas do dia 31 de março, eu reconheci muito pouco desses códigos. E um deles nem mesmo estava no palco comigo, estava sentado junto ao público. De resto eu ví atores robóticos fechados em sí mesmos, eu ví atores a espera de deixas,  eu ví atores preocupados em acertar coisas que eles nem sequer tinham compreensão,eu ví atores que poderiam depois de tantas tentativas acertar a emoção de uma frase,  eu ví interpretações enfadonhas e arrastadas, eu ví confusão de reações. Eu ví um novo Incidente.  E como eu disse, do outro só restou Dona Quitéria Campolargo.

                                                                                                                A Rainha             
                     

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