O Santo Inquérito
Diaz Gomes
Personagens
Branca Dias
Padre Bernardo
Augusto Coutinho
Simão Dias
Visitador do Santo Ofício
Notário
Guarda
ÉPOCA — 1750
AÇÃO —
Estado da Paraíba
Primeiro Ato
O palco contêm vários praticáveis, em
diferentes planos. Não constituem propriamente um cenário, mas um dispositivo
para a representação, que é completado por uma rotunda. É total a escuridão no
palco e na platéia. Ouve-se o ruído de soldados marchando. A princípio, dois ou
três, depois quatro, cinco, um pelotão. Soa uma sirene de viatura policial,
cujo volume vai aumentando, juntamente com a marcha, até chegar ao máximo.
Ouvem-se vozes de comando confusas, que também crescem com os outros ruídos até
chegarem a um ponto máximo de saturação, quando cessa tudo, de súbito, e
acendem-se as luzes. As personagens estão todas em cena: Branca, o Padre
Bernardo, Augusto Coutinho, Simão Dias, o Visitador, o Notório e os guardas.
PADRE BERNARDO
Aqui estamos, senhores, para dar
início ao processo. Os que invocam os direitos do homem acabam por negar os
direitos da fé e os direitos de Deus, esquecendo-se de que aqueles que trazem
em si a verdade têm o dever sagrado de estendê-la a todos, eliminando os que
querem subvertê-la, pois quem tem o direito de mandar tem também o direito de
punir. É muito fácil apresentar esta moça como um anjo de candura e a nós como
bestas sanguinárias. Nós que tudo fizemos para salvá-la, para arrancar o
Demônio de seu corpo. E se não conseguimos, se ela não quis separar-se dele, de
Satanás, temos ou não o direito de castigá-la? Devemos deixar que continue a
propagar heresias, perturbando a ordem pública e semeando os germes da
anarquia, minando os alicerces da civilização que construímos, a civilização
cristã? Não vamos esquecer que, se as heresias triunfassem, seríamos todos
varridos! Todos! Eles não teriam conosco a piedade que reclamam de nós! E é a
piedade que nos move a abrir este inquérito contra ela e a indiciá-la.
Apresentaremos inúmeras provas que temos contra a acusada. Mas uma é evidente,
está à vista de todos: ela está nua!
BRANCA
(Desce até o primeiro plano.) Não é
verdade!
PADRE BERNARDO Desavergonhadamente nua!
BRANCA
Vejam, senhores, vejam que não é verdade! Trago as minhas
roupas, como todo o mundo. Ele é que não as enxerga!
Padre sai, horrorizado.
BRANCA
Meu Deus, que hei de fazer para que vejam que estou
vestida? É verdade que uma vez — numa noite de muito calor — eu fui banharme no
rio... e estava nua. Mas foi uma vez. Uma vez somente e ninguém viu, nem mesmo
as guriatãs que dormiam no alto dos jeribás! Será por isso que eles dizem que
eu ofendi gravemente a Deus? Ora, o senhor Deus e os senhores santos têm mais o
que fazer que espiar moças tomando banho altas horas da noite. Não, não é só
por isso que eles me perseguem e me torturam. Eu não entendo... Eles não
dizem... só acusam, acusam! E fazem perguntas, tantas perguntas!
VISITADOR Come carne em dias de preceito?
BRANCA
Não...
VISITADOR Mata galinhas com o cutelo?
BRANCA
Não, torcendo o pescoço.
VISITADOR
Come toicinho, lebre, coelho, polvo,
arraia, aves afogadas?
BRANCA Como...
VISITADOR Toma banho às
sextas-feiras?
BRANCA
Todos os dias...
VISITADOR E se enfeita?
BRANCA Também...
VISITADOR Quanto tempo leva
enfeitando-se?
NOTÁRIO Quanto tempo?
TODOS Quanto tempo? Quanto tempo?
Saem todos, exceto Branca.
BRANCA
Não sei, não sei, não sei... Oh, a minha cabeça... Por que
me fazem todas essas perguntas, por que me torturam? Eu sou uma boa moça,
cristã, temente a Deus. Meu pai me ensinou a doutrina e eu procuro segui-la.
Mas acho que isso não é o mais importante. O mais importante é que eu sinto a
presença de Deus em todas as coisas que me dão prazer. No vento que me fustiga
os cabelos, quando ando a cavalo. Na água do rio, que me acaricia o corpo,
quando vou me banhar. No corpo de Augusto, quando roça no meu, como sem querer.
Ou num bom prato de carne-seca, bem apimentado, com muita farofa, desses que
fazem a gente chorar de gosto. Pois Deus está em tudo isso. E amar a Deus é
amar as coisas que Ele fez para o nosso prazer. É verdade que Deus também fez
coisas para o nosso sofrimento. Mas foi para que também o temêssemos e
aprendêssemos a dar valor às coisas boas. Deus deve passar muito mais tempo na
minha roça, entre as minhas cabras e o canavial batido pelo sol e pelo vento,
do que nos corredores sombrios do Colégio dos Jesuítas. Deus deve estar onde há
mais claridade, penso eu. E deve gostar de ver as criaturas livres como Ele as
fez, usando e gozando essa liberdade, porque foi assim que nasceram e assim
devem viver. Tudo isso que estou lhes dizendo, é na esperança de que vocês
entendam... Porque eles, eles não entendem... Vão dizer que sou uma herege e
que estou possuída pelo Demônio. E isso não é verdade! Não acreditem! Se o
Demônio estivesse em meu corpo, não teria deixado que eu me atirasse ao rio
para salvar Padre Bernardo, quando a canoa virou com ele!...
PADRE BERNARDO
(Fora de cena, gritando.) Socorro! Aqui
del rei!
Branca sai correndo. Volta, amparando
Padre Bernardo, que caminha com dificuldade, quase desfalecido. Ela o traz até
o primeiro plano e aí o deita, de costas. Debruça-se sobre ele e põe-se a jazer
exercícios, movimentando seus braços e pernas, como se costuma jazer com os
afogados. Vendo que ele não se reanima, cola os lábios na sua boca, aspirando e
expirando, para levar o ar aos seus pulmões.
PADRE BERNARDO
(De olhos ainda cerrados, balbucia.) Jesus...
Jesus, Maria, José...
Ele se vai
reanimando aos poucos. Abre os olhos e vê Branca, de joelhos, a seu lado.
PADRE BERNARDO
Obrigado, Senhor, obrigado por terdes atendido ao meu apelo
desesperado... Não sou merecedor de tanta misericórdia. (Ele beija repetidas
vezes um crucifixo que traz na mão.) Alma de Cristo, santificai-me; Corpo de
Cristo, salvai-me; Sangue de Cristo, inebriaime...
BRANCA
Achava melhor o senhor deixar pra
rezar depois. Agora era bom que virasse de bruços e baixasse a cabeça pra
deixar sair toda essa água que engoliu.
Ajudado por ela, ele vira de bruços e
baixa a cabeça. Ela pressiona sua nuca, para fazer sair a água.
BRANCA
Se eu não chego a tempo, o senhor bebia
todo o rio Paraíba...
PADRE BERNARDO
(Senta-se, meio atordoado ainda.) A minha
canoa?...
BRANCA
A canoa? Seguiu emborcada, rio
abaixo. Tinha alguma coisa de valor?
PADRE BERNARDO
Tinha, o cofre com as esmolas...
BRANCA Muito dinheiro?
PADRE BERNARDO
Bastante.
BRANCA
Agora deve estar no fundo do rio.
PADRE BERNARDO
Só consegui agarrar o crucifixo;
tinha de escolher, uma coisa ou outra...
BRANCA
Foi uma pena. Com o dinheiro, o
senhor talvez comprasse dois crucifixos. E quem sabe ainda sobrava.
PADRE BERNARDO
Não diga isso, filha!
BRANCA Por quê?
PADRE BERNARDO
Porque é o Cristo... Não é coisa que se compre.
Tivesse eu escolhido o cofre e certamente a esta hora estaria no fundo do rio
com ele. Foi Jesus quem me salvou.
BRANCA (Timidamente.) Eu ajudei um pouco...
PADRE BERNARDO
Eu sei. Você foi o instrumento.
Não estou sendo ingrato. Sei que arriscou a vida para me salvar.
BRANCA
Não foi tanto assim. O rio aqui
não é muito fundo e a correnteza não é lá tão forte. Quando a gente está
acostumada...
PADRE BERNARDO Acostumada?...
BRANCA
Venho banhar-me aqui todos os dias. Sei nadar e salvar
alguém que está se afogando. É só puxar pelos cabelos. Com o senhor foi um
pouco difícil por causa da tonsura. Tive de puxar pela batina. Me cansei um
pouco, mas estou contente comigo mesma. Hoje vai ser um dia muito feliz para
mim.
PADRE BERNARDO
Deus lhe conserve essa alegria e
lhe faça todos os dias praticar uma boa ação, como a de hoje.
BRANCA
Não é fácil. Acho que as boas ações só valem quando
não são calculadas. E Deus não deve levar em conta aqueles que praticam o bem
só com a intenção de agradar-Lhe. Estou ou não estou certa?
PADRE BERNARDO
Bem...
BRANCA
Não foi querendo agradar a Deus que eu me atirei ao rio
para salválo. Foi porque isso me deixaria satisfeita comigo mesma. Porque era
um gesto de amor ao meu semelhante. E é no amor que a gente se encontra com
Deus. No amor, no prazer e na alegria de viver. (Ela nota que o Padre se mostra
um pouco perturbado com as suas palavras.) Estou dizendo alguma tolice?
PADRE
No fundo, talvez não. Mas a sua
maneira de falar... Quem é o seu confessor?
BRANCA
Não tenho confessor. Vivo aqui, no Engenho Velho,
que é de meu pai, Simão Dias, que o senhor deve conhecer de nome. Custo a ir à
cidade.
PADRE
Não vai à missa, aos domingos, ao menos?
BRANCA
Nem todos os domingos. Mas não pense que porque não
vou diariamente à igreja não estou com Deus todos os dias. Faço sozinha as
minhas orações, rezo todas as noites antes de dormir e nunca me esqueço de
agradecer a Deus tudo o que recebo Dele.
PADRE
Gostaria de discutir com você
esses assuntos. Não hoje, porque estamos ambos molhados, precisamos trocar de
roupa.
BRANCA
Vamos lá em casa, o senhor tira a batina e eu ponho
pra secar. Posso lhe arranjar uma roupa de meu pai, enquanto o senhor espera.
PADRE
(A proposta parece assumir para ele uns
aspectos de tentação.) Não...
isso não é direito...
BRANCA Por que não?
PADRE
Já lhe dei muito trabalho por hoje. E preciso voltar o
quanto antes ao colégio.
BRANCA
Que colégio?
PADRE
O Colégio dos Jesuítas. Sou o Padre
Bernardo.
BRANCA Lá aceitam moças?
PADRE Não... só meninos, rapazes.
BRANCA
Por que nunca
aceitam moças nos colégios?
PADRE Porque moças não precisam estudar.
BRANCA Nem mesmo ler e escrever?
PADRE
Isso se aprende em casa, quando se quer e
os pais consentem.
BRANCA
(Com certo orgulho.) Eu aprendi.
Sei ler e escrever. E Augusto diz que faço ambas as coisas melhor do que
qualquer escrivão de ofício.
PADRE Quem é Augusto?
BRANCA
Meu noivo. Foi ele quem me
ensinou. Mas foi preciso que eu insistisse muito e quase brigasse com meu pai. É
tão bom.
PADRE
Ler?
BRANCA
Sim. Sabe as coisas que mais me
divertem? Ler estórias e acompanhar procissão de formigas. (O Padre ri.) Sério.
Tanto nos livros como nas formigas a gente descobre o mundo. (Ri.) Quando eu
era menina, conhecia todos os formigueiros do engenho. O capataz botava veneno
na boca dos buracos e eu saía de noite, de panela em panela, limpando tudo.
Depois ia dormir satisfeita por ter salvo milhares de vidas.
O Padre espirra.
BRANCA
Oh, mas o senhor com essa roupa
molhada no corpo e eu aqui contando estórias. O senhor me desculpe...
PADRE
Não tenho de que desculpá-la, tenho que lhe
agradecer, isto sim. Gostaria muito de continuar a ouvir as suas estórias.
Todas, todas as estórias que você tiver para me contar.
BRANCA
Pois venha, venha nos visitar lá no
engenho. Eu me chamo Branca.
Ela beija a mão que ele lhe estende.
PADRE
Branca... você é um dos tesouros do
Senhor. Preciso cuidar de você.
(Sai.)
BRANCA
(Acompanha a saída do Padre, envaidecida com as suas
últimas palavras. Depois desce até a boca de cena, dirigindo-se à platéia.) Ele
disse isso, sim. Disse que eu era um dos tesouros do Senhor e precisava cuidar
de mim. Não que eu fosse vaidosa a ponto de acreditar. Mas ele viu que eu era
uma boa moça e o Demônio não era pessoa das minhas relações. Muito menos podia
estar em meu corpo, pois é coisa provada que Satanás quando vê uma cruz corre
mais do que o não-sei-do-que diga. Ele tinha um crucifixo e devia saber disso.
Tanto que voltou, alguns dias depois.
Muda a luz.
AUGUSTO
(Entra.) Voltou?
BRANCA
Esta tarde. Pedi a ele que ficasse mais um pouco pra
conhecer você. Mas ele tinha hora de chegar no colégio. Os jesuítas se submetem
a uma disciplina muito rigorosa. Parecem militares.
AUGUSTO
E ninguém menos militar do que Cristo. Se Ele voltasse à terra
e entrasse para a Companhia de Jesus, ia estranhar muito.
Sentam-se a boa distância um do outro,
como no noivado antigo.
BRANCA
Foi pena, queria que você o conhecesse. É um bom padre. (Ri.)
Se você o visse engolindo água e gritando: “Aqui del rei!” Que Deus me perdoe,
mas depois me deu uma vontade de rir.
AUGUSTO
Padre Bernardo... acho que já ouvi falar
dele.
BRANCA Já?
AUGUSTO
Era padre adjunto do visitador do
Santo Ofício, em Pernambuco, quando Pero da Rocha foi condenado.
BRANCA Condenado, por quê?
AUGUSTO
Por trabalhar aos domingos e negar a virgindade de
Nossa Senhora. Degredo por dois anos, foi a pena; tendo antes que andar por
todo o Recife, com grilhão e baraço, apontado à execração pública.
BRANCA
Agora me lembro. Foi no ano passado. Mas era um herege
perigoso. Atirou de arcabuz no familiar do Santo Ofício, quando o foram
prender.
AUGUSTO
Concordo com o degredo, não concordo com a
humilhação. Pero da Rocha é um herege, mas é um homem. Merecia ser punido,
morto, mas com respeito. Eu estava no Recife e o vi passar, com o baraço no
pescoço, tangido como um cão, entre insultos e pedradas de uma multidão que ria
e incentivava a violência. E nunca esquecerei o seu olhar. Parecia dizer: “Isto
que aqui vai, é um homem. Um ser feito à semelhança de Deus”.
BRANCA
Mas ele devia ter
culpa. Muita culpa. Se Padre Bernardo o julgou. Se o Santo Ofício o condenou.
Padre Bernardo tem o olhar transparente das pessoas de alma limpa. E o Santo
Ofício é misericordioso e justo.
AUGUSTO
Não é o Santo Ofício. É que em nome dele, em nome da
Igreja, do próprio Deus, às vezes cometem-se atos que Ele jamais aprovaria. Em
nome de um Deus-misericórdia, praticam-se vinganças torpes, em nome de um
Deus-amor, pregam-se o ódio e a violência. Os rosários são usados para encobrir
toda sorte de interesses que não são os de Deus, nem da religião.
BRANCA
(Fita-o com admiração e amor.) Você é o mais justo e o
melhor de todos os homens.
AUGUSTO Eu?
BRANCA
Sim, e é por isso que se revolta. Porque é
justo e bom.
AUGUSTO
Sou apenas cristão. E no momento
talvez possa dizer, sem blasfêmia, que sou mais cristão do que Sua Santidade, o
Papa, porque tenho o coração repleto de amor.
Ele toma a mão dela e beija, calorosamente. Branca
cerra os olhos, seu corpo parece invadido por um gozo infinito. Súbito,
estremece, numa convulsão, puxa a mão, rapidamente. Levanta-se.
AUGUSTO
Que foi?
BRANCA
Um calafrio... a morte passou por aqui.
AUGUSTO
Não diga tolices.
BRANCA
Sinto isso toda a vez que você me
beija. Um calafrio de morte... Por que será que o amor dá essa tristeza imensa,
essa vontade de morrer? Deve haver um ponto onde o amor e a morte se confundem,
como as águas do rio e do mar.
Ele roça os lábios nos cabelos dela.
BRANCA Que está fazendo?
AUGUSTO
Gosto de aspirar o perfume dos seus
cabelos.
BRANCA Eles cheiram a quê?
AUGUSTO A capim molhado.
Muda a luz. Branca desce até o primeiro
plano, enquanto Augusto sai.
BRANCA
Capim molhado... vocês não acham
que se eu estivesse possuída do Demônio meus cabelos deviam cheirar a enxofre?
Não é uma coisa lógica, uma prova evidente da minha inocência? Mas eles não
aceitam as coisas lógicas, as coisas simples e naturais. Eles só aceitam o
mistério.
Muda a luz. Padre Bernardo entra e estende
a mão a Branca.
PADRE Venha...
Toma-a pela mão e a leva a percorrer todos os planos
do cenário. Branca passeia os olhos em torno, como se contemplasse as altas
paredes de um templo.
PADRE Então?
BRANCA Não me sinto bem.
PADRE
Não se sente bem na Companhia de Jesus?
BRANCA
Falta sol. Claridade. Deus é luz. Não é?
PADRE
É também recolhimento. Você precisa habituar-se à
sombra, ao silêncio e à solidão. A solidão é necessária para se ouvir a voz de
Deus. Foi na solidão do Sinai que Deus entregou a Moisés as tábuas da Lei. Foi
na solidão da Palestina que João Batista recebeu a plenitude do Espírito Santo.
BRANCA
Foi para isso que me trouxe aqui?
PADRE
Não. Queria que você conhecesse o
colégio. Mas queria, principalmente, conhecê-la mais a fundo.
BRANCA
Já lhe fiz a minha confissão, já me conhece tanto
quanto eu mesma. Mais até, porque lhe disse coisas que a mim mesma não teria
coragem de dizer.
PADRE
Sei e estou tranqüilo agora, porque
poderei protegê-la e salvá-la.
BRANCA Salvar-me?
PADRE
Você me estendeu a mão uma vez e
me salvou a vida; agora é a minha vez de retribuir com o mesmo gesto.
BRANCA Mas eu não estou em perigo, padre.
PADRE
Toda criatura humana está em permanente perigo, Branca.
Lembrese de que Deus nos fez de matéria frágil e deformável. Ele nos moldou em
argila, a mesma argila de que são feitos os cântaros, que sempre um dia se
partem.
BRANCA
(Ri.) Tenho um cântaro que meus avós
trouxeram de Portugal. Durou três gerações e até hoje não se partiu.
PADRE
Naturalmente porque sempre teve mãos cuidadosas a
lidar com ele e a protegê-lo. Queria que você me permitisse protegê-la também,
defendê-la também, porque é uma criatura tão frágil e tão preciosa como esse
cântaro.
BRANCA
Eu lhe agradeço. Mas não acho que mereça tantos
cuidados de sua parte. Sou uma criatura pequenina e fraca, sim, mas não me
sinto cercada de perigos e tentações.
PADRE
A segurança com que você diz isso
já é, em si, um perigo. Prova que você ignora as tentações que a cercam.
BRANCA
Talvez eu não
ignore, mas aceite como uma coisa natural.
PADRE
Pior ainda. Ninguém pode aceitar
o Demônio como companheiro de mesa.
BRANCA
Eu não disse isso.
PADRE
Se aceitamos a sua existência como coisa natural,
acabamos por admiti-lo como parceiro. Porque, não tenha dúvidas, o Diabo está a
todo o momento a nos rondar os passos, a se insinuar e a se infiltrar. E é
principalmente os ingênuos, os sem-maldade, como você, que ele escolhe para
seus agentes. É um erro imaginar que Satanás prefere os maus, os corruptos, os
ateus. Engano. Satanás escolhe os bons, os inocentes, os puros, porque são eles
muito úteis e insuspeitos na propagação de suas idéias. Repare que as grandes
heresias surgem sempre de pessoas que pretendem salvar a humanidade. Por isso,
quando encontro alguém que se julga tão próximo de Deus que pode até senti-lo
em sua própria carne, no ar que respira, ou na água que bebe, temo por essa
criatura. Porque ela deve estar na mira do Diabo.
BRANCA
Se for o meu caso, o Diabo vai
perder tempo e munição. E vai acabar cansando. Garanto.
PADRE
O Diabo não se cansa nunca. E não devemos correr
dele, devemos enfrentá-lo e obrigá-lo a fugir de nós. Para o cristão, Branca,
toda prova, toda tentação é um meio de santificação e a vida na terra só vale
como preço para ganhar o céu.
BRANCA
Mas eu não quero ser santa. Minhas pretensões são
bem mais modestas. Não é pela ambição que o Capeta há de me pegar. Quero viver
uma vida comum, como a de todas as mulheres. Casar com o homem que amo e dar a
ele todos os filhos que puder.
PADRE
(Não como uma acusação, como
notação apenas.) Durante a sua confissão, você pronunciou sete vezes o nome
desse homem.
BRANCA (Surpresa.) O senhor contou?
PADRE
Contei.
BRANCA Bem... eu o amo.
PADRE
Enquanto que o nome de Deus você
pronunciou apenas três vezes.
BRANCA Isso tem importância?
PADRE Não, não tem importância.
BRANCA
Não se deve invocar o nome de Deus em vão.
PADRE
Claro. São apenas números. Mas
nem tudo são números em sua confissão. Os tormentos da carne, por exemplo.
BRANCA Eu não falei em tormentos da carne.
PADRE
Mas confessou que certa noite rolava na
cama sem poder dormir...
BRANCA
Por causa do calor. Meu corpo
queimava.
PADRE
E não podendo mais, levantou-se e
foi mergulhar o corpo no rio, para acalmá-lo. Tirou a roupa e banhou-se nua.
BRANCA
Era noite de lua nova. Nenhum
perigo havia de ser vista. Nem mesmo podia haver alguém acordado àquela hora.
PADRE
Agora responda, Branca,
lembrando-se de que está ainda diante de seu confessor: que sentiu ao mergulhar
o corpo no rio?
BRANCA
Que senti? Bem,
senti-me bem melhor, refrescada.
PADRE Sentiu prazer?
BRANCA
(Hesita um instante.) Senti, senti prazer.
PADRE
E depois, quando voltou para o leito?
BRANCA
Pude, enfim, dormir.
PADRE
Algum pensamento pecaminoso lhe atravessou
a mente nessa noite?
BRANCA Eu... não me lembro.
PADRE
Não pensou em seu noivo nessa noite?
BRANCA
É possível. Eu penso nele todas as noites, todos os dias.
Tudo que me acontece de bom, eu penso em compartilhar com ele, tudo que me
acontece de mau, eu acho que não seria tão mau se ele estivesse a meu lado.
PADRE
E ele nunca a
viu tomar banho no rio? Responda.
BRANCA
Uma vez... sim. (Adivinha os
pensamentos do Padre, reage prontamente.) Mas não foi naquela noite! Juro por
Deus, não foi!
PADRE
(Cerra os olhos, como se procurasse
fugir a todas aquelas visões e mergulhar em si mesmo.) Branca... pode ir. Eu
preciso fazer minhas orações.
Ela vem
descendo, de costas, os olhos fixos nele, que parece em êxtase.
PADRE
(Murmura.) Senhor, ajudai-me. Ela
precisa de mim e eu devo protegêla. Ela tem tão pouca noção das tentações que a
cercam, que será uma presa fácil para o Demônio, se não a guiarmos pelo caminho
que a levará até Vós. Dai-me forças, Senhor, para cumprir essa tarefa. Dai-me
forças e defendei-me também de toda e qualquer tentação. Amém.
Muda a luz. Padre sai. Branca está em
primeiro plano, onde surge Simão.
SIMÃO
(Muito preocupado.) Que é que ele quer,
afinal?
BRANCA
Quer proteger-me, pai.
SIMÃO
E não sai daqui, e faz tantas perguntas.
BRANCA
Ele acredita que eu esteja em perigo. E como o
salvei de morrer afogado, quer também salvar-me. O curioso é que eu antigamente
me sentia tão segura e agora... Mas ele deve ter razão, talvez eu não veja os
perigos que me cercam. Se ele vê, é porque de fato existem, pois ninguém pode
saber das artimanhas do Cão melhor do que um padre, que tem isso por ofício.
SIMÃO
Mas nós nunca precisamos dessa proteção. Eu disse isso a
ele, na última vez. Quem nos protege é Deus, ninguém mais.
Muda a luz. Padre
Bernardo surge. Branca permanece na sombra, durante o diálogo.
PADRE
Isso não é verdade. A Virgem também nos protege e
também os santos da Igreja. Também o papa e os sacerdotes. É preciso cuidado
com essas afirmações, Simão, porque freqüentemente as ouvimos da boca dos
hereges. Que só Deus protege, que só Deus é justo, que só a Ele devemos prestar
conta dos nossos atos.
SIMÃO Eu não disse isso, padre.
PADRE
Acabará dizendo,
se prossegue nesse caminho.
SIMÃO
Meu caminho é o da fé cristã,
caminho abraçado por meus antepassados.
PADRE
Não por todos os seus
antepassados. Seus avós não eram cristãos, seguiam a lei mosaica.
SIMÃO
Sim, mas os meus pais se converteram.
PADRE
Sei disso. Vieram para o Brasil em fins do
século passado.
SIMÃO
Já eram cristãos quando aqui chegaram.
PADRE
Cristãos-novos. Chegaram pobres e logo
enriqueceram.
SIMÃO Honestamente.
PADRE
E aqui geraram um filho a quem chamaram
Simão.
SIMÃO A quem batizaram e crismaram.
PADRE
E Simão gerou Branca, a quem
também batizou e crismou. E Branca espera gerar quantos filhos puder.
SIMÃO
Está noiva. Augusto Coutinho, seu
noivo, é também católico. De boa família. Estudou na Europa.
PADRE Em Lisboa.
SIMÃO
É muito inteligente e muito preparado.
Conhece leis a fundo.
PADRE
Conhece as leis dos homens, que
não se podem sobrepor às leis de Deus. Mas ele pensa que sim.
SIMÃO
Ele pensa?...
PADRE
Soube de certas atitudes de rebeldia desse
rapaz.
SIMÃO
Coisas da juventude. Quem nunca foi
rebelde, nunca foi jovem.
PADRE
Preocupa-me a influência que ele exerce
sobre Branca.
SIMÃO
É natural. Ela o adora.
PADRE
O senhor disse a frase exata: ela o adora.
SIMÃO
Cresceram juntos, brincando de esconder no canavial.
O velho Coutinho era também senhor-de-engenho. Bom homem, muito respeitador.
Depois, Augusto foi estudar na Europa. Voltou já homem feito e disposto a
casar. Era do meu gosto e eu só tinha que aprovar.
PADRE Quando será?
SIMÃO
Em setembro. Faltam três meses somente e já encomendei o
enxoval; virá tudo de Paris. Custou-me os olhos da cara. (Sorri.) É filha
única, o senhor compreende. Alegria que só terei uma vez na vida. Quem sabe se
o senhor mesmo não poderia casá-los?
PADRE
(Estranha a idéia.) Eu?
SIMÃO
Sim, Branca ia ficar muito
contente, tendo pelo senhor o respeito e a amizade que tem.
PADRE
(Constrangido.) Será para mim também uma satisfação, se
Branca me der essa honra.
Muda a luz. O Padre sai.
SIMÃO Não fiz bem em convidá-lo?
BRANCA
Fez. Eu já havia pensado nisso. Ele deve
ter ficado satisfeito.
SIMÃO
Penso que sim. Não demonstrou muito.
BRANCA
Porque é tímido. Mas pode ficar
certo de que o senhor lhe deu uma grande alegria.
SIMÃO Você acha?
BRANCA
Ele é muito sensível a qualquer gesto de
simpatia.
SIMÃO Ainda bem.
BRANCA
Por quê? O
senhor parece preocupado. Teme alguma coisa?
SIMÃO O temor é um legado de nossa raça.
BRANCA Somos cristãos.
SIMÃO Cristãos-novos, ele frisou bem.
BRANCA
Que tem isso? Jesus nunca fez
distinção entre os velhos e os novos discípulos.
SIMÃO
Eles não confiam em nós, em nossa
sinceridade. Estamos sempre sob suspeita.
BRANCA
Não é suspeita, pai, é que eles
têm o dever de ser vigilantes. É essa vigilância que nos defende e nos protege.
SIMÃO
Essa proteção custou a vida a dois mil dos nossos, em
Lisboa, numa chacina que durou três dias.
BRANCA
Dois mil?
SIMÃO
Sim, dois mil cristãos-novos.
Poucos conseguiram escapar, como seu avô, convertido à força e despojado de
todos os seus bens.
BRANCA Meu avô não era um cristão convicto?
SIMÃO
O ódio não converte ninguém. Uma
coisa é um Deus que se teme, outra coisa é um Deus que se ama. E não há nada
mais próximo do ódio que o amor dos humildes pelos poderosos, o culto dos
oprimidos pelos opressores.
Muda a luz, Simão sai. Branca
senta-se, pensativa. As palavras do pai a perturbaram um pouco. A insegurança,
cujos germes Padre Bernardo conseguira incutir em seu espírito, acentua-se.
Augusto entra.
AUGUSTO
Por que me mandou chamar com tanta
urgência?
BRANCA
Não sei... De fato, não é urgente.
AUGUSTO Aconteceu alguma coisa?
BRANCA
Não... realmente, não aconteceu nada.
Não sei explicar. Mas de um momento para outro, eu me senti tão só, tão
desamparada. Só me aconteceu isso uma vez, quando eu era menina e alguém me
disse que a Terra se movia no espaço. Não sei que sábio havia descoberto. Até
então, a Terra me parecia tão sólida, tão firme... de repente, comecei a pensar
em mim mesma, uma pobre criança, montada num planeta louco, que corria pelo céu
girando em volta de si mesmo, como um pião. E tive medo, pela primeira vez na
vida. Uma sensação de insegurança me fez passar noites sem dormir, imaginando
que durante o sono podia rolar no espaço, como uma estrela cadente.
AUGUSTO
(Sorri.) E que quer você que eu
faça? Que pare a Terra, como Josué parou o Sol?
BRANCA
E se Josué parou o Sol, é porque é o Sol
que se move e não a Terra.
AUGUSTO
É o que dizem as Sagradas Escrituras.
BRANCA E pode um texto sagrado mentir?
AUGUSTO
Talvez seja uma questão de interpretação. Josué não
parou o Sol, mas a Terra. Estando na Terra, teve a impressão de que foi o Sol
que parou. O sentido é figurado. Do mesmo modo que quando nos afastamos do
porto, num navio, temos a impressão de que é a terra que foge de nós.
Tudo é então uma questão de
interpretação. Depende da posição em que a gente se encontra. Isto me deixa
ainda mais intranqüila.
AUGUSTO Por quê?
BRANCA
Se um texto da Sagrada Escritura pode
ter duas interpretações opostas, então o que não estará neste mundo sujeito a
interpretações diferentes?
AUGUSTO Por que você se preocupa com isso?
BRANCA
Porque ninguém pode viver assim. (Repentinamente,
como para pô-lo à prova.) Você sabe que eu já colei minha boca na boca de um
homem?
AUGUSTO Que homem?
BRANCA
Padre Bernardo. Ele estava sufocado,
depois do afogamento, e eu tive de colar a minha boca na dele, para fazer
chegar um pouco de ar aos seus pulmões. (Fita o noivo corajosamente.) Nós nunca
nos beijamos na boca e eu fui obrigada a beijar um estranho.
AUGUSTO
(Evidentemente chocado com a revelação.) Por
que você não me contou isso antes?
BRANCA
Porque até hoje ainda não havia
pensado que o meu gesto podia ser interpretado de outro modo.
AUGUSTO
Você acha que era absolutamente necessário
fazer o que fez?
BRANCA Acho.
AUGUSTO
Ele morreria, se não o fizesse?
BRANCA
Quem sabe? Talvez não. Mas foi com o
intuito de salvá-lo que o fiz. Só com esse intuito. Estou lhe dizendo isto
agora para saber se você acredita em mim.
Ele não responde. Sua perturbação é
evidente.
BRANCA
Em sua opinião, eu continuo pura como
antes?
AUGUSTO
(Pausa.) Eu preferia que isso não tivesse
acontecido.
Então é porque você não acredita na pureza
do meu gesto.
AUGUSTO
(Rápido.) Não, não...
BRANCA Ou porque tem dúvidas.
AUGUSTO
Não tenho dúvidas. Mas ninguém
gostaria que a mulher que ama beijasse outro homem, mesmo sendo esse homem um
padre e o beijo apenas um gesto de humanidade. Aceito e compreendo a nobreza de
seu gesto, mas ele me choca.
BRANCA
Você o aceita, mas não o
compreende — esta é que é a verdade. Porém, não é isto o que mais me preocupa.
É verificar que hoje eu não seria capaz de um gesto desses. Se visse um homem
morrendo, com falta de ar, eu o deixaria morrer. Não colaria a minha boca na
dele, não lhe daria o ar dos meus pulmões, porque isso poderia ter outra
interpretação. Porque tanto Josué pode ter parado o Sol, como pode ter parado a
Terra. Tudo depende de saber se estamos do lado do Sol ou do lado da Terra.
AUGUSTO
Branca, eu sei que você continua tão pura
quanto antes...
BRANCA
E você sabe que
o Diabo prefere os puros?
AUGUSTO
Eu confio em você, Branca.
BRANCA
Mas não deve. Meu pai me disse
que estamos sempre sob suspeita. Eu mesma lhe confessei há pouco que já me
sentia capaz de recusar a um moribundo o ar dos meus pulmões. Alguém que se
sente capaz disso deve estar mesmo sob vigilância constante, porque não é pessoa
em quem se possa confiar.
AUGUSTO
(Segura-a pelos braços, como para
chamá-la a si.) Branca, não fale assim. Você está sendo injusta consigo mesma.
BRANCA
Não, não estou. É que começo a me
conhecer. E estou descobrindo coisas... Coisas que não descobri nem mesmo nos
livros que você me deu. Padre Bernardo talvez tenha razão...
AUGUSTO (Com desagrado.) Padre
Bernardo!
BRANCA
Sim, Padre Bernardo deve ter
razão, toda criatura humana está em perigo!
AUGUSTO
Não você, Branca!
Sim, eu, eu sim!
(Atira-se nos braços dele e faz-se pequenina, pedindo proteção.) Augusto, não
podemos esperar até setembro!
AUGUSTO Por quê?
BRANCA
Não me pergunte, eu não saberia
responder. Só sei que o mundo, que me parecia tão simples, começa a ficar muito
complicado para mim. Eu mesma já não me entendo... nos seus braços eu me sinto
segura.
AUGUSTO
Em setembro, você virá de vez para os meus
braços, virá de vez...
BRANCA
Não, não me deixe desamparada até lá! Eu
não posso esperar tanto!
AUGUSTO
Você acha que seu pai
concordaria? Ele mandou buscar o seu enxoval na Europa...
BRANCA
O enxoval chegaria depois, isso não tem
importância.
AUGUSTO
Ele vai ficar sentido.
BRANCA
Eu falo com ele, explico... o que
eu não posso é ficar por mais tempo na mira do Diabo!
AUGUSTO
(Num gesto
brusco, puxa-a para si e beija-a na boca. Um beijo violento, desesperado, que é
interrompido também bruscamente.) Foi assim que você o beijou?
BRANCA
(Com horror.) Não!
Augusto sai. Branca
fica só. Pensativa, agacha-se e põe-se a seguir com os olhos um caminho de
formigas.
PADRE
(Entra.) Branca...
BRANCA
(Já não revela a mesma espontaneidade
diante dele.) Padre...
PADRE
(Mais como uma queixa do que como
uma censura.) Nunca mais foi à missa, nunca mais confessou-se, nunca mais me
procurou, por quê?
BRANCA
(Evasiva.) Por nada. Tenho estado muito
ocupada.
PADRE Com suas formigas?
BRANCA Não são também criaturas de Deus?
PADRE
São seres daninhos, que somente
destroem, que somente trabalham em seu próprio benefício e cuja existência
nenhum bem, nenhuma utilidade representa.
BRANCA
Se Deus deu às formigas o
benefício da vida, elas têm o direito de conservá-lo, não acha? Da maneira que
Deus ensinou.
PADRE
Elas não sabem distinguir entre o
bem e o mal. Ao passo que nós temos a obrigação de sabê-lo.
BRANCA
Não é tão fácil como eu julgava.
PADRE
Já percebi que você tem certa
dificuldade. Por isso estou aqui novamente.
BRANCA
Nunca mais fui procurá-lo porque,
como já lhe disse, tenho andado muito atarefada. Com o meu casamento.
PADRE Não é em setembro?
BRANCA
Não, resolvemos apressá-lo.
PADRE Não sabia de nada.
BRANCA
É verdade, devíamos ter falado
com o senhor, que é quem vai oficiar a cerimônia.
PADRE
(Há uma pausa um tanto longa, que traduz a atual
dificuldade de comunicação entre eles.) Há alguma razão especial que justifique
a pressa?
BRANCA
O senhor disse: ninguém pode
aceitar o Demônio como companheiro de mesa. Casada, terei o meu marido à
cabeceira e o Demônio não ousará sentar-se ao nosso lado.
PADRE
Seu marido talvez o convide...
BRANCA
Não creio. Conheço Augusto e confio nele
como confio em Deus.
O Padre se choca com a frase. Ela
percebe.
BRANCA Disse alguma coisa errada?
PADRE Lamentavelmente.
BRANCA
Perdoe-me...
PADRE
Não é a mim que você deve pedir
perdão, é a Ele, de quem você se afasta cada vez mais.
BRANCA
(Protesta com veemência.) Não! Isso não é
verdade!
PADRE
A ponto de colocá-Lo em pé de
igualdade com um simples mortal. Amanhã O colocará em situação inferior; e, por
fim, o substituirá inteiramente.
BRANCA
O senhor não pode falar assim só porque eu
disse uma tolice.
PADRE
Não me esqueci de sua frase, na
beira do rio, quando nos conhecemos: “É no amor que a gente se encontra com
Deus”. Sim, mas não nesse tipo de amor que você tem por Augusto. Isto é que eu
quero que você entenda, Branca. Seu espírito está cheio de confusões.
BRANCA
É possível. Para mim, tudo é
amor. E todo amor é uma prova da existência de Deus.
PADRE
Neste caso, está em comunhão com Deus
quem ama um cão, ou adora uma vaca. E tanto é justo adorar um Deus verdadeiro,
como um deus falso.
BRANCA
Se somos sinceros em nossos
sentimentos — isto é que Deus deve considerar em primeiro lugar.
PADRE
Mas os judeus e os mouros também são
sinceros em sua lei e em sua religião. Acha você que eles podem se salvar, como
os cristãos?
Ela, atônita,
sentindo que caiu numa armadilha, não sabe o que responder.
PADRE
Responda, Branca. Os judeus e mouros podem
salvar-se?
BRANCA
Não sei... Confesso que não sei...
PADRE
(Olha-a com imensa ternura e
piedade.) Pobre Branca. Como precisa de quem a ajude.
BRANCA
(Numa queixa.) Mas o senhor não
tem ajudado em nada, padre. O senhor só tem lançado a dúvida em meu espírito.
PADRE
Essa dúvida é a luta entre a luz
e as trevas. Eu lhe trago a luz, mas você resiste. Abandone-se, Branca,
abandone-se a mim e eu dissiparei todas as dúvidas que a atormentam.
BRANCA
Não, padre, não.
PADRE
(Choca-se com a recusa.) Por que recusa?
BRANCA
Preferia que me deixasse com as
minhas dúvidas, as minhas tolices, e os meus perigos e tentações. Sei que o
senhor quer salvar-me, mas eu me salvarei por mim mesma.
PADRE
E se não se salvar? Eu terei a culpa.
BRANCA Não.
PADRE
Sim, porque a abandonei. Porque
não cumpri o meu dever de sacerdote, nem mesmo o mais elementar dever de
gratidão. Não é só você quem está em causa, Branca. Eu, seu confessor, sou a um
tempo seu guia, seu mestre, seu conselheiro, seu amigo, seu irmão. Queria que
você visse em mim todas essas pessoas e se confiasse a elas, como a gente se
confia a uma sólida ponte sobre o abismo. Eu sou essa ponte, Branca, que pode
transportá-la de um lado para o outro, com segurança.
BRANCA
(As palavras do
Padre a abalam um pouco.) Eu sei... eu confio também no senhor.
PADRE Confia mesmo?
BRANCA
Confio. (Consegue reagir.) Mas
não vejo necessidade de atravessar nenhuma ponte, de mudar de lado. Eu estou
bem onde estou e acho que estamos do mesmo lado.
PADRE
(Começa a experimentar o sabor do próprio fracasso.) Não
sei, Branca, não sei... Às vezes temo que você não esteja apenas confusa, não
esteja apenas inconsciente dos perigos que corre. Que não seja por pura
inocência que se deixa tentar...
BRANCA Como? Não entendo!
PADRE
Temo,
sinceramente, que o Diabo tenha já avançado demais...
BRANCA
Padre!
PADRE
Temo por você,
como temo por mim, Branca. Acredite! (Ela sente que ele arrancou essas palavras
da própria carne, rompendo barreiras que até então haviam resistido.)
BRANCA
(Timidamente.) O senhor também se julga em
perigo?
Ele não responde. Cerra os olhos, como se
procurasse recompor-se intimamente. Por fim, avança para ela e põe-lhe a mão
sobre a cabeça, escorregando-a depois, lentamente, pelo rosto, como fazem os
judeus para abençoar as crianças. Branca ri.
PADRE
Por que se riu?
BRANCA
O senhor agora me fez lembrar o
meu avô. Quando eu era pequena, ele costumava pôr a mão na minha cabeça e
escorregá-la pelo meu rosto, como o senhor fez agora.
PADRE
Seu avô, fale-me dele.
BRANCA
Oh, era um bom homem. Me levava
para chupar cajus na roça, depois fazia um enorme colar com as castanhas,
pendurava no meu pescoço e dizia: “Branca, és mais rica do que a rainha de
Sabá!” (Ri.) Eu não sabia quem era essa rainha de Sabá, e só a imaginava então
cheia de colares de castanhas de caju em volta do pescoço.
PADRE
(Olha-a com tristeza e preocupação.) Que
mais?
BRANCA
Não me lembro de muitas coisas
mais. Eu tinha seis anos quando ele morreu.
PADRE Lembra-se desse dia?
BRANCA
Não gosto de me lembrar. Foi o meu
primeiro encontro com a morte.
Toda vez que me recordo, sinto a mesma
coisa...
PADRE Quê?
BRANCA
Um cheiro ativo de azeitonas e um
frio aqui acima do estômago. Mas nunca vou poder esquecer... era um velho cheio
de manias. Pediu que botassem uma moeda na sua boca, quando morresse.
PADRE E cumpriram a sua vontade?
BRANCA
Sim, meu pai me deu uma pataca e eu
coloquei sobre seus lábios.
PADRE (Murmura.) Virgem Santíssima!
BRANCA
(Estremece e treme.) Fiz mal?
Padre Bernardo, ereto, cabeça levantada, leva as mãos em
garras ao rosto, escorrega-as pelo pescoço, até o peito, como se dilacerasse a
própria carne, num gesto de suprema angústia.
PADRE
Branca, o visitador da Santa
Inquisição acaba de decretar um tempo de graça. Durante quinze dias, os
pecadores que espontaneamente confessarem as suas faltas e convencerem o
inquisidor da sinceridade de seu arrependimento, receberão somente penitências
leves.
BRANCA Por que está me dizendo isso?
PADRE
Para que você medite e se aproveite
da misericórdia do Tribunal do Santo Ofício.
Muda a luz. O Padre sai. O Visitador surge no plano mais
elevado, desenrola um edital e lê. Branca, Simão e Augusto, em planos
inferiores, escutam atentamente. Também o Notório e dois guardas
VISITADOR
(Lendo.) “Por mercê de Deus e por delegação do inquisidor-mor
em estes reinos e senhorios de Portugal, eu visitador do Santo Ofício, a todos
faço saber que, num prazo de quinze dias, devem os culpados de heresia ou que
souberem que outrem o está, virem declarar a verdade. Os que assim procederem
ficarão isentos das penas de morte, cárcere perpétuo, desterro e confisco. E
para que as sobreditas cousas venham à notícia de todos e delas não possam
alegar ignorância, mando passar a presente carta para ser lida e publicada
neste lugar e em todas as igrejas desta cidade e uma légua em roda. Dada na
cidade da Paraíba, aos dezoito do mês de julho, do ano do nascimento de Nosso
Senhor Jesus Cristo de 1750.”
Muda a luz. Sai Augusto. O Visitador desce ao plano
inferior. É um bispo. O Notório vem reunir-se a ele. Os dois percorrem toda a
cena com os olhos perscrutadores, detalhadamente, como se estivessem jazendo
uma vistoria. Simão e Branca assistem, um tanto intimidados.
VISITADOR
Desculpem, é uma tarefa bastante
desagradável, mas somos obrigados a cumpri-la.
NOTÁRIO É o nosso dever.
SIMÃO
(Mais intimidado do que Branca.) Estejam
à vontade... Nós entendemos perfeitamente.
BRANCA
Quem ainda não entendeu nada fui
eu. Afinal, que é que os senhores procuram? Somos católicos, nada temos em
nossa casa que possa ofender a Deus ou à Santa Madre Igreja.
VISITADOR
(Enigmático.) Recebemos uma denúncia. Temos de
apurar.
SIMÃO Denúncia contra nós? Absurdo.
BRANCA Quem nos denunciou?
VISITADOR
O Tribunal do Santo Ofício não
permite revelar o nome dos denunciantes.
SIMÃO Deve ter havido um equívoco.
VISITADOR
A única maneira de saber se há
equívoco ou se há fundamento, é investigar.
SIMÃO
Sim, isto parece lógico...
Notário sai, com os guardas.
BRANCA
Não acho. É lógico que se procure
entre os cristãos os inimigos do cristianismo?
VISITADOR Houve uma denúncia.
BRANCA De que nos acusam?
VISITADOR De alguma coisa.
O Notário e os guardas entram com uma
enorme bacia.
NOTÁRIO Senhor visitador!
VISITADOR Que é isso?
NOTÁRIO Uma bacia.
BRANCA É pecado ter em casa uma bacia?
NOTÁRIO A bacia contém um líquido.
SIMÃO É água!
NOTÁRIO
Estou vendo que é água... Mas a cor da
água...
O Visitador examina detidamente a água,
molha as pontas dos dedos.
NOTÁRIO
Vossa Reverendíssima se
arrisca... Ninguém sabe o que há nessa água!
VISITADOR
(Enxuga a mão.) Sim, a cor indica
que a água levou algum preparado...
NOTÁRIO
Algum pó mirífico para invocação do Diabo!
SIMÃO
Vossas Excelências me perdoem,
mas o único pó que há aí é o pó das estradas, de vinte léguas no lombo dum
burro.
VISITADOR Como?
SIMÃO Acabei de tomar banho nessa bacia...
VISITADOR
Acabou de tomar banho... hoje,
sexta-feira?
SIMÃO Cheguei de viagem, empoeirado...
VISITADOR Também trocou de roupa?
SIMÃO Também; a outra estava imunda.
VISITADOR Hoje, sexta-feira.
NOTÁRIO
Hoje, sexta-feira.
VISITADOR (Para o Notário.) Leve daqui esta bacia.
O Notário e os guardas saem com a bacia.
SIMÃO Foi uma coincidência!
VISITADOR Estranha.
SIMÃO Cheguei suado, cheio de poeira...
BRANCA
Há alguma lei que proíba alguém de tomar
banho?
Notário entra com um candeeiro.
VISITADOR Mudaram a mecha?
NOTÁRIO Não, parece que não mudaram.
VISITADOR
(Examina a mecha do candeeiro.) Também ainda
não acenderam.
Que horas são?
NOTÁRIO Quase seis.
VISITADOR
(Para Simão.) Isto
será anotado em favor de vocês. Sexta-feira, quase seis da tarde. Candeeiro
apagado. Mecha velha.
Notário sai com o candeeiro.
BRANCA
Se querem,
podemos pôr mecha nova...
SIMÃO
(Apressadamente.) Não, não! Nunca
mudamos a mecha do candeeiro às sexta-feiras. Vossa Reverendíssima viu, a mecha
está velha, estragada, há um mês que não mudamos. Também não jejuamos aos
sábados, nem trabalhamos aos domingos. Somos conhecidos em toda essa região e
todos podem dizer quem somos. Tudo não deve passar de um mal-entendido, ou
maldade de alguém que quer nos prejudicar.
VISITADOR
Se for, nada têm a temer. A visitação
do Santo Ofício lhes garante misericórdia e justiça. Não desejamos servir a
vinganças mesquinhas, mas precisamos ser rigorosos com os inimigos da fé
cristã. Temos de destruí-los, pois do contrário eles nos destruirão.
NOTÁRIO
(Entra com a pilha de livros. Como se
encontrasse uma bomba.) Livros!
BRANCA
Meus livros! São meus! Que vai fazer com
eles?
VISITADOR Sabe ler?
BRANCA
Sei.
VISITADOR Por quê?
BRANCA Porque aprendi.
VISITADOR Para quê?
BRANCA
Para poder ler.
VISITADOR Mau.
BRANCA
Não são livros de religião, são romances,
poesias...
NOTÁRIO
Amadis de Gaula! (Passa o livro ao
Visitador.)
VISITADOR Amadis!
BRANCA
Estórias de cavalaria. Me emocionam muito.
NOTÁRIO
As Metamorfoses. (Passa o livro ao
Visitador)
VISITADOR Ovídio. Mitologia.
Paganismo.
NOTÁRIO
Eufrósina. (Repete o jogo.)
VISITADOR Também!
NOTÁRIO E uma bíblia — em português!
VISITADOR Em português!
BRANCA
Foi meu noivo quem me trouxe de
Lisboa. Vejam que tem uma dedicatória dele para mim.
VISITADOR Estou vendo...
BRANCA
Fiquei muito contente porque,
como não sei ler latim, pude ler a bíblia toda e já o fiz várias vezes.
VISITADOR
(Entrega os livros ao Notório.) Todos
esses livros são reprovados pela Igreja; vamos levá-los.
BRANCA Também a bíblia?!
NOTÁRIO Em linguagem vernácula!
BRANCA
Mas é a bíblia!
VISITADOR Em linguagem vernácula.
Saem o
Visitador, o Notário e os guardas. Há uma grande pausa, como se eles tivessem
cavado um enorme precipício diante de Branca e Simão, que se olham perplexos.
BRANCA
Por quê?...
SIMÃO Como?...
BRANCA Quem?...
SIMÃO
Em linguagem vernácula. (Depois de
uma pausa, volta-se contra ela.) Eu bem lhe disse... eu bem que me opus
sempre... Esses livros — para quê? Uma moça aprender a ler — para quê? Que
ganhamos com isso? Estamos agora marcados. (Sai.)
Muda a luz. Padre Bernardo surge no plano
superior.
BRANCA
Foi o senhor!
PADRE
Não, Branca, não fui eu. Deus poupou-me
esse penoso dever.
BRANCA Quem foi, então?
PADRE
O Tribunal não revela o nome dos
denunciantes.
BRANCA
O Tribunal?...
PADRE
Você agora vai ter de comparecer
ante ele. Melhor seria que tivesse ido espontaneamente, aproveitando os dias de
graça.
BRANCA
Mas por que iria? Que fiz eu?!
PADRE
Talvez eles lhe digam.
BRANCA Eles, quem?!
PADRE
Os seus inquisidores. Pobre de você,
que terá de comparecer ante eles, sem reconhecer os próprios erros; pobre de
mim, que estarei entre eles e terei de julgá-la.
BRANCA
Mas não... eu não irei... não irei... (Corre para a
direita, mas aí surge um guarda que lhe barra a fuga; corre para a esquerda e
aparece outro guarda, que a obriga a retroceder.)
PADRE
É inútil, Branca. Perdeu sua
liberdade, pelo mau uso que fez dela. Melhor para você que não tente fugir e se
entregue à misericórdia dos seus juizes. Eles tudo farão para salvá-la.
BRANCA
(Encolhe-se, no
centro da cena, pequenina, esmagada, perplexa.) Meu Deus! Eu não entendo!... Eu
não entendo!...
Uma enorme grade, tomando toda a boca da
cena, desce lentamente.
As luzes se apagam em resistência.
Segundo Ato
BRANCA
(Deitada de bruços, atrás da
grade. Sua atitude revela abandono e perplexidade. Há um longo silêncio, antes
que ela comece a falar.) Se ao menos eu pudesse ver o sol... (Pausa.) Será que
é essa a melhor maneira de salvar uma criatura que está na mira do Diabo?
Tirar-lhe o sol, o ar, o espaço e cerceá-la de trevas, trevas onde o Diabo é
rei? (Dirige-se à platéia.) Vêem vocês o que eles estão fazendo comigo? Estão
me encurralando entre o Cão e a parede. Será que foi para isso que me prenderam
aqui e me tiraram o sol, o ar, o espaço? Para que eu não pudesse fugir e
tivesse de enfrentar o Diabo cara a cara. É justo, senhores, que para me livrar
dele me entreguem a ele, noites e noites a sós com ele, sem saber por quê, nem
até quando, sem uma explicação, uma palavra, uma palavra, ao menos. Não sei...
não sei o que eles pretendem. Já não entendo mesmo o que eles falam. Deve ter
havido um equívoco. Não sou eu a pessoa... Há alguém em perigo e que precisa
ser salvo, mas não sou eu! É preciso que eles saibam disso! Houve um equívoco! (Grita.)
Senhores! Guardas! Senhores padres! Venham aqui!
GUARDA
(Entra.) Que algazarra é essa? Estamos num
convento.
BRANCA
Houve um equívoco! Não sou eu a pessoa!
GUARDA Que pessoa?
BRANCA A que procuram.
GUARDA Procuram alguém?
BRANCA
Claro.
GUARDA
Claro por quê?
BRANCA Tanto que me prenderam.
GUARDA E por que prenderam você?
BRANCA
Não sei.
GUARDA
Devia saber. Isso piora a sua situação.
BRANCA
Piora? O senhor sabe por que estou aqui?
GUARDA
Não.
BRANCA
Então é uma prova! O senhor é quem devia
saber!
GUARDA
Por que eu devia saber?
BRANCA Porque é guarda.
GUARDA
Não diga tolices. Os denunciantes
denunciam, os juizes julgam, os guardas prendem, somente. O mundo é feito
assim. E deve ser assim, para que haja ordem.
BRANCA
E os inocentes?
GUARDA
Devem provar a sua inocência, de acordo
com a lei.
BRANCA
Mas não está certo.
GUARDA
Se não está certo, não me cabe a
culpa. Sou guarda. E não foram os guardas que fizeram o mundo. (Sai.)
BRANCA
Está errado... Cada pessoa
conhece apenas uma parte da verdade. Juntando todas as pessoas, teríamos a verdade
inteira. E a verdade inteira é Deus. Por isso as pessoas não se entendem, por
isso há tantos equívocos.
PADRE
(Entra.) Infelizmente, não há equívoco nenhum de nossa
parte, Branca. É você mesma quem está em perigo. Mas poderá salvar-se.
BRANCA
Como? Se me deixam aqui, sozinha,
abandonada... O senhor mesmo, padre, o senhor me abandonou!
PADRE
(Ele sente profundamente a
acusação.) Não diga isso! Eu tenho rezado muito... E não tenho me afastado
daqui, das proximidades de sua cela. À noite, tenho passado horas e horas
andando no corredor, até sentir-me exausto e poder dormir.
BRANCA
Por que precisa fazer isso? Por que
precisa se martirizar desse modo?
(Exterioriza o seu conflito
interior.) Sou tão responsável quanto você pelos seus erros.
BRANCA
Oh, não, o senhor não tem culpa
de nada. Se pequei, devo pagar sozinha pelos meus pecados.
PADRE
Agora já é impossível. Tudo o que
lhe acontecer, me acontecerá também. Sua punição será a minha punição, embora a
sua salvação não importe na minha salvação.
BRANCA
Não entendo. Se o senhor não pode
ajudar-me, quem poderá? Para quem devo apelar, além de Deus? Meu pai? Meu
noivo?
PADRE
Também eles nada poderão fazer por você;
ambos foram presos.
BRANCA Presos? Por quê?
PADRE
O visitador do Santo Ofício
promulgou um tempo de graça. Aqueles que não se aproveitaram desse gesto
misericordioso não só para confessar-se, mas também para denunciar as heresias
de que tinham conhecimento, deverão comparecer perante o Tribunal.
BRANCA
Mas eles...
PADRE
Além de culpados de pequenas
heresias, são testemunhas importantes do seu processo.
BRANCA Testemunhas de quê?
PADRE
Deviam saber que você estava sendo tentada
pelo Diabo.
BRANCA
Não, eles não sabiam! Se nem eu sabia!
PADRE
Deviam ter denunciado você ao Santo
Ofício.
BRANCA Denunciado? Meu pai? Meu noivo?
PADRE
Os laços familiares ou sentimentais não podem ser colocados
acima dos deveres que assumimos com a religião, no momento do batismo.
Por mais que isso nos custe, às vezes.
BRANCA
Presos... Meu pai e também Augusto. Estou
só, então!
Não, Branca, você não está só, porque está entregue à
misericórdia da Igreja.
BRANCA
Que vai a Igreja fazer comigo?
PADRE
Inicialmente, protegê-la; depois,
tentar recuperá-la; finalmente, julgá-la.
BRANCA
Quando será isso? Já que tenho de
ir, por que não me vêm logo buscar?
PADRE Eu vim buscá-la.
BRANCA
O senhor? (Ante a perspectiva, ela treme
um pouco.) Agora?
PADRE
É preciso que você
entenda... Sou um simples soldado da Companhia de Jesus. Estou sujeito a uma
disciplina e devo cumprir ordens. Muitas vezes, do lado do inimigo há um irmão
nosso; mas do nosso lado está o Cristo, que é nosso capitão. Devemos obedecerLhe,
porque Ele tem o comando supremo.
BRANCA Compreendo.
PADRE Podemos ir?
BRANCA Podemos.
PADRE
Não quer preparar-se espiritualmente?
BRANCA Estou preparada.
PADRE
Reze um ato de esperança. Repita
comigo: eu espero, meu Deus, com firme confiança...
BRANCA
(Mãos entrelaçadas sobre o
peito.) Eu espero, meu Deus, com firme confiança...
PADRE
...que pelos merecimentos de meu Senhor
Jesus Cristo...
BRANCA
...que pelos merecimentos de meu Senhor
Jesus Cristo...
Sobe a grade.
(Começam a
movimentar-se, como a caminho do Tribunal.) ...me dareis a salvação eterna...
BRANCA
...me dareis a salvação eterna...
PADRE
...e as graças necessárias para consegui-la...
BRANCA
...e as graças necessárias para
consegui-la...
PADRE
...porque Vós, sumamente bom e poderoso...
BRANCA
...porque Vós, sumamente bom e poderoso...
PADRE
...o haveis prometido a quem observar fielmente os Vossos
mandamentos...
BRANCA
...o haveis prometido a quem
observar fielmente os Vossos mandamentos...
PADRE
...como eu
proponho fazer com Vosso auxílio.
BRANCA
...como eu proponho fazer com Vosso
auxílio.
Muda a luz. Surge o Visitador no plano
superior. O Padre e Branca ficam no plano inferior. Entram também o Notário e
quatro padres, que se colocam nas laterais, enquanto o Guarda surge e permanece
ao fundo.
VISITADOR Ajoelhe-se.
BRANCA
Ajoelhar-me diante de vós? Com ambos os
joelhos?
VISITADOR Sim, com ambos os joelhos.
BRANCA
Perdão, mas não posso fazer isso.
VISITADOR Por que não?
BRANCA
Porque ninguém deve ajoelhar-se diante de
uma criatura humana.
NOTÁRIO
E essa agora! Perdeu a cabeça?
Não vê que está diante do visitador do Santo Ofício, representante do
inquisidor-mor?
Um momento, senhores. Ela talvez tenha motivos que devamos
considerar. (Dirige-se a Branca com brandura.) Por que diz isso?
BRANCA
Foi o que aprendi na doutrina
cristã: somente diante de Deus devemos nos ajoelhar com ambos os joelhos.
PADRE
Na verdade, ela tem razão. Dos
três cultos — a latria, hiperdulia e dulia — deve-se dar somente a Deus o culto
da latria, no que se compreende ajoelhar com ambos os joelhos.
BRANCA Sempre soube que era pecado!
VISITADOR
Aqui se trata de um costume do
Tribunal. O réu deve estar de joelhos quando é examinado sobre a doutrina e
também quando é lida a sentença.
BRANCA
Mas se foi nessa mesma doutrina
que aprendi que não devo ajoelharme...
VISITADOR
(Impacienta-se.) Bem, vamos abrir uma
exceção. Pode ficar de pé.
NOTÁRIO
(Apresenta-lhe os Evangelhos.) Jura sobre
os Evangelhos dizer toda a verdade?
BRANCA
(Hesita.) Toda a verdade? Como
posso prometer dizer toda a verdade, se nem sequer sei sobre que vão
interrogar-me? Não tenho a sabedoria dos padres jesuítas, sou uma pobre
criatura ignorante.
NOTÁRIO
(Tem um gesto de contrariedade.) Mas tem
de jurar. É praxe.
BRANCA
Jurar o que não sei se vou poder cumprir?
NOTÁRIO
Se não jura, não tem valor o depoimento.
PADRE
Branca, só se exige que você diga a verdade que for de seu
conhecimento.
BRANCA
Bem, se é assim... (Coloca a mão sobre o
livro.)
NOTÁRIO Jura?
BRANCA
Juro.
VISITADOR
Não se justifica, Branca, sua
prevenção contra este Tribunal. Nenhum de nós deseja a sua condenação,
acredite. Ao contrário, o que queremos é tentar ainda salvá-la, recuperá-la
para a Igreja. Tudo faremos para isso. E será sempre nesse sentido que orientaremos
este inquérito, no sentido da misericórdia.
BRANCA
Misericórdia. Mas é um ato de
misericórdia deixar uma pessoa dias e dias encerrada numa cela sem luz e sem
ar, sem ao menos lhe dizer por quê, de que a acusam?
O Notário tem um gesto de contrariedade,
enquanto o Padre Bernardo acompanha as reações de Branca em crescente angustia.
VISITADOR Você conhece as obras de
misericórdia?
BRANCA Conheço.
VISITADOR Recite em voz alta.
BRANCA
Dar de comer a quem tem fome; dar de beber a quem tem sede;
vestir os nus; dar pousada aos peregrinos; visitar os enfermos e os
encarcerados; remir os cativos; enterrar os mortos; dar bom conselho; ensinar
os ignorantes; consolar os aflitos; perdoar as injúrias; sofrer com paciência
as fraquezas do próximo; rogar a Deus pelos vivos e defuntos.
VISITADOR
Você saltou uma: castigar os que erram.
BRANCA É verdade. Desculpe-me.
VISITADOR
Sim, Branca, castigar os que erram é uma
obra de misericórdia.
BRANCA
E começam logo a castigar-me;
isto quer dizer que já me consideram culpada antes de ouvir-me.
PADRE
Você ainda não sofreu nenhum
castigo, Branca; a prisão é uma medida exigida pelo processo.
NOTÁRIO
Essa medida foi tomada com base
nas denúncias e provas que temos contra ela.
BRANCA Denúncias e provas? De quê?
VISITADOR
De heresia e prática de atos contra a
moralidade.
BRANCA
(Mostra-se perturbada com a acusação.) Heresia... Atos
contra a moralidade... Talvez essas palavras tenham outra significação para os
senhores. Pelo que eu entendo que querem dizer, não posso, de modo algum,
aceitar a acusação.
O Notório tem um gesto de reprovação.
PADRE
Branca, pense bem no que está
fazendo, meça com cuidado suas palavras e atitudes. Como disse o senhor bispo,
estamos aqui para tentar reconciliá-la com a fé. Mas isso depende muito de
você.
BRANCA
Mas que querem? Que eu me considere uma
herege, sem ser?
PADRE
De nada lhe adiantará negar-se a
reconhecer os próprios pecados.
Essa atitude só poderá perdê-la.
NOTÁRIO
Parece que é isso que ela está querendo.
VISITADOR
Um momento, senhores. Sejamos
pacientes. Creio que ela não estava suficientemente preparada para esta
inquirição. O Padre Bernardo não a visitou no cárcere durante esses dias?
PADRE
(Sente-se que o sangue lhe sobe ao rosto.)
Não... visitei-a hoje.
VISITADOR Hoje, somente?
PADRE Julguei que não fosse necessário.
VISITADOR
Necessário ou não, é a maneira de proceder
do Santo Ofício.
O Padre sente profundamente a reprimenda. E,
ao perceber que Branca tem os olhos nele, baixa o rosto, envergonhado.
VISITADOR
Branca, estamos aqui para
ajudá-la. Mas é preciso também que você nos ajude, a nós que temos por ofício
defender a fé.
BRANCA
Não creio, senhor, que esteja no
momento em condições de ajudar quem quer que seja, mas no que depender de
mim...
VISITADOR
A Igreja, Branca, a sua Igreja,
está diante de um perigo crescente e ameaçador. Toda a sociedade humana, a
ordem civil e religiosa, construída com imensos esforços, toda a civilização e
cultura do Ocidente, estão ameaçados de dissolução.
BRANCA
E sou eu, senhor, sou eu a causa de tanta
desgraça?!
VISITADOR
Não é você, isoladamente; são
milhares que, como você, consciente ou inconscientemente, propagam doutrinas
revolucionárias e práticas subversivas. Está aí o protestantismo, minando os
alicerces da religião de Cristo. Estão aí os cristãos-novos, judeus falsamente
convertidos, mas secretamente seguindo os cultos e a lei de Moisés.
BRANCA
Se alguém converteu-se, sem estar
de fato convicto, é que foi obrigado a isso pela força. (Repete as palavras do
pai.) O ódio não converte ninguém.
PADRE
(Agora fala com mais rigor para com ela.) É uma acusação
injusta e falsa. Nunca empregamos a força para converter ninguém.
BRANCA
Meu avô foi convertido à força.
PADRE
E isso não isenta ninguém de
culpa. Se o ódio não converte, também o medo, a covardia ou a hipocrisia não
absolvem.
VISITADOR
É verdade, Branca. Não devemos
usar a força para converter, mas devemos ser rigorosos com os convertidos. Quem
assumiu, no batismo, o compromisso de conservar a fé, de ser membro da Igreja e
da cristandade até a morte, contraiu obrigações inalienáveis. E as autoridades
eclesiásticas têm o direito e o dever de exigir o cumprimento dessas
obrigações.
BRANCA Estou de acordo.
NOTÁRIO
(Com ar zombeteiro.) Ora viva!,
enfim ela está de acordo com alguma coisa!
VISITADOR
Alegro-me por ver que entendeu os
motivos da instituição do Tribunal do Santo Ofício e das visitações que o
inquisidor-mor ordenou para o Brasil.
BRANCA
Isto eu entendi; o que não entendo é
por que estou aqui. Não fui convertida, nasci cristã e como cristã tenho vivido
até hoje. Cristãos de nascimento são também meu pai e meu noivo, que também
estão presos, afastados de mim. Na verdade, senhores, não entendo coisa alguma.
O Visitador faz um sinal ao Padre
Bernardo, cedendo-lhe a palavra.
PADRE
(É para ele uma ingrata tarefa. Sua auto-suspeição o leva,
às vezes, durante o interrogatório, a exceder-se em rigor e no tom da acusação,
para cair, em seguida, numa ternura e num calor humano que o redimem e o
traem.) Branca, há um gesto que seu avô costumava fazer quando você era
criança. Você me disse, lembra-se?
Lembro-me.
PADRE
Pode repetir aqui esse gesto?
BRANCA
Posso, mas... precisaria fazê-lo em
alguém. Posso fazê-lo no senhor?
PADRE
(Fica um pouco constrangido, mas
concorda.) Pode.
Branca faz a bênção judaica. O Visitador e
o Notório trocam olhares significativos.
BRANCA Era assim. Mas o que tem isso?
PADRE
Você me disse também que não
gostava de lembrar do dia da morte de seu avô. E toda vez que o fazia tinha a
impressão de sentir aquele mesmo cheiro marcante e peculiar. Quer repetir que
cheiro era esse?
BRANCA
Cheiro de azeitonas.
Novamente o Visitador e o Notório trocam
olhares significativos.
PADRE
Nesse dia, seu pai lhe deu uma pataca e
mandou que você a pusesse sobre os lábios de seu avô.
BRANCA
Ele mesmo havia pedido, antes de morrer.
PADRE
(Mais severo.) E você fez o que seu pai
mandou.
O Visitador e o
Notório deixam escapar um “Oh!” de horror. Os padres também se escandalizam.
BRANCA
(Atônita, sem
entender o significado e muito menos a gravidade de tudo aquilo.) Eu era uma
criança... faria tudo que me mandassem...
agora mesmo eu o faria, se alguém me
pedisse!
NOTÁRIO (Horrorizado.) Agora
mesmo?!
PADRE (Temendo por ela.) Branca!
BRANCA
Acho que é uma coisa idiota
alguém querer que lhe ponham uma moeda sobre os lábios quando morrer, mas todo
desejo de um moribundo é um desejo sagrado!
VISITADOR
Acho que ela não sabe, realmente, o que
está dizendo.
O que eu não sei é aonde os
senhores querem chegar com essa estória de meu avô, patacas e azeitonas.
VISITADOR
Aquele gesto que você fez há pouco, é como os judeus
abençoam as crianças.
NOTÁRIO
Quando morre alguém, eles passam a noite
comendo azeitonas!
PADRE
A pataca que você pôs na boca de
seu avô era para ele pagar a primeira pousada, segundo a crença judaica.
VISITADOR
Tudo isto quer dizer, Branca, que
seu avô, cristão-novo, continuava fiel aos ritos judaicos. E que os praticava
em sua própria casa.
BRANCA
É possível. Se o batizaram à força, era
justo...
NOTÁRIO
Era justo?!
Reação dos padres.
VISITADOR Cuidado com as palavras,
Branca!
Uma pessoa deve ser fiel a si
mesma, antes que tudo. Fiel à sua crença.
PADRE Isso basta para alguém se salvar?
BRANCA
Devia bastar, penso eu...
PADRE
(Triunfante.) Então seu avô, que
continuou intimamente fiel à sua crença, conseguiu salvar-se! E todos os judeus
e todos os mouros, fiéis à sua religião e aos seus deuses, estão salvos!
BRANCA Como posso saber?!
PADRE
Você tem que saber! Porque o
cristão sabe que só existe um Deus verdadeiro e não pode haver mais de um.
BRANCA
Eu sei, eu creio nisso firmemente. Não estava falando por
mim, mas por meu avô.
VISITADOR
O que você acaba de insinuar, Branca, é uma grande heresia.
Não deve repetir.
Sim, senhor.
PADRE
(Volta a um tom mais brando, mais humano.) Branca, seu pai
costuma banhar-se às sextas-feiras?
BRANCA
Ora, senhores, sou uma moça e não fica bem estar observando
quais os dias em que meu pai toma ou não toma banho.
PADRE
E você? Costuma banhar-se às
sextas-feiras?
BRANCA
Costumo banhar-me todos os dias; acho que é assim que deve
fazer uma pessoa asseada.
PADRE Também às sextas-feiras?
BRANCA E por que não?
PADRE
E tem por costume vestir roupa
nova nesse dia, ou enfeitar-se com jóias?
BRANCA
Não uso jóias. A única que tenho
é este anel que meu noivo me deu no dia em que me pediu em casamento. E nunca o
tiro do dedo, nem mesmo quando tomo banho.
PADRE
Nem mesmo quando vai banhar-se no rio?
BRANCA Nem assim.
PADRE
Que traje costuma usar quando vai
banhar-se no rio?
BRANCA O traje comum...
PADRE
(Interrompe.) Mas naquela noite você não
estava com o traje comum.
Estava nua.
NOTÁRIO.
Nua!?
Reação dos padres.
BRANCA
Eu já expliquei, padre, foi uma noite
somente e ninguém viu...
VISITADOR
Que foi que a levou a proceder assim,
Branca?
O calor...
PADRE Seu corpo queimava...
VISITADOR Não ouviu alguma voz?
BRANCA Como?...
VISITADOR Uma voz incentivando-a a
despir-se...
BRANCA
Não, senhor, não ouvi voz nenhuma. Em
minha casa todos dormiam.
PADRE
O fato de não ter ouvido não quer
dizer que não estivesse possuída pelo Demônio.
BRANCA Pelo Demônio!
PADRE
Sim, o Demônio pode não falar,
mas é ele quem a empurra para o rio e a obriga a despir-se!
NOTÁRIO (Gravemente.) Há casos...
BRANCA
Padre, lembre-se de que eu mergulhei uma
vez no rio para salvá-lo.
Foi também o Diabo quem me empurrou?
PADRE
Já não sei se foi realmente para
salvar-me...
BRANCA Como, padre?!
PADRE
Naquele dia também você estava quase nua!
BRANCA Eu?!
PADRE
E me disse que devia ter salvo o
cofre, em vez do crucifixo. Isso prova que era Satanás quem falava por você.
BRANCA
Não, padre, não!
PADRE
(Chegando ao máximo da
exacerbação.) Se não estava possuída pelo Demônio, por que aproveitou-se do meu
desmaio para beijar-me na boca?!
VISITADOR Jesus!
NOTÁRIO Na boca! E seminua!
BRANCA
Fiz isso para que não sufocasse, para que
não morresse!
PADRE
(Grita.) Cínica! Foi esse o pretexto que Satanás arranjou
para o seu pecado!
Há um grande silêncio. Branca sente-se perdida e arrasada.
Padre Bernardo, por sua vez, cai numa espécie de exaustão, como depois de um
autoflagelo.
PADRE
(Sua voz desce a um tom de
oração.) Branca, você está diante do visitador do Santo Ofício. Ele tem
autoridade para puni-la. Leve ou duramente — depende de você. Aproveite a
misericórdia deste Tribunal, misericórdia que você não encontraria num tribunal
civil.
BRANCA Aproveitar, como?
PADRE
Da única maneira possível: declarando-se arrependida de
todos os pecados que cometeu. Dos pecados mortais e veniais e dos pecados que
bradam aos céus.
VISITADOR
Veja, Branca, que este é um
Tribunal de clemência divina. Seu simples arrependimento, se sincero, poderá
salvá-la. Qual o tribunal civil que absolve um criminoso por ele estar
arrependido?
PADRE
(Vendo que ela está indecisa, quase numa
súplica.) Branca...
BRANCA
(Sem muita firmeza.) Sim, eu
estou arrependida. Mas o meu arrependimento terá valor, se não estou convencida
de ter praticado esses pecados?
VISITADOR
E por não estar convencida disso
seria capaz de praticá-los novamente?
BRANCA Acho que sim.
PADRE
(Tem um gesto de desânimo.) Seria bom
chamar Augusto Coutinho.
VISITADOR
(Alto, para fora.) Tragam Augusto Coutinho!
O Guarda sai e volta com Augusto. Está
algemado e seu aspecto é deplorável. Foi torturado.
BRANCA
(Precipita-se para ele.) Augusto!
VISITADOR (Enérgico.) Não, Branca! Afaste-se.
Ela obedece,
afasta-se para um canto, enquanto o Guarda traz Augusto até o meio da cena,
deixa-o diante dos inquisidores e volta ao seu posto.
NOTÁRIO
(Coloca as mãos
algemadas de Augusto sobre os Evangelhos.) Jura sobre os Evangelhos dizer a
verdade?
AUGUSTO
Juro.
O Notário volta ao seu lugar.
VISITADOR
Augusto Coutinho, sabe que está ameaçado
de excomunhão?
AUGUSTO
Sei.
VISITADOR Como cristão, isso não o
apavora?
AUGUSTO
Apavora mais não ter a fibra dos primeiros
cristãos.
VISITADOR
Para que desejaria ter a fibra dos
primeiros cristãos?
AUGUSTO
Para resistir às torturas.
VISITADOR
Ordenei a tortura pela sua obstinação em
esconder a verdade.
AUGUSTO
E vão acabar obtendo de mim a
mentira. Isto é o que me apavora, mais do que a excomunhão.
VISITADOR
(Ao
Guarda.) Durante quanto tempo o torturaram?
GUARDA
(Adianta um passo). Quinze minutos.
VISITADOR
Lembre-se de que o limite máximo
permitido pelas normas do processo é uma hora.
GUARDA Paramos porque ele desmaiou.
VISITADOR
(Severo.) Não deviam ter chegado a tanto. A
finalidade da tortura é apenas obter a verdade. Tenho recomendações muito
enérgicas do inquisidor-mor para evitar os excessos.
GUARDA
Mas a culpa foi dele, senhor. Ele assinou
a declaração.
NOTÁRIO
É verdade, antes de ter início a
tortura, ele assinou a declaração de praxe. Tenho-a aqui. (Mostra um papel, que
lê, depois de engrolar algumas palavras.) “... e declaro que se nestes
tormentos morrer, quebrar algum membro, perder algum sentido, a culpa será toda
minha e não dos senhores inquisidores. Assinado: Augusto
Coutinho.”
GUARDA
Já vêem os senhores que a culpa é toda
dele. (Volta ao seu posto.)
VISITADOR
Aquilo que não foi obtido por
meio de torturas, talvez o simples bom senso obtenha.
PADRE
É a minha esperança. (Para Augusto.) Conhece
essa moça, Augusto?
AUGUSTO
O senhor sabe que sim. É minha noiva e já
seria minha esposa se...
se tudo isso não tivesse acontecido.
PADRE
Pois ela ainda poderá ser sua esposa, se
você nos ajudar a salvá-la.
AUGUSTO
Eu faria tudo para isso.
PADRE
Então, salve-a. Diga a verdade.
Ainda que possa parecer o contrário, a única maneira de ajudá-la é fazê-la
reconhecer os próprios erros e arrepender-se.
AUGUSTO
Mas que espécie de verdade querem
que eu diga? Que a vi nua, banhando-se no rio? Que a vi invocando os diabos na
boca dos formigueiros? Para salvá-la é então preciso lançar calúnias e infâmias
contra ela? E quem me garante que não se aproveitarão disso justamente para
condená-la? Não, podem arrancar-me um braço, uma perna, mas não me arrancarão uma
palavra que não seja verdadeira.
BRANCA
(Grita.) Não, Augusto, não! Se o
torturarem muito, pode dizer o que eles quiserem! Não quero que sofra por minha
causa!
VISITADOR
(Num gesto enérgico para que ela se cale.)
Chiiii!
PADRE
(Mostra a bíblia apreendida.) E este
livro, é também calúnia?
AUGUSTO
Este livro é uma bíblia e fui eu quem lhe
deu de presente.
PADRE
Uma bíblia em português. Não
sabia que estava lhe dando um livro proibido pela Igreja?
AUGUSTO
Para mim a bíblia é a bíblia, em qualquer
língua.
VISITADOR
O que está afirmando é uma grave heresia.
PADRE
Não se arrepende de tê-la arrastado a essa
heresia?
AUGUSTO
Não. Não me arrependo porque
assim a fiz conhecer a sabedoria e a beleza dos Evangelhos.
PADRE
Rebela-se então contra uma determinação da
Igreja?
AUGUSTO
Não me parece que seja uma
determinação da Igreja, mas de alguns prelados, que não são infalíveis.
PADRE É uma determinação do papa.
VISITADOR
(Incisivo.) Nega, por acaso, a autoridade do
papa?
AUGUSTO
Não, não nego.
VISITADOR Nega a autoridade da
Igreja?
AUGUSTO
Não, não nego.
VISITADOR
Acredita na justiça e na misericórdia do
Tribunal do Santo Ofício?
AUGUSTO
(Tem uma leve hesitação.) Acredito
na justiça e na misericórdia de Deus.
VISITADOR
(Já um pouco irritado.) Nega que o Santo
Ofício seja justo e misericordioso?
AUGUSTO
Afirmo que Deus é justo e misericordioso.
VISITADOR
(Não pode conter um gesto de irritação.) Acho que devemos
encerrar aqui esta parte do interrogatório.
O Padre Bernardo assente com a cabeça.
VISITADOR Podem levá-lo.
O Guarda avança para levar Augusto.
BRANCA
Senhores, eu queria fazer um
pedido, confiando na misericórdia do Tribunal.
VISITADOR Faça.
BRANCA
Antes que nos separem novamente,
podíamos conversar durante alguns minutos?
PADRE
Os regulamentos não permitem. As normas do
processo...
VISITADOR
(Interrompe, conciliador) Não acho que devamos
ser assim tão rigorosos. Não vejo inconveniente em que eles fiquem juntos por
alguns momentos e conversem.
PADRE
(Evidentemente contrariado.) Perdoe-me
a interferência; é Vossa Reverendíssima quem decide.
VISITADOR
(Ao
Guarda.) Pode deixá-los um instante. (Levanta-se e sai, seguido do Padre
Bernardo, do Notário, do Guarda e dos outros padres.)
Augusto senta-se no chão, esgotado. Branca
senta-se a seu lado.
BRANCA
(Após alguns segundos de hesitação, ela se
lança nos braços dele, que a beija nos cabelos.) Meus cabelos ainda cheiram a
capim molhado?
AUGUSTO
(Aspira.) Não.
BRANCA Que perfume têm agora?
AUGUSTO
Nenhum. Parecem um manto. Cheiram a pano.
BRANCA
(Muito triste.) Pano... E você gostava de beijá-los e
aspirar o seu perfume.
AUGUSTO
Talvez a culpa seja minha, que já estou
incapaz de sentir.
BRANCA Que fizeram com você?
AUGUSTO
Deitaram-me numa cama de ripas e
me amarraram com cordas, pelos pulsos e pelas pernas. Apertavam as cordas,
pouco a pouco, parando a circulação e cortando a carne. (Ele lhe mostra os
punhos, ela os sopra e beija.) E faziam perguntas, perguntas, e mais perguntas.
As mais absurdas. As mais idiotas.
BRANCA
Como você deve ter sofrido!
AUGUSTO
A dor física não é tanta; dói mais o aviltamento. Vamos nos
sentindo cada vez menores, num mundo cada vez menor.
BRANCA
É mesmo, o mundo se fecha cada vez mais
sobre nós. E por quê?
Que fizemos? Que é que eles querem de
você? Que me acuse?
AUGUSTO
Querem fazer de mim o que fizeram de seu
pai.
BRANCA Meu pai, que fizeram com ele?
AUGUSTO Um trapo.
BRANCA
Onde ele está?
AUGUSTO
Na minha cela.
BRANCA Também o torturaram?
AUGUSTO
Não foi preciso. O que fizeram comigo foi
suficiente.
BRANCA
E tudo isso... é por minha causa.
Vocês estão pagando pelos meus erros.
AUGUSTO
Quais são os seus erros, Branca?
BRANCA
(Angustiada.) Não sei... Devo ter
cometido alguns, sim. Mas eles me acusam de tanta coisa. E parecem tão certos
da minha culpa. Talvez o meu erro maior seja não entender. Ou quem sabe se não
quero entender?
AUGUSTO
A mim eles não conseguiram e não
conseguirão jamais convencer de que você não é a criatura mais pura que já
nasceu. Ainda que tenha cometido erros, ainda que tenha feito confusões, ainda
que tenha pecado.
BRANCA
Você diz isso porque me ama. Nós
não podemos ver as nossas imperfeições, porque estamos um dentro do outro. Mas
eles, eles nos olham de fora e de cima. Eles sabem que eu não sou assim. E é
egoísmo da minha parte permitir que você e papai sofram o que estão sofrendo,
quando bastaria concordar com tudo, reconhecer todos os pecados, mesmo aqueles
que fogem ao meu entendimento, e cumprir a pena que me for imposta.
AUGUSTO
Não, Branca, não.
BRANCA
(Está de pé, muito excitada.) Era
o que eu já devia ter feito. Assino em branco que reconheço todas as culpas de
que me acusam ou venham a acusar-me e pronto. Assim, talvez devolvam a vocês a
liberdade e a mim a luz do sol! (Sobe ao plano superior e grita.) Guarda!
Guarda!
AUGUSTO
Branca, por Deus, não faça isso!
Por que terei então resistido a todas as torturas? Para quê?
BRANCA Mas eu não quero que você sofra!
AUGUSTO Mas alguém tem de sofrer!
BRANCA Não por minha causa.
AUGUSTO
Por uma causa qualquer, grande ou
pequena, alguém tem que sofrer. Porque nem de tudo se pode abrir mão. Há um
mínimo de dignidade que o homem não pode negociar, nem mesmo em troca da
liberdade.
Nem mesmo em troca do sol.
BRANCA Nem mesmo em troca do sol.
GUARDA
(Entra.) Que foi? Alguém chamou?
BRANCA
(Hesita ainda um instante.) Não, ninguém
Chamou.
GUARDA
É, mas o tempo já está esgotado. Era só um
instante.
BRANCA
(Toma as mãos de
Augusto e beija-as. Há nesse gesto gratidão, amor e admiração.) Será que isto
vai durar eternamente?
AUGUSTO
Não creio. É demasiado cruel e demasiado
idiota para durar.
Augusto e o Guarda iniciam a saída. O
Guarda pára e volta-se para Branca.
GUARDA
Não fui eu que botei ele no potro.
Potro?
GUARDA
Na cama com ripas. Só levei ele até lá e
fiquei olhando. Sou obrigado.
(Sai com Augusto.)
BRANCA
Todos são obrigados. Obrigados a denunciar, a prender, a
torturar, a punir, a matar. Mas obrigados por quem?
Muda a luz.
PADRE
(Entra.) É você, Branca, você quem nos
obriga a proceder assim.
BRANCA Eu?
PADRE
A tentação que está em você, o
pecado que está em você, a obstinação demoníaca que está em você.
BRANCA
Que será de mim, então, padre, se sou
portadora de tanto veneno?
PADRE
É nosso dever exterminar todas as
venenosas plantas da vinha do Senhor, até as últimas raízes.
BRANCA Exterminar?!
PADRE
É um penoso dever que nos foi imposto. A
ele não podemos fugir.
Sob a pena de deitar a perder toda a
vinha.
BRANCA
Como? Além do mais, temem os
senhores que eu contamine outras pessoas?
PADRE Você já contaminou outras pessoas.
BRANCA Eu, padre? Quem? Augusto?
PADRE
E continuará contaminando muitas
outras, porque basta aproximarse de você para cair em pecado.
BRANCA
Padre, muitas pessoas se
aproximam de mim sem que eu tenha sobre elas a menor influência. O senhor mesmo
já foi várias vezes à minha casa, fez-se meu confessor e meu amigo...
PADRE Eu sei o quanto isso
me custou! (Surpresa.) Padre!
PADRE
(Arrepende-se.) Não devemos falar nesse
assunto.
BRANCA
Que assunto, padre? Eu lhe fiz
algum mal? É preciso que me diga, pois assim talvez eu compreenda alguma coisa.
PADRE
Veja... (Mostra os lábios descarnados.)
BRANCA
Que foi isso? Seus lábios descarnados...
PADRE
Queimei-os com água fervendo. Os lábios, a língua, o céu da
boca, para destruir o sentido do gosto.
BRANCA
E por que fez isso?!
PADRE
Para eliminar o gosto impuro dos
seus lábios. Mas o gosto persiste. Persiste. (Cai de joelhos, com o rosto entre
as mãos.)
BRANCA
Eu... sinto muito. Acho que não devia
mesmo ter feito o que fiz.
PADRE
(Ainda com o
rosto entre as mãos, dobrado sabre si mesmo.) Chego a ter alucinações.
BRANCA
Se soubesse que ia lhe fazer tanto mal...
PADRE
Antes de você aparecer, eu vivia em paz
com Jesus.
BRANCA
Eu também, antes de conhecê-lo,
vivia na mais absoluta paz com Deus.
PADRE
É possível que eu esteja sendo
submetido a uma prova. E faz parte dessa prova o ter que julgá-la e puni-la.
BRANCA
Agora já não sei de mais nada. Os
senhores lançaram a dúvida e a confusão no meu espírito e eu já nem tenho
coragem de pedir a Deus que me esclareça. Cada gesto meu, mesmo o mais ingênuo,
parece carregado de maldade e destruição.
PADRE
Se é uma provação, que seja bem
rigorosa, para demonstrar a minha fidelidade e o meu amor ao Cristo. Que todos
os suplícios me sejam impostos, à minha alma e à minha carne.
E o pior é que já não conto com mais ninguém. (Sente, pela
primeira vez, em toda a sua terrível realidade, que está só e perdida. E que
nada modificará o seu destino.)
PADRE
(Mãos postas e vergado sobre si
mesmo com os lábios quase tocando o solo, reza um ato de contrição.) Senhor meu
Jesus Cristo, Deus e homem verdadeiro, Criador e Redentor meu, por serdes Vós
quem sois sumamente bom e digno de ser amado sobre todas as coisas; e porque
Vos amo e estimo, pesa-me, Senhor, de todo o meu coração, de Vos ter ofendido;
pesa-me também por ter perdido o céu e merecido o inferno; e proponho
firmemente, ajudado com os auxílios de Vossa divina graça, emendar-me e nunca
mais Vos tornar a ofender. Espero alcançar o perdão de minhas culpas pela Vossa
infinita misericórdia. Amém. (Sente-se mais aliviado, levanta-se e, pela
primeira vez, nesta cena, pousa os olhos em Branca. Um olhar já tranqüilo e de
imensa piedade.) Mandaram-me visitá-la pela última vez.
BRANCA
Pela última vez?
PADRE
Sim, para lhe oferecer a última
oportunidade de arrependimento e perdão.
BRANCA
E se eu recusar?
PADRE
Só nos restará o relaxamento ao braço
secular.
BRANCA
O que é isso?
PADRE
Isso quer dizer que você será entregue à justiça secular,
que a julgará por crime comum. E certamente a condenará.
BRANCA
À prisão?
PADRE
Não, o braço secular é sempre mais severo.
BRANCA
(Apavora-se.) À fogueira?!
PADRE
É bom que você saiba o perigo que corre.
BRANCA
(Cai em pânico.) Não! Não podem
fazer isso comigo! Eu não mereço! É uma maldade! E o senhor que tudo prometeu
fazer para salvar-me.
PADRE
Já nada mais posso fazer por
você, Branca. E desde o princípio seu destino dependeu sempre de você mesma.
Você escolherá.
Mas que posso escolher? É claro que não
quero ser queimada viva!
PADRE Está disposta a arrepender-se?
BRANCA
Estou disposta a tudo. Entrego-me
em suas mãos e nas mãos do Santo Ofício.
PADRE
Entrega-se sinceramente arrependida,
Branca?
BRANCA
Que importa? Os senhores
venceram. Vá, diga ao visitador que reconheço os meus pecados e que estou
disposta a arrepender-me e cumprir a penitência que me for imposta.
PADRE
Você não está sendo levada somente pelo
desespero e pelo medo?
BRANCA
E desde o princípio, não foi ao
desespero e ao medo que tentaram levar-me?
PADRE
Não, Branca. Tentamos levá-la a
um reencontro com a verdadeira fé cristã. Não usamos a força contra você;
tentamos convencê-la pela persuasão.
Sim, uma bonita persuasão!
Prendem-me entre quatro paredes, sem luz e sem ar, e ameaçam-me com a fogueira!
Prendem meu pai e torturam meu noivo — são bonitos métodos de persuasão.
PADRE
Sua arrogância mostra que o Demônio ainda
não a abandonou.
(Inicia a saída.)
BRANCA
Padre! Espere! (Corre até ele e
arroja-se aos seus pés.) Perdoe-me! Não sei o que estou dizendo. A verdade é
que preciso de sua piedade. Aqui me tem, padre, humilde e humilhada,
sinceramente arrependida de tudo, de tudo que decidirem que devo arrepender-me.
PADRE
(Pousa a mão sobre a
cabeça dela, num gesto de piedade e amor, depois a retira rapidamente.) Vou
transmitir sua decisão ao visitador.
(Sai.)
Branca fica
ainda um tempo estendida no chão. Muda a luz. Entra Simão.
SIMÃO
Branca! (Ele traz, pregada à roupa, no
peito e nas costas uma grande cruz de pano amarelo.)
BRANCA
Pai!
SIMÃO
(Corre a abraçá-la.) Filhinha! Eles a
maltrataram?
BRANCA Não muito. E o senhor, está bem?
SIMÃO
Estou vivo, pelo menos. E é isso que
importa, não acha?
BRANCA
Sim, é o principal.
SIMÃO
É uma loucura pensar que, num
momento desses, se possa salvar alguma coisa além da vida. Desde o primeiro
momento compreendi que devia aceitar tudo, confessar tudo, declarar-me
arrependido de tudo. Vamos nós discutir com eles, lutar contra eles? Tolice.
Têm a força, a lei, Deus e a milícia — tudo do lado deles. Que podemos nós
fazer? De que adianta alegar inocência, protestar contra uma injustiça? Eles
provam o que quiserem contra nós e nós não conseguiremos provar nada em nossa
defesa. Bravatas? Também não adiantam. Eu vi o que aconteceu com Augusto.
BRANCA
O senhor o viu ser torturado?
SIMÃO Vi. As duas vezes.
Duas vezes? Então o torturaram novamente!
SIMÃO Ele fez mal em não falar.
BRANCA
Mas queriam que ele me
denunciasse. Que me acusasse de coisas terríveis e absolutamente falsas!
SIMÃO
Que importa que sejam falsas? Se
você e ele confessassem, salvariam a pele!
BRANCA
Augusto acha que é preciso defender um
mínimo de dignidade.
SIMÃO
Em primeiro lugar, o homem tem a
obrigação de sobreviver, a qualquer preço; depois é que vem a dignidade. De que
vale agora para nós, para os pais dele, para você, para ele mesmo, essa
dignidade?
BRANCA
Como? (Ela percebe.) Que fizeram com
Augusto?
SIMÃO
(Faz uma pausa. As palavras custam a
sair.) Ele não resistiu...
(Num sussurro.) Morreu! (Mais forte.) Eles
o mataram! (Seus joelhos vergam, repete baixinho.) Eles o mataram... Eles o
mataram...
SIMÃO
Eu sabia que ele não ia resistir. Estava vendo!... depois
de tudo, ainda o penduraram no teto com pesos nos pés e o deixaram lá...
Quando os guardas voltaram, ainda tentaram
reanimá-lo, mas...
BRANCA
(Sua dor se
traduz por um imenso silêncio. Subitamente:) E o senhor não podia ter feito
nada?!
SIMÃO
Eu?...
BRANCA
Sim, por que não gritou, não chamou
alguém?
SIMÃO Pensei em baixar a corda. Mas...
BRANCA
Pois então.
SIMÃO
Eles têm leis muito severas para
aqueles que ajudam os hereges. Eu já estava com a minha situação resolvida, ia
ser posto em liberdade...
Bastava um gesto...
SIMÃO
E o que me custaria esse gesto?
Um homem deve pesar bem suas atitudes, e não agir ao primeiro impulso. Eu podia
ter tido o mesmo destino que ele. Era ou não era muito pior?
BRANCA
Não sei se seria pior...
SIMÃO
Você preferiria que eu morresse
também, que tivéssemos todos os nossos bens confiscados ou que fôssemos punidos
com uma declaração de injúria até a terceira geração? Se nada disso aconteceu,
foi porque eu agi com inteligência e bom senso.
BRANCA
E agora, como é que o senhor vai conseguir
viver, depois disso?
SIMÃO Não entendo o que você quer dizer...
BRANCA
Augusto morreu porque o senhor
não foi capaz de levantar um dedo em sua defesa.
SIMÃO Não foi bem assim...
Porque o senhor não quis se comprometer.
SIMÃO Não foi por isso que ele morreu.
BRANCA
Teria resistido, se a tortura tivesse sido
abreviada.
SIMÃO Sim, mas...
BRANCA
Para isso teria bastado que o senhor
baixasse a corda.
SIMÃO
Eu já lhe expliquei...
BRANCA
(Grita.) E o senhor não foi capaz! O
Senhor não foi capaz!
SIMÃO
Minha filha, eu compreendo o seu
sofrimento. Eu também sinto muito. Mas não é justo que você se volte agora
contra mim. Não foi eu quem matou Augusto. Foram eles. Os carrascos, a
Inquisição.
BRANCA
O senhor também o matou. E o que
mais me horroriza é que o senhor é um homem decente.
SIMÃO
Branca, você não sabe o que está dizendo!
BRANCA
O senhor é tão culpado quanto eles.
SIMÃO
Não, ninguém pode ser culpado de
um ato para o qual não contribuiu de forma alguma.
BRANCA O senhor contribuiu.
SIMÃO
Não matei, não executei, não participei de
nada!
BRANCA
Silenciou.
SIMÃO
Também por sua causa. Por nossa
causa. Era um preço que teríamos de pagar.
BRANCA Preço de quê?
SIMÃO
É uma ilusão imaginar que poderíamos sair daqui,
todos, sem que nada nos tivesse acontecido. Alguém teria de ser atingido mais
duramente.
BRANCA
E o senhor acha que só ele o foi.
SIMÃO Digo diretamente.
BRANCA
E imagina que com isso matou a
sede de violência, resgatou a nossa quota.
SIMÃO
De certo modo, acho que sim. Devo apenas levar esta cruz na
roupa durante um ano. É humilhante, mas ainda é uma sorte. Se você abjurar,
pode ser que lhe dêem pena semelhante e estaremos livres.
BRANCA
Se eu abjurar... o senhor quer que eu
também seja cúmplice.
SIMÃO Cúmplice de quê?
BRANCA Da morte de Augusto.
SIMÃO
Absurdo! Você não tem nada com isso!
BRANCA
Tenho. Todos nós
temos. Quem cala, colabora.
SIMÃO
Não tem sentido o que você está dizendo! Não é possível que
você não entenda que está perdida se não ceder ao que eles querem, se não
confessar e abjurar tudo.
BRANCA
Há um mínimo de dignidade que o homem não pode negociar,
nem mesmo em troca da liberdade. Nem mesmo em troca do sol.
SIMÃO
(Olha a filha horrorizado.) Que Deus se
compadeça de você!
O Guarda entra e arrasta Simão.
Muda a luz. O Visitador, o Notório e o
Padre Bernardo entram com os padres.
VISITADOR
Branca, vamos, mais uma vez, dar
provas de nossa tolerância. Vamos permitir que permaneça de pé, enquanto o
senhor notário lê o ato de abjuração que você deverá assinar.
O Notório toma posição, desenrola um
papel.
BRANCA
É inútil, senhores. Não vou abjurar coisa alguma. O que
quero, o que espero dos senhores, é minha absolvição.
Reação dos padres.
VISITADOR (Indignado.) Como?! Ela não
ia abjurar?
PADRE
Ia, prometeu...
NOTÁRIO Essa agora!
VISITADOR
Branca, você não se disse disposta a
abjurar?
BRANCA
Disse, num momento de fraqueza. Mas não posso reconhecer
uma culpa que sinceramente não julgo ter. Se sou inocente, se nada podem provar
contra mim, o que devo suplicar a este Tribunal é que reconheça a minha
inocência.
PADRE
Pela última vez, Branca...
VISITADOR
(Interrompe.) Não adianta, padre, o senhor
nada conseguirá dela.
PADRE
Eu lhe suplico, senhor visitador,
apelo para sua imensa misericórdia, dê-lhe uma última oportunidade.
VISITADOR
Já lhe demos todas. Acho que nos
iludimos com ela desde o princípio. Sua obstinação e sua arrogância provam que
tem absoluta consciência de seus atos. Não se trata de uma provinciana ingênua
e desorientada; tem instrução, sabe ler e suas leituras mostram que seu
espírito está minado por idéias exóticas. Declara-se ainda inocente porque quer
impor-nos a sua heresia, como todos os de sua raça. Como todos os que pretendem
enfraquecer a religião e a sociedade pela subversão e pela anarquia.
BRANCA
Mas senhores, eu não pretendi nada disso! Nunca pensei
senão em viver conforme a minha natureza e o meu entendimento, amando Deus à
minha maneira; nunca quis destruir nada, nem fazer mal algum a ninguém!
VISITADOR
(Corta-lhe a palavra com um gesto.) Seu caso já não é
conosco, Branca. O Tribunal eclesiástico termina aqui a sua tarefa. O braço
secular se encarregará do resto.
BRANCA
(Receosa.) Que resto, senhor?
VISITADOR
O poder civil, a quem cabe defender a sociedade e o Estado,
vai julgá-la segundo as leis civis. Nós lamentamos ter de declará-la separada
da Igreja e relaxada ao braço secular. Deus e todos vós sois testemunhas de que
tudo fizemos para que isto não acontecesse. Procedemos a um longo e minucioso
inquérito, em que todas as acusações foram examinadas à luz da verdade, da
justiça e do direito canônico. À acusada foram oferecidas todas as
oportunidades de defesa e de arrependimento. Dia após dia, noite após noite,
estivemos aqui lutando para arrancar essa pobre alma às garras do Demônio. Mas
fomos derrotados. Desgraçadamente. (Sai, seguido do Notório e dos padres.)
BRANCA Os senhores foram derrotados... E eu?
PADRE
Você, Branca, vai amargar a sua vitória.
BRANCA
Eu sei. E sei também que não sou a
primeira. E nem serei a última.
Os guardas entram e amarram-na pelos pulsos e pelo
pescoço com cordas e baraço, e a arrastam assim por uma rampa para o plano
superior, onde surgem os reflexos avermelhados da fogueira. Padre Bernardo, no
plano inferior, a vê, angustiado, contorcer-se entre as chamas. Contorce-se
também, como se sentisse na própria carne. Um clamor uníssono, a princípio de
uma ou duas vozes, às quais vão se juntando, uma a uma, as vozes de todos os
atores, em crescendo, até atingirem o limite máximo, quando cessam de súbito.
PADRE
(Caindo de joelhos.) Finalmente,
Senhor, finalmente posso aspirar ao Vosso perdão!
[1] Lendas e superstições, Edições
O Cruzeiro.
[2]
A Inquisição — História de uma Inquisição controvertida.
[3] Padre José Bernardo, ob.
cit.
Branca é
realmente culpada de heresia. De acordo com a monitoria do inquisidor-geral,
instruções para a configuração das heresias, ela está “enquadrada” em vários
artigos, sendo, além disso, acusada de atos contra a moralidade e da posse de
livros proibidos. Mas, do princípio ao fim, ela caminha de coração aberto ao
encontro de seu destino, acreditando que a sinceridade e a pureza que lhe moram
no coração a absolvem de tudo. Mais importante do que
[4]
Capistrano de Abreu, Um visitador do Santo Oficio. 20
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