A estréia de Complexo de Elecktra

Paixão e morte de mãe Ulirca

                 De minha admiração pelo Grupo Teatral Máschara todos já sabem, por sua ousadia, persistência e criatividade. Apesar de todas as provações que enfrentam, Cléber Lorenzoni, Dulce Jorge e sua trupe, tem sempre algo novo para oferecer, uma chama que insiste em se manter acesa. Logicamente em meio a tão pequenina força que a arte tem para essas bandas, seus impulsos parecem canoas a deriva. Diáfana seria minha alegria se surgissem outras Cias. Teatrais, mais grupos de danças, (não escolas de danças, grupos de danças), mais artistas de rua, animadores, etc... Triste espera, os artistas de nossa Mui Leal cidade, são obrigados a partir.
                     O Máschara mesmo, perdeu dezenas de ótimos artistas que iluminavam nossos poucos e despreparados palcos. Temos Angelica Ertel e Lauanda Varone, fazendo teatro no estado de São Paulo. Alexandre Dill com um grupo de teatro em Porto Alegre, Nádia Régia – professora de teatro, Leonardo Oliveira também fazendo seu teatro no sudeste do país, Simone De Dordi como professora e atriz solta pelo mundo e ainda Gelton Quadros, ator e diretor em Santa Maria. Além de outros que foram embora muito jovens, perdemos contato e podem estar atuando por aí. Que orgulho de quem não desiste de seus sonhos!
                    Depois de anos, o Máschara estreou Complexo de Elecktra, anos por que isso era esperado há muito. Em 2003 Cléber Lorenzoni já fazia leituras desse texto. Admiro esse saber o momento certo que o Máschara possui. A Maldição do Vale Negro, Os saltimbancos, O Santo e a Porca e mesmo Complexo de Ereda, foram peças que ficaram anos sendo estudadas, mas que somente em seus momentos certos, subiram ao palco. Complexo de Elecktra é a XXVIII montagem da trupe, e tem como protagonista a já conhecida Alessandra Souza, que, aliás, cai como uma luva para o papel. Embora, ainda possa apoderar-se melhor do posto que ocupa.  
                Sem espaço  apropriado para exercer sua arte, o grupo criou algo totalmente ousado para Cruz Alta, um espetáculo adaptado à um prédio semiabandonado, onde a plateia, reduzida a dez pessoas, vai acompanhando cenas e atores por vários ambientes e andares. A obra que se revela durante uma hora e vinte minutos é um espetáculo aos olhos, cenários provocantes, curiosos. Flores, carnes, cheiros, água, velas, o frio em contato com a pele. Enfim, uma gama de elementos, signos, que vão provocando, instigando. 
                    O mito grego de Electra e Orestes é o plano de fundo de uma obra muito exclusiva. A adaptação de Ivo Bender é a mais presente, mas evoca Electra de Sófocles, Electra de Eurípides e O Luto cai bem em Electra de Eugene O’Neill, visões de uma tragédia tão conhecida. Uma tragédia para quem gosta de teatro. O que mais me atrai é que não é uma obra comercial, é teatro, teatro em sua raiz mais pura. Mas tragédia não é algo simples de se fazer, a tragédia reside no meio do corpo humano. O drama é superior, lida com a mente, as dores do coração. A comedia desce ao solo. Lida com o interesse sexual, com as escatologias, fezes, gases, etc... Já a tragédia reside no centro, o estomago, o ventre. A dor interna e profunda. A tragédia sai das entranhas. Precisa de força, de uma força e compreensão que alguns membros do elenco ainda não têm maturidade para compreender, mas que devido aos personagens que ocupam não chega a prejudicar a montagem. A concepção da tragédia em si não mudou muito desde os gregos até nós, pois muitos aspectos e preceitos ainda são os mesmos. O que mudou foi a sociedade e portanto a atmosfera que cercam seus personagens.  Ainda se vê por exemplo a ideia aristotélica de que tudo acontece em um único lugar, em uma única grande cena. Ou seja, tudo o mais acontece em lembranças. Enquanto Ereda está em casa, esperando pelo irmão. Ali a protagonista dispensa Werner, discute com o irmão e recebe Henrique. Outra ideia Aristotélica que mantém-se é a historia do nobre e prospero que cai em desgraça e fica na miséria. Embora atualmente essa nobreza seja representada em valor moral ou intelectual.  Os assassinatos que no mundo grego da tragédia aconteciam fora da cena, e eram apenas mencionados pelo coro, agora são introduzidos à cena, o que torna tudo muito mais visceral.
                      O elenco principal: Souza, Lorenzoni, Goulart e Casagrande, esforça-se em envolver e provocar a plateia. Cléber e Alessandra alcançam estremos em alguns momentos, no entanto o embate entre as duas mulheres da tragédia pode e deve evoluir muito mais. Casagrande e Lorenzoni, parceiros no palco e na vida real conseguem um clima de intimidade perfeito principalmente na cena do assassinato do pai.  Ereda/Electra e Henrique/Orestes são descendestes do rei Átrida e portanto possuem, dentro do conceito da universalidade, um preceito moral, uma grandiosidade justa, que os leva a buscar o equilíbrio final. Isso se rebate com uma realidade onde a vingança não é mais permitida. E isso nos ascende um certo desconforto em aceitar a heroína, o que pode prejudicar ou equilibrar as forças da narrativa.  Ulrica matou passionalmente. Ereda tramou mortes, movida pela vingança...  
                Até certo ponto da tragédia inspirada em Sófocles temos uma Electra que busca vingança, (lei de talião), já em Eurípides, essa vingança incorre no desejo não natural de uma filha por um pai, o que também ecoa como algo errado, doentio.  Em Complexo de Elecktra tudo é muito complexo e portanto difícil de tomar partido. Posteriormente, bom de debater acaloradamente. A Ulrica de Cléber Lorenzoni é uma mulher oprimida pela ausência do amante, frágil até certo ponto, forte enquanto tinha um comparsa ao seu lado. Cléber já nos deu uma quantia igual de personagens masculinos e femininos, e fico fascinada com essa capacidade de se transformar que ele carrega.  Arte não tem gênero. Mas personagem tem, e ele sabe certamente o gênero de cada um. Por essa mesma ótica, Evaldo Goulart cresceu muito, apresentou-nos um Henrique jovem, quase a ponto de estragar tudo. Mas consegue criar uma presença intensa, um jogo agradável e uma já presente percepção de sua tarefa teatral. Falta-lhe a maturidade que logicamente virá com dedicação, e tempo de teatro. Seu Orestes é frágil, dominado como deve ser, talvez um pouco mais de desconfiança do que a irmã espera dele, ajudaria o interprete a deixar mais redonda sua criação. O misto de ódio e amor pela mãe precisam ir a extremos, igualmente a compreensão da maldição que recairá sobre ele e a irmã após a morte de Ulrica.
Raquel Prates é a mais nova atriz do grupo e seu trabalho está no ponto. Há um jogo sutil e uma composição muito pontuada em sua velha cega. Um começo ousado, embora a atriz traga já uma historia artística que lhe concede ônus de capacidade para longas empreitadas. O grito que veio de suas entranhas em “orgulhosa” foi extremamente intenso e marcou-me muito. Giacomini e Maldaner são jovens atores, com pouco tempo de palco e por isso mesmo precisam correr atrás para que suas cenas não deixem a desejar. Gabriel brilha em uma ponta importantíssima do espetáculo, e deve bem como o colega mencionado, compreender o conceito de Complexo de Elecktra. Embarcar nesse expressionismo que a direção vem implantando aos poucos com a ajuda da caracterização e semiótica do trabalho.
                     Douglas Maldaner, por ser um ator matemático, precisa ensaiar mais, para que tudo lhe flua. E esse fluir vai ajudar no andamento do espetáculo. Esse fluir envolve expressividade, sonoridade e mordida.
                     Complexo de Elecktra consegue dar curva, mas penso que os atores não devam esperar tanto pelo público, estes precisam ser provocados a ir atrás da cena, ou o espetáculo correrá o risco de perder em ritmo. Alessandra e Evaldo precisam de nuance, de textos entre dentes, de força, de textos cuspidos, falas mastigadas e alma crispada. Renato Casagrande convence mas pode parecer mais velho. A maquiagem de Raquel Prates pode ser ainda mais carregada. Ou seja, se vamos mergulhar no conceito, é preciso mergulhar mesmo. E Cléber Lorenzoni precisa se preocupar agora em relaxar e atuar brilhantemente como é de seu feitio e dirigir menos.
                  Há também um cuidado necessário com os atropelos nos textos. Os atores não estão se ouvindo, ouvindo a respiração dos colegas em algumas cenas. A trilha do espetáculo não tão boa quanto a sonoplastia e os cenários que vão se revelando, concorre com ruídos e movimentações há ponto de as vezes nem percebermos que há musica em determinada cena.
                     Feliz voltei para casa após o espetáculo na certeza de que presenciei algo extremamente vivo, algo verdadeiro; quando percebemos nos atores o medo de errar, a vontade de agradar a plateia, nos sentimos investindo em algo que vale a pena. Espero que o elenco de Complexo de Elecktra compreenda sua belíssima função em nosso panorama artístico e tenha forças para continuar.


Arte é vida


Alessandra Souza (**)
Renato Casagrande (**)
Evaldo Goulart (***)
Gabriel Giacomini (*)
Raquel Prates (***)
Cléber Lorenzoni (**)


Douglas Maldaner (*)

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