domingo, 21 de dezembro de 2025

Natal dos CRAS com Grupo Máschara


 

1319-Auto de Natal - (tomo 01) Para todos os povos, para todas as raças.



                Terminei de assistir agora a filmagem do Auto de Natal, apresentado na frente do Centro Cultural Adão Ortiz. Não tive oportunidade de ir até Alegrete, assistir ao espetáculo dirigido pelo amigo Kléber Lorenzoni, mas esforcei-me em observar com cuidado as filmagens e todos os materiais com que as redes nos banharam nos últimos dias. Depois de tantos meses de trabalho, a COARTE nos deu um trabalho que nos comove tanto pela simplicidade, quanto pelos sentimentos natalinos.
               Calma, não há nada de simples em colocar mais de cinquenta pessoas no palco, mas já aprendi que Lorenzoni gosta disso, de uma multidão em cena. Também não é nada simples trabalhar com a mitologia cristã. Por algum motivo, alguns cristãos não gostam que chamemos suas historias sagradas de mitos, muito embora, as narrativas mitológicas, forneçam um código ético, dando sentido e orientação ao comportamento a ser seguido. Eu prezo muito todas as religiões e sei o quanto o Máschara, embora nos conte de várias formas as histórias bíblicas em seus atos e paixões, respeita muito o cânone.
                    A direção opta pela ação dentro da ação. Um velho ancião do templo, conta a um pequeno menino, a historia da criação. Para minha surpresa, o menino era o próprio Jesus. Essa capacidade teatral de ir e voltar no tempo, pode até confundir alguns mais principiantes na plateia, mas prova por A + B, que o teatro é tão capaz quanto o cinema, de nos envolver e contar as mais abstrusas narrativas. 
                         Lorenzoni escolheu passagens esparsas e enriqueceu tudo com figurinos cheios de cores. Algo típico do teatro medieval, de onde nasce a linguagem apresentada. Uma aula de como o teatro era feito pela Europa a partir do século V: quarta parede quebrada, teatro nas praças, milagres, alegorias e moralidades. 
                          O clima de Opereta se estabelece quando cantores, bailarinos e atores se misturam, nos dando uma explosão de signos e sensações. Uma pena eu não estar sentada lá perto, pois não aproveitei as possibilidades também sensoriais. Tudo atua junto! Ali entre espetinhos e cheiro de molho de cachorro quente, o calor da calçada, a brisa da noitinha, e o cheiro do fogo usado na cena... 
                         No palco, o elenco assemelhava-se a três famílias mambembes unidas e um grupo muito capacitado de bailarinas. A primeira família era de Cruz Alta, regida por Renato Casagrande, a segunda, a família COARTE, tendo a frente Andriele, Sissi, Didi e Juh, ainda a terceira família, formada por cantores maravilhosos, guiados por Elisete Tronco. Não atuavam mais dentro da igreja,pois como os primeiros atores mambembes da renascença, quando o profano começou a tomar espaço em seus textos, os padres foram os afastando dos altares. Muito embora, a arte sempre seja profana, pois precisa profanar as verdade estabelecidas pela mesquinhez humana. Questionar!
                        Claudia, Didy, Neri, Maicon e Francineide, além das interpretes oficiais, deram uma aula de inclusão, pontuando a importância e a  necessidade em sempre se mencionar a língua de libras. Destaque para o trabalho intenso de Paulo Amaral como Herodes e a construção sutil do casal Ana e Joaquim, formado pelos atores Sisi e Kiko, que já haviam brilhado em A Paixão de Cristo. Quadro a quadro, o espetáculo foi nos ganhando, revelando-se, mostrando que ali havia muito mais do que o nascimento do menino Jesus. A intervenção das sacerdotisas(esguias, grandiosas, poderosas), a chegada do anunciador com técnica circense.
                           Quando um grupo, ou Cia. escolhe um diretor, está escolhendo uma assinatura, e a assinatura de Lorenzoni pairou na câmera lenta, nas coreografias, nos véus pedindo: União, Paz, etc... A assinatura do diretor nos deu universos, convenções. Nos levou até o Jesus adulto que falou abertamente com o público. Não era sobre o nascimento de um menino em uma manjedoura, era muito mais. Era sobre tudo o que estava nas mãos das sete atrizes que interpretaram mães de Jerusalém, órfãs de seus filhos, após o ataque dos soldados. 
                          A COARTE é um seleiro de artistas, formada por grandes verdades. Uma fértil possibilidade vem nascendo. Talvez o teatro não seja o objetivo de todos, mas juntos compõe uma mise em scene funcional, humana e significativa. Douglas Maldaner foi ~um bom parceiro e Vivi, toda em azul, abriu o palco com a grandeza necessária aos elementos. Palmas ao pequeno Ravi e a dedicada Maria, Andriele, que parece ter se "revisitado" inteira para compor uma Maria humana e sagrada. O Magnificat foi esplendido e certamente arrepiou a todos, palmas à Simone, Rosa, Laurem, Claudia, Luciana e Rosiane. A cena pareceu dar o tom que a direção solicitou. 
                              O velho e bom teatrão que já estreia com cara de espetáculo maduro. Senti falta de animaizinhos, senti falta de mais fogo e água, talvez até mais estrelas. Em alguns momentos o proscênio ficou no escuro, algo para se ater com mais cuidado nas próximas intervenções.
                 Agradeçam aos Deuses por vos permitirem contar historias. Obrigado Alegrete, aí tem teatro! Parabéns Coarte, continue sendo única e repleta de vidas... Não conheço todos os interpretes, mas os aplaudo em pé. Fazer teatro nos transforma e transforma o lugar em que vivemos. Vida longa à COARTE.

Espetáculo: Auto de NAtal, para todos os povos, para todas as raças.
Direção Kléber Lorenzoni.


sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

Crítica teatral de Rei Lixo

 

Rei Lixo [ Especial Santa Rosa em Cena ] • por Fernanda Abegg

(…) a elaboração dos corpos, baseada em animais, revela uma pesquisa riquíssima das deformações bufonescas que não nascem de deficiências físicas humanas, mas de características animais • @deus.ateu

Por Fernanda Abegg • @fernandabegg

Montar Shakespeare nunca é tarefa simples. É, aliás, uma ousadia — especialmente quando falamos de Rei Lear, uma das tragédias mais devastadoras já escritas. É como olhar nos olhos de uma besta e dizer: “vamos brincar?”. Há um risco quase insolente nisso. E é justamente nesse local que o Grupo Teatral Máschara se coloca. A trupe não só honra a dramaturgia, como a rasga, remixa, esfrega na lama e, paradoxalmente, a eleva — figurativa e literalmente — a outro patamar.

A estrutura central permanece: o rei divide suas posses entre as filhas, favorecendo as duas mais velhas, bajuladoras e interesseiras, enquanto exila a mais nova, a única íntegra, cujo amor se expressa sem exageros, “nem a mais, nem a menos, na medida”. A vaidade e o poder decrépito dessa engrenagem trágica impulsionam a narrativa, agora assentada não mais na corte britânica, mas em um lixão. A riqueza é transfigurada em trapos, incesto e antropofagia: um território perfeitamente fétido e fértil para bufões.

O espetáculo sustenta, em todo seu percurso, uma teatralidade grotesca, visualmente fixante. Tudo isso é deliberado, lapidado, pensado do início ao fim. Ali estão patriarcado, bajulação, avareza, loucura, traição e morte: uma baixaria shakespeariana em seu melhor sentido, revelando o quanto a decadência do poder perpassa um local inevitável e trágico. É Shakespeare atualizado no corpo e na narrativa cênica, sem perder de vista os jogos de interesse que atravessam a condição humana

No centro disso, Kléber Lorenzoni constrói um rei instigante e poderoso que, diante dos nossos olhos, se transforma de tirano em velho caduco, espumando de cólera enquanto chafurda no próprio caos. Seus trejeitos oscilam entre o soberano e a criança, até que a pompa cai e o que se revela é um corpo assustado, solitário e desamparado. No colapso mental e físico, ecoa a fala: “Homens comuns e reis entram e saem do mundo do mesmo jeito: pequenos e solitários.” A tragédia se cumpre justamente aí. A força do herói se dissolve, nivelada pela experiência incontornável da finitude, dentro da complexidade do personagem de Rei Lear e do espectro criativo que o ator transita.


As imagens corporais criadas pelo elenco aparecem como uma relação simbiótica, um organismo que se modula em cena. A construção visual — especialmente na abertura, com o bando chegando, e na cena final, quando o elenco reverencia o público — reafirma o teatro como espaço sagrado, um lugar de encontro entre atores, divindades e plateia. Essa lógica também aparece nos micronúcleos ao longo da peça: corpos que se encaixam, deformam, sustentam e contam histórias para além das palavras. A relação entre as irmãs, entre o Rei, seu bobo e seu servo, por exemplo, apresentam uma linguagem corporal que vem do cômico, das acrobacias e da escrita cênica para além do texto.


Nesse sentido, a elaboração dos corpos, baseada em animais, revela uma pesquisa riquíssima das deformações bufonescas que não nascem de deficiências físicas humanas, mas de características animais. É o caso do corvo/pinguim de Renato Casagrande, intérprete de Edmundo. Essas máscaras corporais completam a distorção da obra, uma vez que o bando não é composto por humanos em estado puro. E é aí resida a chave da maestria da encenação.


Rei Lixo tem um elenco que brilha coletivamente, e as indicações no festival comprovam isso. Além do prêmio de Melhor Ator a Kléber Lorenzoni, Carol Guma venceu como Melhor Atriz Coadjuvante; Douglas Maldaner e Kleberson Ben foram indicados a Melhor Ator Coadjuvante; Ana Costa e Antônia Serquevitto, a Melhor Atriz Coadjuvante. Além disso, o espetáculo levou para casa o prêmio de Melhor Figurino e Melhor Maquiagem, com um volume significativo de reconhecimentos, condizente com o impacto visual, corporal e dramatúrgico do trabalho.

“O mundo é uma ironia de Deus sobre os homens”, diz a peça. E Rei Lixo comprova que é mesmo. Ali, o humano se mistura ao grotesco. Ali, o sagrado e o profano dividem o mesmo palco. Os deuses do teatro certamente saúdam esse trabalho. E Baco, sem dúvidas, estava presente, de pé e aplaudindo.

@fernandabegg é gente de teatro. Atua, leciona, pesquisa e escreve sobre. Licenciada em Teatro pela UFSM, tem pós graduação em Economia Criativa, Cultura e Inovação e especialização em humor pela SP Escola de Teatro.





FOTO: Gabriel Brutti @gabrielfbrutti




FICHA TÉCNICA
Grupo Teatral Máschara
Autor: Kléber Lorenzoni – adaptação da obra Rei Lear, de William Shakespeare)
Elenco: Kléber Lorenzoni, Carol Guma, Ana Costa, Antônia Serquevitio, Júnior Lemes, Kleberson Ben, Renato Casagrande, Douglas Maldaner
Direção: Kléber Lorenzoni
Cenografia: O Grupo
Iluminação: Ana Clara Kraemer e Kléber Lorenzoni
Sonoplastia: Clara Devi e Kléber Lorenzoni
Figurino: Renato Casagrande e Kléber Lorenzoni
Maquiagem: O Grupo
Cenografia (operação): O Grupo
Iluminação (operação): Ana Clara Kraemer
Sonoplastia (operação): Clara Devi
Contrarregra: Roberta Teixeira e Felipe Brandão

Natal 2025 no CCI


 

O Natal de 2025