1235 - O Incidente (tomo 89) Análise Crítica

Alegrete, 15 de maio de 2025
Instituto Osvaldo Aranha
 Quando a porta do teatro se abre e ouvimos o ruído dos sete mortos de Antares, nos pegamos pensando: Será que vamos presenciar algum tipo de comédia de horrores? Alguma divertida sátira? - Logo porém que se estabelece a primeira cena do espetáculo, as convenções nos ditam os caminhos a seguirmos. Se renomearmos os indivíduos e as estruturas de poder da obra, conseguimos entender a alegoria exposta que mescla comédia, violência e tragédias sociais ou políticas. O estranhamento que você sente ao observar a tensão corporal, a aparência macabra, o desenho físico, vai te conduzindo para um lugar único, que embora seja intitulado como realismo fantástico, enquanto obra literária, não deixa dúvidas de uma impressão impressionista. Para os ávidos por técnicas teatrais, é preciso lembrar que existem várias linhas dentro do expressionismo, ainda que todas se encontrem na percepção de cores intensas, sombras, realidades deformadas e interpretações densas. 
                                                     A direção do espetáculo reuniu celebres atores como Cléber Lorenzoni, Ricardo Fenner e Renato Casagrande, ao lado de iniciantes como Junior Lemes e Carol Guma. Não iniciantes nos palcos, mas artistas que ainda não haviam mergulhado por esses universos complexos que a arte oferece. Ricardo Fenner e Renato Casagrande brilharam com capacidades que já conhecemos. Pausas boas, curva acentuada no caso do segundo. Os dois fizeram uso do "sats" que Eugênio Barba tanto elogia. Talvez os momentos escatológicos de Menandro (gula) tenham passado um pouco exagerados, mas por outro lado, se o espetáculo se propõe a ser um espetáculo expressionista, ele se cumpre em sua verdade. O mergulho da pré-expressividade de Carol Guma e Junior Lemes, em tão pouco tempo de trabalho, é visível, pois ambos super atuam enquanto as cenas dos colegas se movimentam. Guma pode ficar mais pesada, mais "terrena", Dona Quitéria (soberba) habita o universo das grandes damas do teatro: Mãe Coragem, Frau Carrar, ou Bernarda Alba. Mulheres que carregam o peso de suas proles, como a Bibiana  do próprio Verissimo ou Úrsula Iguaran de García Márquez. Essas mulheres são o âmago, elas dominam o universo e o obscuro. São a coluna que sustenta... Quando Quitéria fala por exemplo do céu, é realmente com a veemência de quem crê que irá para junto de seu Deus. A dobradinha com Barcelona (inveja) pode estar mais afiada, sem esquecer que é MARX - filósofo, economista, historiador, sociólogo, teórico político, jornalista e revolucionário.
                                               Dr. Cícero (avareza) é Cléber e Cléber é Dr. Cícero, não sei se estava em um dia mais sensível, mais repleta de devaneios, mas o fato é que me dei conta de que é Cléber, de alguma forma, com fome e com raiva. Nos dizendo: Estamos aqui, nos escutem, nos respeitem. Soube de fonte segura que o próprio interprete não preferia fazer outro personagem. Uma pena, o espetáculo tem um segundo nome e ele se chama Dr. Cícero. Cansada que estou assistindo teatro há várias décadas, procuro sempre o novo, o frescor, então situações como a dança entre Cícero e Erotildes, ou quando Cícero carregou João PAz nas costas, não tinham como passar desapercebidas, e nos lembram que sempre podemos transformar uma forma de contar uma historia... Essa vontade de ver o novo e ainda de mostrar o novo, deve ter a ver com a inextinguível rebelião individual que atores e público de teatro devem sempre carregar dentro de si. 
                                               Douglas Maldaner traz para o palco, como João Paz (ira)  uma construção calcada no equilíbrio extra cotidiano que gera uma serie de tensões no corpo e vai exigir um esforço físico maior. A capacidade de pronunciar um texto também tem se aprofundado, seja em Maldaner, seja em Serquevitio, que aliás faz muito bom uso da força contraria. 
                                              O espetáculo durou pouco mais de cinquenta minutos, se não me perdi, mas detectei no público, a surpresa, a caótica confusão de quem quer compreender algo e de quem vai se acomodando para "curtir" como dizem os jovens. Fui adentrando na narrativa e me encontrando em conceitos muito interessantes. Ora, a morte em Antares está muito disposta a discutir princípios teológicos. Os sete mortos sobre o palco são em verdade sete pecados da humanidade, que nessa sátira menipeia, já que aqui não se agride posturas ou jeitos, como em comédias apelativas, mas normas e valores que permeiam a sociedade. Os valores aliás de criação, repetição, sacrifícios em Serquevitio, nos relembram que o teatro precisa ser feito, como pudermos, como conseguirmos.  Talvez uma das qualidades mais interessantes em Serquevitio nessa sua versão, seja a capacidade estética, ainda que conduzida, Antonia consegue traduzir em Erotildes (luxuria) os propósitos estéticos da direção. Ricardo Fenner retorna como Pudim (preguiça) que já havia interpretado e arranca risos, devido claro, a sua forte veia cômica. Junior Lemes surgiu de onde? Eu não o conheço e olhem que nesses muitos anos de Máschara eu acompanho o nascimento e a morte de cada estrela que surge na abóboda celeste chamada teatro cruzaltense. Claro que é o interprete de Labão e mais tarde kaifaz, mas fiquei muito surpresa de vê-lo mudar o estilo de interpretação e adequar-se a outras formas. Forte, verdadeiro, grande como um ator de palco precisa ser! Admiro também a forma delicada, sutil e pontual com que Guma vem se estabelecendo, é preciso ir com calma, para construir bons lastros, firmes e duradouros.  O anjo da morte, aquele que anuncia o fim, que abre o sétimo selo, é na verdade: Shirley Terezinha, uma radialista, tão típica narradora em cidades pequenas, dos principais fatos. Cabe a ela, anunciar o fim, ou o propositado fim de uma sociedade equivocada, mas que nunca muda. Em Antares estabeleceu-se a greve, uma grave que vai durar por muitas décadas em nosso Brasil. Dessa greve, levantam-se principalmente artistas, tentando despertar o mundo, embora como diz aquele pai no fim do livro: "Cala a boca, bobalhão!" - Pois por interesses unicamente politicos, o mundo precisa permanecer adormecido.   Há sim problemas de ritmo, calçados em pés que não deveriam, falta de compreensão em alguns textos. No entanto Incidente se cumpre como uma das obras mais importantes criadas pela força que é o Máschara, se vê isso na construção cênica, na pesquisa por trás e nas decisões artísticas. Na contrarregragem, os três jovens aprendizes se esmeraram para colocar de pé um espetáculo em suas bases visuais: figurinos e espaço cenotécnico. Interessante e poderoso dar esse espaço aos meninos, mas será que esse lugar não deveria ser exercido pelos mais seguros e maduros?   O Máschara continua sendo uma força, uma potência, quebrabével, não esqueçamos. Forjada por gente ama teatro, admirada por seu brilho, talento e grandiosidade no palco. Há no entanto uma nuvem perigosa, de confusas relações que acompanham essa força. Uma nuvem que ao tornar tão informal as relações, confundem o que são regras hierárquicas com relações pífias. É preciso sempre lembrar como as coisas nos chegam, e de onde elas vem. Também é preciso valorizar quem cria, quem constrói, quem batalha e lembrar que para o público, como eu sentada em um auditório qualquer, que paguei ou não meu ingresso, carreiras não significam nada, e que todos somos passageiros e esquecidos e substituídos muito rapidamente. Cabe então a quem ganha espaços, saber lutar por eles, valorizá-los e ser gratos. Um dia certamente estaremos como em O Incidente, em nossos esquifes e não haverá coretos, ou realismos fantásticos. Não haverá chance para pedir desculpas, para se desdizer, ou para voltar atrás. Não dará para se explicar, nem para um último abraço. Será apenas o silêncio, pois o resto é silêncio!!!

O Melhor: A intensidade energética e cúmplice que se colocou em cena.
O pior: A luz repleta de pontos cegos onde atores ficavam na sombra.

O Incidente
Montagem de 2025

Direção e roteiro Cléber Lorenzoni

Elenco: Cléber Lorenzoni  
              Carol Guma (***)
              Renato Casagrande
              Clara Devi (**)
              Junior Lemes (**)
              Douglas Maldaner (**)
              Ricardo Fenner 
              Antonia Serquevitio (**)

Contrarregragem : Gabriel Ben (**)
                               Ana Clara Kraemer (***)
                               Roberta Teixeira(**)


  Arte é Vida


               A Rainha


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