1182 (tomo 4) Dona Flica e seus dois Maridos

                   Depois de mais de trinta anos, a gente não vai mais ao teatro apenas para ver a historia, a trama, a técnica, nós vamos mesmo para ver determinados monstros pisarem no palco. E ainda para ver a forma como eles pisam, como se comunicam, ver a mágica que se dá. Por decisões do destino, quatro anciãos do Máschara reuniram-se sobre o palco. Cléber Lorenzoni, Dulce Jorge, Renato Casagrande e Fabio Novello. Sobre eles além de suas capacidades interpretativas, há o manto do tempo, das escolhas, das decisões, dos sacrifícios pela arte. E tudo está conectado, pois cada dor se torna gesto no palco, cada perda se torna emoção no palco, cada machucado físico se torna domínio da cena. A jovem atriz que pretendia ser atriz em Porto Alegre, o jovem que queria ser médico, o jovem que muito cedo foi para Porto Alegre, mas que o destino incumbiu-se de trazer de volta. O jovem de Ibirubá que percorreu o mundo e veio parar em Cruz Alta. Todos reunidos, todos cumprindo suas funções para que o teatro seja pleno e vivo. Lá estavam eles, brilhantes, vívidos, intensos, entregues. Naqueles cinquenta e poucos minutos de peça, vale tudo! Vale ser palhaço, vale ser frágil, vale ser ridículo, vale ser grande, vale ser imensamente pequeno. As vozes saem de suas caixas torácicas como se fossem impulsionadas pela eletricidade. Improvisam. Falam longos textos. Movem-se como se em uma dança. Trocam de roupas em segundos... Emocionam, nos fazem rir e nos fazem chorar.. Como? Se são apenas atores, seres como nós. Gargalhamos aponto de correr água dos olhos e essas mesmas águas se tornam gotas salgadas logo depois com uma simples inflexão que parte do palco e crava-se em nós de forma certeira. 

                  Você percebe que eles até tentam ser muito técnicos, é o que se espera, mas há mais, há um respirar, uma inflexão, um olhar, que vem embutido de tanta alma... 

                    Dulce Jorge apreendeu a personagem em uma semana, cinco ensaios, se não me engano. Cléber Lorenzoni dirige e atua, nãos abemos como, deve ter a ver com a estrutura perfeita que ele mesmo compôs. Fabio Novello monta o plano de luz, depois corre vestir-se, Romeu Waier assume a mesa, está aprendendo maravilhosamente, ao seu lado está Clara Devi, que ensinou Ana Clara a arte necessária a uma boa camareira. Clara assume o som, depois de conferir tudo preparado. Ana Clara veste preto, corre de um lado para o outro, aprende coisas no ultimo minuto, cuidará também de alguma tomada, enquanto se move rapidamente por trás das coxias, quase se pecha com Antonia Serquevitio, que posiciona chapéus e adereços pelos corredores do teatro. De uma lado para o outro está também o diretor, Cléber, entre um tempo de maquiagem e uma peça de roupa, anda pelo palco, conferindo com Renato Casagrande a distribuição do cenário. Clara Devi agora descera as cortinas das galerias para escurecer o palco enquanto Ana Clara procura uma vassoura. Romeu Waier acende e apaga holofotes enquanto Fabio Novello tenta pentear os cabelos, andando pelo palco. Últimos ajustes, Cléber Lorenzoni acalma a estreante Dulce Jorge enquanto Renato Casagrande faz pintas de maquiagem nas faces do velho que interpretará. Alguém pergunta se tudo está certo, querem introduzir a plateia... Lorenzoni puxa uma oração, um pai nosso que mais serve de mantra aos Deuses todos, de todos os tipos e religiões, há de haver algo, uma força, alguém em algum lugar, que zela por tudo isso, que torna tudo isso abençoável e sagrado. Precisa ser sagrado, pois comove, arranca risos e lágrimas, deve ser sagrado, como o sexo, como a concepção, como a morte, e como o nascimento. Precisa ser sagrado!!!

              Dona Flica é um espetáculo de apelo popular, para o qual alguns catedráticos do teatro podem torcer o nariz, alguns embustes também; sobre o palco tudo tem um certo ar de sucata, no bom sentido, é ótimo que o teatro reaproveite tudo, afinal de contas precisa ser barato. Percebe-se que as cadeiras são daqui, o abajur dali, os adereços de acolá, e isso concede verdade ao cenário da casa de uma anciã. Os figurinos já conhecidos de Dona Flica entram em contraste com sua roupa de estar em casa na primeira cena. Cléber Lorenzoni nos pega na primeira cena e ao lado de Dulce Jorge contam entre gags e confusões a historia de Dona Flica. A cena dois e a cena três estão nas mãos de Novello e Casagrande respectivamente, cenas perfeitas. |Talvez Novello pudesse mencionar seu aplicativo e talvez Casagrande pudesse aprofudnar seu esquecimento. De qualquer forma as cenas são ótimas. O quiprocó da cena quatro cumpre-se divertidamente e tia Flica opta por continuar só, a vida é muito curta, é preciso amar-se enquanto há tempo.

                 A dramaturgia de Dona Flica é quase perfeita, com curvas corretas, altos e baixos e afunilamento final. o bife final coroou nossa percepção e deixou muito clara a temática do espetáculo. Ainda que haja um clima de realismo fantástico em alguns momentos. 

                  Obrigado aos anciãos do Máschara por nos ensinar tanto e por nos preparar para seguirmos seus passos, que na verdade são os passos de todos que fazem teatro.



                     A Rainha


Dona FLica e seus dois maridos.

Texto: Cléber Lorenzoni

Direção: Cléber Lorenzoni

Elenco: Cléber Lorenzoni, Renato Casagrande, Fabio Novello e Dulce Jorge

Trilha Sonora: Cléber Lorenzoni  - Operação: Clara Devi

Cenário : Renato Casagrande

Figurinos: CRenato Casagrande e Clara Devi

Iluminação: Fabio Novello e Romeu Waier

Maquiagem: O grupo

Camareira: Clara Devi

Auxiliares contra-regras: Antonia Serquevitio e Ana Clara Kraemer





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