Em meio aos protestos e uma cidade caótica, O Incidente.
Quando saí de casa essa manhã para assistir O Incidente no colégio Santíssima Trindade, me peguei pensando onde os mortos de Antares falariam em Cruz Alta se hoje levantassem de suas esquifes. Caso a historia se passasse aqui. Coreto? Não há mais. Praças? cambaleantes. Se marchassem pelo centro, certamente tropeçariam nos tijolos mal colocados pelo calçadão ou na praça Erico Verissimo. Enfim, Cruz Alta jaz tão desalentada, que não se saberia por onde começar a lavar a roupa suja.
Na escola, não era permitido público de fora, mas consegui um indulto, não admito ser proibida de assistir teatro, sou viciada, confesso. Encaminhei-me tão feliz pelo corredor, algumas coisas mudaram, mas o clima de lugar organizado, limpo, iluminado, esse continua. Parei e fiz uma genuflexão rápida frente à capela. No átrio, três imagens que poderiam ser São Francisco, Irmã Clara e Santa Inês de Assis. Nossa, a vida é um grande teatro.
Uma vez dentro do auditório, bem comportadinha em minha cadeira vermelha, não quis sentar-me muito para frente, afinal o "show" era para os estudantes. Não sei quais são as regras da escola, mas não havia nenhum aluno com celular ou quaisquer apetrechos eletrônicos pelas mãos. Um arrojo. Um digno respeito dado aos atores no palco.
O Incidente na velha Antares foi uma revolução, e as revoluções continuam da década de sessenta até hoje. Há as pequenas, as médias e as grandes. as periódicas e as esporádicas, as de armas brancas e as de arma de fogo, as sensacionais e as despercebidas; na verdade elas existem em tal quantidade, que às vezes, é difícil saber, na sonolenta leitura de um matutino, em que direção se deve colocar nossa indignação politica e moral. Erico nos dá em Antares todas as direções. Antares está podre, assim como o reino da Dinamarca em Hamlet, assim como o Brasil, assim como Cruz Alta. Não sei se os jovens entre 14 e 19 anos que estavam dentro daquela sala, seriam capazes de compreender o que estava sendo dito sobre o palco em toda a sua magnitude. Mas se um ou dois se condoerem pelas réplicas das personagens e fizerem uma ponte junto a vida real, isso já terá sido a diáfana conquista do elenco.
Por entre as cadeiras da assistência, surgiu a primeira personagem, uma elegante dama de azul, que nos declamava um resumo do que acontecia em Antares. A essa atriz aconselho mais calma, o público pode e deve compreender sua presença para só então ouvir seu texto. Na segunda sessão, "com dois ss" a atriz deve ter sido instruída, pois melhorou e muito sua primeira colocação. Admiro atores que querem melhorar. Essa personagem que nunca ficamos sabendo o nome, parece ser uma narradora, algo como uma metalinguagem, não sei, apenas no quadro final compreendo que ela é um ser atemporal, e então aceito, mas ainda sem compreender muito bem. O final pode ser mais intenso, a atriz pode nos convencer de que está realmente vendo mortos vivos. Sabe-se lá o pavor que isso causaria.
Os sete mortos são representados por Cléber, Dulce, Renato, Alessandra, Fábio, Cristiano e Douglas. Do elenco original três, em suas antigas posições dois. Substituindo havia cinco, estreando havia dois. Enfim, uma confusão na dança das cadeiras do Grupo Máschara, que trás ao seu elenco versatilidade. Por outro lado, espera-se que esse mesmo elenco continue junto, praticando esse texto por um tempo razoável, para só então encontrarem a verdade por trás das palavras.
Cristiano e Dulce mantém a base de suas personagens embora muito tenha se perdido. Alessandra Souza estava mergulhada em sua interpretação bem como o Dr. Cícero da primeira "sessão com dois ss". Doulgas Maldaner e Fabio Novello cumpriram, mas podem trilhar longas caminhadas em busca do jovem idealista e do anarco-sindicalista. Arquétipos muito fortes. Douglas Maldaner pode inclusive melhorar o trabalho vocal, elevá-lo a níveis audíveis em um teatro ou sala sem acústica. Cristiano criou nessa apresentação algo novo para compor seu visual, que foi inclusive muito atrativo aos jovens na plateia.
Renato Casagrande interpreta meu papel preferido no espetáculo. Mas acredito que a composição visual deva ser revista. Está pronto para fazer uma das personagens do ainda em fase de construção "Bruxamentos e Encantarias". Falta-lhe a compreensão da velhice. O jovem e expressivo ator ganhou um personagem idoso e louco. Uma empreitada digna de uma grande ator. Se pretende alcançar o sucesso deve buscar dentro de si muita coisa, trazer as vísceras à fora.
Não gosto de comparar trabalho de atores, afinal de contar aquilo que fazem é o que fazem, não existe o antes nem haverá o depois. A chance do público conhecer a historia e aquelas personagens, foi aquela. Acabou... Mesmo assim, sempre é momento de encontrar algo. O espetáculo não tem muita ação. A ação é puramente interna, e viva, intensa. Na verdade muito nos lembra a narrativa de um conto, Como em As Intermitências da Morte de José Saramago. Não aprece ter virgulas ou pontos. Uma trama encostada na outra, pois são todos um só. Os sete úteros abertos.
O final foi um tanto súbito, e a cena em que os mortos são atacados pelos ditos vivos, parece não cumprir sua função. O Incidente foi trágico, e bastante visceral nas segunda"sessão com dois ss". Nos prende e choca, mas precisa ser olhado pelos atores não como uma energia sabática que a cada punhado de anos aparece para fortalecer ou trazer ganhos a Cia. O Incidente deve ser olhado sempre como um desafio estético, que ao ser cumprido engrandece o trabalho interno de cada um. Os espetáculos do Máschara que vão ficando para trás e são revisitados sempre, servem como elixires, como cursos rápidos, workshops para a montagem de novos espetáculos.
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Só a arte salva
A Rainha
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