As Eruditas - Millôr Fernandes



Personagens
CRISALDO – o bom burguês
FILOMENA – mulher do dito
ARMANDA – filha dos dois
HENRIQUETA – filha dos dois
ARISTIDES – irmão de Crisaldo e Belisa
BELISA – irmã de Aristides e Crisaldo
CRISTÓVÃO – pretendente a Henriqueta
TREMEMBÓ – espírito de escol. Também pretendente a Henriqueta
VADIO – velho sábio
MARTINA – cozinheira
COELHO - criado
JULIANO – criado de Vadio
UM ESCRIVÃO




Tudo acontece em Paris, na casa de Crisaldo.
Ato I - CENA I
ARMANDA
Como, minha irmã? Mas que besteira! / Você pretende abrir mão do nome de
solteira?
Solteira – uma palavra sonora, doce, emocionante – / e você pretende abrir mão
disso pra casar –
que coisa mais vulgar!
HENRIQUETA
É.
ARMANDA
É? Só esse É chega? Basta só ésse É? / E você acha que uma pessoa normal
pode ouvir um
É desses sem te achar insensata?
HENRIQUETA
Mas, ora minha irmã, um casamento é só um casamento / Porque esse teu ódio
ao casamento, esse furor?
É um ato de amor.
ARMANDA
Um horror!
HENRIQUETA
Como?
ARMANDA
Eu disse horror! Você não  sente um arrepio de horror / ao pronunciar essa
palavra repugnante?230
HENRIQUETA
Arrepio, sim, mas não de horror. De espectante.
ARMANDA
A mim a palavra casamento só me traz visões imundas, / submissões inúteis,
contato repelente –
não consigo entender você contente.
HENRIQUETA
Pra mim a palavra lembra apenas marido, casa, filhos: / existe nisso algo de
assustador?
ARMANDA
Mas uma mulher precisa se realizar.
HENRIQUETA
E tem realização maior, pra alguém da minha idade, / do que amar e ser amada,
poder casar com o homem que deseja / e construir com ele uma vida de
compreensão e de felicidade?
ARMANDA
Meu Deus, que aspiração mesquinha, que pobreza! / Uma vida menor,
insignificante, sem beleza:
teu sonho é mudar fraldas, idolatrar um macho  / e lhe servir de capacho.
Um lar só pode satisfazer às pessoas grosseiras, à gentalha vulgar. / Põe teus
sentimentos em objetivos mais amplos, em / prazeres mais nobres.
Despreza carinhos tolos, orgasmos da matéria, / e pensa em coisa séria.
Exemplo não falta  – aí está mamãe a quem todos / chamam sábia e devotam
admiração.
Não seguir seu exemplo é degeneração. / Mas não; prefere ser escrava de um
homem,
toda riqueza interior a ele confia, / quando, como eu, devia se casar com a
filosofia.
A filosofia nos eleva acima da fraqueza humana e entrega / à razão o comando
supremo, submetendo às suas leis a inclinação passional / que faz de cada um de
nós um nojento animal. / Aqui (aponta a cabeça) é que brilham as chamas da
virtude,
aqui é que estão os sentimentos nobres pertos dos quais  / teus desejos normais
são horrivelmente pobres.
HENRIQUETA
O céu, querida irmã, que, como você sabe, é Todopo-deroso / não faz o bolo
humano por igual gostoso.
Cada ser, cada espírito, é uma fatia / que nem sempre vem com a calda da
filosofia.
Se teu espírito se inclina, melhor, se eleva, às alturas rarefeitas das especulações
metaintelectuais, / o meu, coitado, só está à vontade nas coisas triviais.
É melhor porém não discutir as intenções celestes, eu sinto: / é melhor cada
uma de nós seguir seu próprio instinto.231
Você, cheia de inteligência e energia, / fica morando no cume da filosofia: / eu,
que, sem tristeza, reconheço me faltar o talento, / ficarei morando aqui, bem
baixo, no chão do casamento.
Embora propondo realizações contrárias, a minha atitude, quero esclarecer, / é
bem conciliadora,
pois estaremos ambas imitando nossa progenitora. / Você, o espírito científico,
que não vacila nem erra;
eu, o lado sensual, sensorial, sentimental, mais fraco / e terra-a-terra.
Você, a luz cultural, toda preocupação séria: / eu, a simples leviandade da
matéria.
ARMANDA
É o lado melhor que a gente deve imitar numa pessoa, / nunca a maneira como
ela cospe, tosse ou se assoa.
HENRIQUETA
Mas esse lado existe e é fundamental. / Se a mamãezinha não tivesse cedido ao
lado material
do grosseiro marido,
acho que minha irmãzinha nem teria nascido./ Ninguém vem à luz do dia
por conceitos de filosofia. / Olha, falando grosseiramente apesar de ser mulher:
me atraem certas baixezas – / não temo até certas durezas.
Se você acha que fora do espírito tudo o mais é imundo, / acaba suprimindo
algum pequeno sábio que queira vir ao mundo.
ARMANDA
Discutir com você é tempo perdido. / Ninguém tira da tua cabeça a idéia sinistra
de um marido.
Mas pelo menos me diz quem você está cercando –  não vai me responder que
pretende Cristóvão.
HENRIQUETA
E por que razão não pode ser Cristóvão? Por acaso é aleijado? / Tem cabeça
grande, pé chato, é mal-educado?
ARMANDA
Não: é bonito, elegante, muito bem-educado. / Mas só uma mulher à toa
quereria o que já é de uma outra pessoa.
Acho que ninguém ignora / Que Cristóvão suspira por mim não é de agora.
HENRIQUETA
Sei, Armanda. Mas suspiros de amor são coisas Levianas / e você não vai descer
a baixezas humanas.
Você renunciou ao casamento para sempre no dia / em que se apaixonou pela
filosofia.
Confesse, se Cristóvão não te interessa, que te interessa então que eu me
interesse?
ARMANDA
O domínio que a razão tem sobre o nosso desejo / não nos faz insensíveis à
lisonja e ao cortejo. 232
Não quero pra marido o teu belo senhor / mas acho-o indispensável como meu
seguidor.
HENRIQUETA
Jamais impedi que ele dedicasse suas adorações a teu talento, / teu espírito, tuas
mil perfeições.
Confessar, meus limites não me faz infeliz: / só consegui Cristóvão porque você
não o quis.
ARMANDA
Mas você não acha, irmã, muito arriscado / aceitar um amante assim
despeitado?
Será que um sentimento novo o amor antigo corta? / A chama que ardia por
mim estará completamente
morta?
HENRIQUETA
Ele me disse, Armanda: é por mim que ele delira.
ARMANDA
Oh, minha bela irmã, que boa-fé. / Quando ele diz que me deixa e que te ama,
não mente só a você, a si próprio se engana. / Eu conheço bem a condição
humana.
HENRIQUETA
Eu não sei, quem sabe? pode ser. / Mas não acho difícil esclarecer.
Cristóvão vem aí; com a tua licença, / vou perguntar a ele o que é que ele pensa.
CENA II - Cristóvão, Armanda e Henriqueta.
HENRIQUETA
Por favor, Cristóvão, esclarece esta dúvida atroz /que minha querida irmã
colocou entre nós.
Deixa que teu coração sinceramente exprima /qual de nos duas tem direito a
pretender tua estima.
ARMANDA
Mas não, / de modo algum eu iria impor a Cristóvão e a sua discrição / o
vexame público de uma confissão;
te afirmo que é coisa muito rara / conseguir sinceridade de alguém forçado, cara
a cara.
CRISTÓVÃO
Errou, Armanda, pois meu coração não sabe dissimular. / E não tenho o menor
constrangimento em
confessar.
Não me deixa tolhido ou inibido / declarar, alto e bom som, pra quem tiver
ouvido,
que os laços de amor que me têm amarrado, / meu sonho e meu destino
(apontando Henriqueta) tudo
está deste lado.233
Que nenhuma tristeza te traga isto que digo:/ você determinou a coisa assim
comigo.
Por teus encantos suspirei em vão, / você via e ouvia sem qualquer emoção.
Meu coração te oferecia uma chama imortal / que você provavelmente achava
trivial.
Não posso te dizer o que sofri, a insuportável amargura do desprezo, / sem
poder escapar aos fascínios do amor que me retinham preso.
Mas um dia cansei e descobri outra vez / relações mais humanas com um outro
sentido,
um afeto real, pois duplo e dividido. /De repente a vida não tinha mais escolhos
(mostra Henriqueta)
Encontrei meu alívio, amiga, nestes olhos. / Com pena, com ternura, com
cuidado ela ajudou a deter
e a secar  meu pranto / até o dia em que eu olhei pra você e não vi mais teu
encanto.
A bondade de Henriqueta é uma coisa tão bela, / que só posso, só quero, só sei
viver dela.
E tenho até a ousadia de lhe pedir que use a sua filosofia para filosofar, /
apreendendo o sentido de um refrão popular.
ARMANDA
Não entendo. Não sou versada em povo. / De que ditado fala?
CRISTÓVÃO
Quem foi ao vento, / perdeu o assento.
ARMANDA
E quem lhe disse que estou interessada no ar ou no lugar? Acho ridículo você
assim pensar / e impertinente ousar me declarar.
HENRIQUETA
Calma, minha irmã. Onde está a moral / que domina tão bem nossa parte
animal?
Segure as rédeas do teu temperamento. / Senão, ele dispara.
ARMANDA
E você, que se atreve a essa ironia, melhor teria feito se, / antes de aceitar essa
corte atrevida,
escutasse o conselho dos que te deram a vida. /Acho que nem necessito lembrar
que só eles podem escolher quem você deve amar. / Têm autoridade suprema
sobre teu coração
do qual você não dispõe sem sua permissão.
HENRIQUETA
Agradeço a bondade com que você me humilha, / lembrando, a teu favor, meus
deveres de filha.
E pra mostrar que ouço o que tu dizes / vou seguir logo as tuas diretrizes.
Cristóvão vai imediatamente, sem perda de um segundo, / pedir o
consentimento de quem me pôs no
mundo.
Assim o nosso laço será legitimado / e poderemos amar sem crime nem pecado.234
CRISTÓVÃO
Vou neste mesmo momento – / só estava esperando teu consentimento.
ARMANDA
Você ganhou, irmã, / mas é inútil a expressão
de quem acabou de me dar uma bela lição.
HENRIQUETA
Lição, / eu, minha irmã? Mas como? Sei que é inútil tentar te chamar à razão.
A filosofia te dá tanta certeza / que não deixa lugar pra tal fraqueza.
Em vez de achar que te dei uma lição, / peço, ao contrário, a tua proteção.
Com teu acolhimento / será fácil apressar o nosso casamento.
Eu só te peço isso e, se você quiser...
ARMANDA
Acho teu espírito encantador, sem igual. / Pequeno, é verdade, mas excepcional.
Outra coisa em você me causa admiração: / não se importa em usar nada de
segunda-mão.
Se alguém bota fora, você pega já, sem demora.
HENRIQUETA
Você não botou fora, não, / caiu da sua mão.
Se pudesse, / bem que o apanhava outra vez.
Uma circunstância em que sua filosofia não hesitaria em abaixar-se.
ARMANDA
No caso, / pode ser.
Mas não vou me abaixar a responder tal asneira. / Idiotices tais não ouço nem
entendo.
HENRIQUETA
Não digo nada, então. / Só posso elogiar
a tua contenção.
CENA III - Cristóvão e Henriqueta.
HENRIQUETA
Ela ficou perplexa com tua declaração.
CRISTÓVÃO
Bem merecia tal franqueza. Era o mínimo que eu podia / fazer pra abalar esse
pedantismo sem nexo. Mas quero te ver contente. / Vou procurar teu pai
imediatamente...
HENRIQUETA
Penso que é mais seguro ir procurar minha mãe. Sabe / como é meu pai, um
bom humor, uma vontade de
agradar a todos, de consentir em tudo,
mas, quando chega na hora, fica mudo. / Não manda / nem comanda.
Recebeu do céu uma alma bondosa e obedece à mulher,  / se submete a tudo que
ela quer
É ela quem governa, e ele fica feliz, / seguindo mando / tudo que ela diz.235
Pode te parecer cínico, Cristóvão, até mesmo vulgar, / mas eu gostaria que
tratasse melhor,
chegasse a bajular
minha mãe e minha tia – pois se as duas decidem, / aqui ninguém mais pia.
CRISTÓVÃO
Meu coração nasceu sincero. Nunca consegui elogiar / tua mãe e tua tia
e olha que, às vezes, tua irmã bem que pedia.
Francamente, as mulheres eruditas não  me agradam. /Admito que uma mulher
não seja só matrona, mas háum grande abismo entre uma dona sábia  / e uma
sabichona.
A sabedoria não faz nenhum mal / desde que a mulher / não esqueça o que é
essencial.
É bom que, algumas vezes, abandone o que sabe, / seja simples no que diz,
original no que faz, sem citar grandes nomes, sem / tiradas pomposas,
pois quem exibe cultura sem motivo, / é motivo de riso.
Respeito muitíssimo a senhora sua mãe, madame Filomena,  / mas tenho que te
dizer que às vezes me dá pena
a maneira como segue, como um espírito sem par, / esse doutor Tremembó, /
um homem tão vulgar.
Não posso compreender que ela valorize assim esse pobre coitado / que quando
lê seus escritos, ouço, sempre é vaiado.
Um pedante idiota / cuja pena prolixa
só fornece papel pra embrulhar peixe podre.
HENRIQUETA
Seus versos, seus discursos, ele todo me parece carente, / concordo totalmente.
Mas, como exerce essa incrível influência / sobre minha mãe sua audiência,
você vai ser
obrigado a alguma concessão. / Sei que é fazer das tripas coração,
mas um apaixonado nunca se abastarda,  / se for preciso, bajula até o cão de
guarda.
CRISTÓVÃO
É, você tem razão. / Mas o senhor Tremembó é dose um pouco forte.
Me desagrada tanto que se, pra ele me apoiar / for preciso elogiar seus
trabalhos, acho que desisto.
Conheci a obra dele antes de conhecer o autor / e não sei qual dos dois me causa
mais horror.
Em tudo que ele escreve põe sua personalidade, / feita de presunção, ignorância
e banalidade.
HENRIQUETA
Você acabou de pintar um retrato perfeito.
CRISTÓVÃO
Você sabe que lendo o que ele escreve / jamais cheguei a imaginar seu jeito.
Mas um dia, estando no Palácio, vi um homem feio de dar dó / e disse cá
comigo: é esse o Tremembó.236
HENRIQUETA
Dito e feito e acertado. / O que ele escreve é um retrato falado.
CRISTÓVÃO
Pois pode acreditar. Mas vem aí tua tia. / Vou pedir que nos proteja e ilumine
este dia.
CENA IV - Belisa e Cristóvão
CRISTÓVÃO
Permita, dona Belisa, / estimada dama,
que um homem apaixonado / aproveite a ocasião propícia,
este feliz momento, / pra lhe abrir seu coração em chama...
BELISA
Calma. Quem lhe deu permissão de me abrir, assim, / seu coração? Que é isso?
Se lhe dei motivos para se
posicionar como meu apaixonado, / jamais consenti que se dirigisse a mim tão
desvairado.
Que me olhe, vá lá, olhar não fere. Mas ter a ousadia / de transformar em
palavras desejos que, para mim, são
verdadeiros ultrajes, isso nunca. Ame, suspire, rasteje / nos meus passos, se
quiser. Mas que a mim me seja
permitido ignorá-lo. Fecharei os olhos aos seus ardores,  / mas é necessário que
eles sejam mudos. Porém, se o
senhor resolve expressá-los bocalmente eu o farei banir / da minha presença
para sempre.
CRISTÓVÃO
Poe favor, há um engano aqui, não se alarme. / Henriqueta, madame, é a mulher
que me apaixona,
e eu lhe peço que proteja meu amor por essa dona.
BELISA
Ah, não posso deixar de admirar a sua inteligência. / Essa sua falsa retirada é
espantosa,
em todos os romances que já li nunca vi reação tão veloz, / tão habilidosa.
CRISTÓVÃO
Não há nada mais inteligente do que a verdade, minha / senhora, se pareço
brilhante é porque digo, com força
e emoção, o que tenho na alma. Por um privilégio que / sei que não mereço, os
céus ligaram meu coração ao de Henriqueta, ela me tem agora sob o seu
domínio, / não sei viver mais sem a beleza, o encanto, o jeito dela.
E me casar com ela é tudo o que desejo. Se venho lhe falar é porque sei do seu
prestígio nesta casa e o quanto / apenas uma palavra sua pode me ajudar.
BELISA
Não precisa ir mais longe, amigo, percebo muito bem  / o verdadeiro sentido do
que pede. Nenhuma sutileza
me é estranha. E para corresponder com exatidão ao seu pedido, / no que ele 237
tem de aparente
e no que ele tem de escondido,
falarei a minha irmã sobre isso esclarecendo que / Henriqueta é contrária ao
casamento e, sem pretender
mais anda, o senhor deseja apenas continuar a arder / por ela. (Pausa.) Assim o
senhor não terá que deixar
de frequentar a casa.
CRISTÓVÃO
Mas, senhora, não sei para que serve tal complicação, / por que insiste em
entender o que não digo?
BELISA
Por favor, pra que esse fingimento? Por que tentar / esconder isso que os seus
olhares já revelaram tanto?
A maneira discreta desta sua abordagem já é suficiente para merecer minha
admiração. / Estou disposta a
permitir que me corteje, desde que, naturalmente, se manifeste sem excessos,
contenha seus transportes
e só deponha a meus pés desejos elevados, sentimentos
nobres.
CRISTÓVÃO
Porém...
BELISA
Adeus! No momento terá que se contentar com isso. / E já lhe disse mais do que
devia.
CRISTÓVÃO
Porém, seu engano, senhora, é que...
BELISA
Mas chega, eu não aguento mais sua investida, / meu pudor já fez um esforço
máximo,
estou enrubecida.
CRISTÓVÃO
Meu Deus, não quero lhe dizer nada; senhora, não me extorque! / Se eu a amo,
madame, lhe peço que me enforque.
BELISA
(Tapando os ouvidos,) – Não, não, por favor, não quero ouvir mais nada. / Ah,
como é insuportável uma pessoa apaixonada.
CENA V - Cristóvão, sozinho.
CRISTÓVÃO
Que o diabo enterre essa maluca e suas visões loucas. / Mas onde é que já se viu
tamanha pretensão? Tenho que procurar outra pessoa com mais senso comum, /
que compreenda o que viso.
Mas será que nesta casa ainda encontro alguém com um pouco de juízo?238
Ato II - CENA I - Aristides (deixando Cristóvão mas ainda lhe falando).
ARISTIDES
Está bem, está bem, eu te darei a resposta o mais breve possível. / Te apoiarei,
farei pressões, insinuações, tudo que for preciso.
Ah, como falam as pessoas apaixonadas. / Com que impaciência querem
realizar os desejos que...
Tudo fogo de palha! Eu jamais...
CENA II - Crisaldo e Aristides.
ARISTIDES
Ah, Deus te proteja, meu irmão.
CRISALDO
E a ti também, Aristides.
ARISTIDES
Você sabe por que é que eu estou aqui?
CRISALDO
Não, mas, assim que você disser, fico sabendo.
ARISTIDES
Você conhece Cristóvão há muito tempo?
CRISALDO
Acho que sim, é, conheço bem, pois não, há muito tempo. E o vejo por aí
frequentando, não é não?, a
nossa casa.
ARISTIDES
E qual tua opinião sobre ele?
CRISALDO
Me parece um homem honesto, de espírito, de brio, / inteligente, reto, de boa
conduta: olha aqui, pensando
bem, conheço pouca gente que tenha tanto mérito.
ARISTIDES
Bem, como eu estou aqui a seu pedido, me facilita muito tua admiração.
CRISALDO
Conheci muito o falecido pai dele na minha viagem a Roma.
ARISTIDES
Ah, é, me lembro!
CRISALDO
Você precisava tê-lo conhecido: um verdadeiro fidalgo.
ARISTIDES
Todos dizem.
CRISALDO
Tínhamos então pouco mais de vinte anos e, aqui entre nós meu irmão, não é
pra me gabar,239
mas o que fizemos em Roma nem se pode contar.
ARISTIDES
Imagino.
CRISALDO
Tenho certeza de que certas damas romanas nunca nos esqueceram. / Tínhamos
dinheiro, juventude, beleza,
e, acima de tudo, nossa escola francesa.
Muito marido romano aprendeu que na cama vale tudo que é humano.
ARISTIDES
Ainda bem que vocês honraram e divulgaram a pátria. / Mas vamos ao assunto
que me trouxe aqui.
CENA III - Belisa,mansamente, escuta Crisaldo e Aristides.
ARISTIDES
Cristóvão me encarregou de falar contigo: / está interessado em Henriqueta,
quer que você consinta que
entregue a ela seus bens e seu afeto.
CRISALDO
À minha filhinha?
ARISTIDES
Sim, por que não? Cristóvão está apaixonado – nunca / vi ninguém mais perdido
de amor por uma pessoa.
BELISA
(A Aristides.) Desculpe interromper, ouvi o que você / disse e sou obrigada a
intervir, pois há um grave engano.
Por trás das aparências há toda uma outra história.
ARISTIDES
Que é que há, minha irmã?
BELISA
Cristóvão faz um jogo estranho usando Henriqueta para / esconder seus
verdadeiros sentimentos. O coração dele pertence a outra pessoa.
ARISTIDES
Você está brincando. Não há condição, / Se ele não ama Henriqueta, é um
monstro de simulação.
BELISA
Estou lhe afirmando.
ARISTIDES
Mas ele próprio me disse.
BELISA
Pois sim!
ARISTIDES
Você sabe o que é que estou fazendo aqui? Ele me encarregou de falar com
Crisaldo, pedir a mão de Henriqueta. 240
Que é que você diz: sou um imbecil?
BELISA
O que eu digo é um fato – a conclusão é tua.
ARISTIDES
Só se está louco, não há outra explicação: insistiu para / que eu viesse logo,
exige tudo depressa, querendo
encurtar ao máximo o tempo que o separa do dia do enlace.
BELISA
É um homem sensível que sabe enganar galantemente. / Henriqueta, meu irmão,
é um derivativo, um pretexto engenhoso, um véu com o qual esconde a
verdadeira
face do mistério. Que só eu conheço, e posso revelar / - se tem vontade de sair
do engano.
ARISTIDES
Já que você sabe tudo, Belisa, diz então de uma vez a quem é que ele ama.
BELISA
Vocês querem saber?
ARISTIDES
Claro, diz: quem é?
BELISA
Eu.
ARISTIDES
Você?
BELISA
Eu mesma. Aqui onde me vê;
ARISTIDES
Que é isso, Belisa!?!
BELISA
Que significa essa expressão de surpresa? Eu revelei / alguma coisa de
estupefaciente? É inacreditável? Poracaso é o primeiro? Que quer que eu faça?
Sou de uma matéria pela qual as pessoas se deixam seduzir; estão
aí Dorante, Damião, Cleonte e Lúcio que mostram que não minto.
ARISTIDES
Que é que você quer dizer? Se deixam seduzir?
BELISA
Apaixonadamente.
ARISTIDES
Eles se declaram?
BELISA
Nenhum tomou tal liberdade. Até hoje, felizmente, / souberam respeitar minha
pessoa e nem ousaram me
dizer uma palavra. Mas, para demonstrar o que sentiam, / me oferecer o coração
e dedicar-me a vida, usaram uma mudez de eloquência rara.
ARISTIDES
Mas Damião eu nunca vi aqui.241
BELISA
Só não vem por respeito. Me idolatra a distancia.
ARISTIDES
E Dorante também? Te goza em toda parte.
BELISA
Você já ouviu falar em amor desprezado?
ARISTIDES
Cleonte e Lúcio, me dizem, se casaram.
BELISA
Por desespero. Impossibilidade. Demonstrei claramente
que nutriam uma paixão inútil.
ARISTIDES
Você vê o que ninguém vê – você é vidente.
CRISALDO
Você devia acabar com essas quimeras.
BELISA
Ah, quimeras! O senhor chama isso de quimeras? Quimeras, eu! Eu vendo
quimeras! Passo a vida a pensar, / a ler, a estudar, buscando a sensatez, a
análise, a ciência
e quando exponho a realidade diante dessas feras, / me insultam dizendo que
vejo quimeras!
Quimeras, eu! Deveras! Eu não sabia ser dada a quimeras!
CENA IV - Crisaldo e Aristides.
CRISALDO
A nossa irmã está completamente, é... (Gesto de louca.)
ARISTIDES
Piora dia a dia. Mas, voltando ao assunto, do qual, / aliás, não chegamos a sair.
Cristóvão te pede Henri
queta como esposa, que resposta você me dá a essa pretensão?
CRISALDO
Preciso perguntar? Consinto de bom grado / e lhe digo que esse enlace me deixa
muito honrado.
ARISTIDES
Mas você sabe que bens ele não tem, ou tem coisa modesta. E que...
CRISALDO
Isso pra mim é coisa sem importância. Cristóvão é rico de virtudes e não há
tesouro igual. Depois eu e o pai dele fomos grandes amigos, verdadeiros irmãos.
ARISTIDES
Então só nos falta falar com Filomena, procurar convencê-la, dando a impressão
de que é ela quem decide.
CRISALDO242
Pra quê? Por quê? Já decidi e basta. Ele vai ser meu genro.
ARISTIDES
Está bem, Crisaldo, mas não era nada demais pedir também o consentimento
dela. Vamos a...
CRISALDO
Você está brincando? Já disse – não é preciso. Decidindo por mim e eu decido
por ela.
ARISTIDES
Mas é que... Se, por acaso...
CRISALDO
Esquece, irmão, e fica descansado. / Deixa comigo as coisas desse lado.
ARISTIDES
Está bem, então. Vou lá em cima, sondar nossa Henriqueta, e volto logo pra
saber...
CRISALDO
E assunto resolvido: vou imediatamente falar com
Filomena.
CENA V - Crisaldo e Martina.
MARTINA
Ah, mas que azar o meu!
CRISALDO
Por quê?
MARTINA
Por ter nascido. Certo está é o ditado: / quem quer matar o cão diz que o cão
está danado.
Trabalhar pros outros é uma praga, cada um mais exigente
mais cheio de si. / Ó, se existe patrão bom, eu nunca vi.
CRISALDO
Mas o que é que você tem, que bicho te mordeu?
MARTINA
Antes fosse um bicho, patrão... foi a patroa.
CRISALDO
O quê, te mordeu?
MARTINA
Antes mordesse, patrão. Me despediu.
CRISALDO
Alguma coisa você fez, Martina.
MARTINA
Se fiz, não sei o que foi: só sei que dona Filomena mandou que eu fosse embora
e me ameaçou de me dar
cem chibatadas se me encontrar aqui.
CRISALDO243
Não tenha medo, você fica: estou satisfeito com você e seu serviço. Minha
mulher às vezes perde a calma,
fica um pouco exaltada mas é uma boa alma. / E quando eu não quero, claro
está, que...
CENA VI - Filomena, Belisa, Crisaldo e Martina.
FILOMENA
(Vendo Martina.) Mas, como, você ainda está aqui, sua patife!?! Depressa, dê o
fora, sua estúpida! Você vai sair daqui agora mesmo. E nunca mais apareça
diante dos meus olhos!
CRISALDO
Devagar, que é isso?
FILOMENA
Eu já disse: está demitida.
CRISALDO
Espera.
FILOMENA
Já a mandei embora. Não a quero mais aqui.
CRISALDO
Mas que foi que ela fez pra te irritar tanto assim?
FILOMENA
O quê? Você está do lado dela?
CRISALDO
De modo algum.
FILOMENA
Está lhe dando razão?
CRISALDO
Mas nunca, você sabe: pergunto apenas que crime
cometeu.
FILOMENA
Eu seria capaz de expulsá-la sem motivo?
CRISALDO
Sei muito bem que não, certo como estar vivo. Quero
só te lembrar que com essa gente...
FILOMENA
Não quero lembrar nada. Ela já vai embora.
CRISALDO
Está bem, está bem – já não está aqui quem falou.
FILOMENA
Quando pretendo uma coisa não admito obstáculo.
CRISALDO
De acordo. Está certo. É bastante razoável.
FILOMENA244
E você devia, se fosse um esposo normal, / me ajudar contra ela, uma ignorante
total.
CRISALDO
(A Martina.) Pois é o que estou fazendo. Ouviu, patifa?,
minha mulher tem toda razão em te botar pra fora. Isso não fica assim não. /
Teu crime é indigno de qualquer perdão.
MARTINA
Mas que foi que eu fiz? Que foi que eu fiz?
CRISALDO
(Baixo.) Cala a boca. Eu sei lá.
FILOMENA
Inda tem a ousadia de fingir que não sabe nada. / Não se dá por achada!
CRISALDO
Pra você ficar tão danada ela deve ter quebrado algum espelho, alguma
porcelana cara, / uma terrina rara.
FILOMENA
Isso mostra muitíssimo bem como você me conhece. / Por uma besteira dessas
eu ia perder a calma?
CRISALDO
Opa, opa! mais grave?
FILOMENA
Mas, e você duvida? Me acha assim tão irrazoável?
CRISALDO
Será que alguém roubou, por desmazelo dela, / a bandeja de prata ou peças de
baixela?
FILOMENA
E isso lá me importa?
CRISALDO
(A Martina.) Hum, a coisa é séria, / e você me fazendo pensar que era pilhéria.
(A Filomena.) Você a pegou furtando, com a mão em plena massa e...
FILOMENA
Pior do que isso tudo.
CRISALDO
Pior do que isso tudo?
FILOMENA
Pior.
CRISALDO
Mas, então, só pode ser... Bem, que outra coisa resta? / Pegaste a diabinha numa
pequena festa, praticando, quem sabe, hum, me conta... Como foi? Onde foi? /
Com quem foi?
FILOMENA
Mas que foi que te deu? Em que você está pensando?
CRISALDO
Ué, não foi isso? Então não adivinho.
FILOMENA245
Com uma insolência e um despudor sem igual, depois de mais de trinta lições
que ministrei pessoalmente
me agrediu com um solecismo ignaro, / um absurdo léxico realmente raro
que, tenho certeza, fez rodar na tumba o meu bisavô, / o famoso filólogo
Aurélio.
CRISALDO
Só isso?
FILOMENA
Só isso? Você acha pouco, depois de advertências e lições, ela se colocar assim,
de maneira brutal,
contra a mais bela ordem constituída, a ordem grãmatical
que, com suas leis,  / governa até os reis?
CRISALDO
Eu pensei que ela tivesse cometido um crime muito maior.
FILOMENA
Pelo que vejo você que acha o que ela fez foi coisa insignificante.
CRISALDO
De modo algum.
FILOMENA
Gostaria de ouvir sua defesa.
CRISALDO
Mas quem sou eu? Nem tento.
BELISA
São coisas que dão pena. Lhe damos uma frase e ela a destrói completamente,
sem perceber a intenção, o
estilo, a estrutura semântica. Já lhe ensinamos mil vezes as regras gramaticais, /
mas ela continua confundindo interjeições com flexões verbais.
MARTINA
Eu sei que quando as senhoras me ensinam têm a melhor tenção, / mas falar
essas gírias eu não aprendo não.
FILOMENA
Que ignorância! Chamar de gíria exatamente a línguagem intelectual fundada na
razão
e nas leis dos gramáticos! É uma subversão!
MARTINA
Se a gente se explica então não tá errada / nenhuma dessas bonitezas que me
ensinam não servem
pra nada.
FILOMENA
Olha aí, mais uma jóia sem par do seu estilo lapidar. / Nenhuma não servem pra
nada.
BELISA
Ô miolo mole! Depois desse esforço mortal da gente / você não vai falar nem
uma frase limpamente?246
Nenhuma é singular, servem é plural e nenhuma junto a não ou elimina a
negativa ou vira forma enfática.
No mínimo é uma expressão enigmática.
MARTINA
Mas meu Deus, a gente não pudemos estudar e nossa falação assim / é como
falam o pessoal lá de onde eu vim.
FILOMENA
É. O mal é incurável. Não tem jeito.
BELISA
Um solecismo hediondo. A gente não pudemos, o pessoal falam.
FILOMENA
Quando você fala não dói no próprio ouvido?
BELISA
Ah, que incapacidade, que espírito vulgar! Você não vê que você fere a língua?
MARTINA
Não vejo, não senhora. Se eu ferisse, é natural, sangrava.
FILOMENA
Ó Deus do céu, vê se entende, idiota: falamos da língua pátria, de vernáculo.
Você ofende o vernáculo.
MARTINA
Mas como, madame, eu posso ofensar uma pessoa a  quem nem siquer já fui
apresentada?
BELISA
Acho que você está abusando de ser tola. Eu já lhe expliquei de onde é que vem
esse vocábulo.
MARTINA
E pra mim a senhora acha que faz qualquer diferença se ele vem de Montmartre,
Toulouse ou de Marselha? / Deve ser gente da alta, não interessa.
BELISA
Ah, que martírio. Eu desisto de explicar: é uma porta.
FILOMENA
(A Crisaldo.) Se você pode me ajudar, por favor, manda ela embora.
CRISALDO
Está bem. (À Parte.) Eu costumo ceder quando ela está zangada. Depois então...
Vai menina, não a irrite mais. / (Alto.) Fora daqui, Martina!
FILOMENA
Mas como? Você parece que receia ofender essa idiota. / Trata-a como se
estivesse falando com uma grande dama.
CRISALDO
(Firme.) Eu? De maneira alguma. Fora daqui, já disse! / Vai embora!
(Suavemente e baixo.) Vai, vai, minha pobre criança.
CENA VII - Filomena, Crisaldo e Belisa.247
CRISALDO
Pronto, ela foi despedida. E deu sumiço. Mas agora lhe digo: não aprovo nada
disso.  / Uma moça boa e
trabalhadora
e você a despediu / por motivo imbecil.
FILOMENA
Que é que você queria? Que eu ficasse com ela me estropiando os ouvidos o dia
todo, infringindo todas
as regras do costume e da razão, / com erros de sintaxe e vícios de oração,
palavras deturpadas, / mutiladas,
errando todos os vocábulos / e falando na sala expressões dos estábulos?
BELISA
Você não, mas eu suo quando você a chama e, em vez de Senhor?, ela pergunta
Inhô? / um verdadeiro escárnio ao grande Aurélio.
E fala tanta besteira que já nem me causa pasmo / um solecismo, uma cacofonia
ou um pleonasmo.
CRISALDO
Que me importa o nome do teu bisavô, / que me importa a glória desse Aurélio,
que me importa uma ciência senil e arbitrária / se ela conhece as leis da
culinária?
A mim pouco me importa que quando está cozinhando,  / ela coloque mal
concordância e regência, diga palavras grosseiras, solte palavrões, e decline de
forma errada: / desde que não queime a minha carne assada.
Me interessa mais a língua na panela / do que na boca dela.
BELISA
Na boca dela, oh!
FILOMENA
Meu Deus, na boca dela!
CRISALDO
Aurélio não ensina ninguém a fazer sopa. E esses teus literatos / não sabem
conjugar o mais simples dos pratos.
FILOMENA
Eu me sinto envergonhada só de ouvir você gritar esse discurso estúpido! Que
indignidade pra quem se diz / um homem, só pensar todo o tempo em coisas
materiais, sem se elevar um instante às preocupações dosespíritos. Será que o
corpo, sujo e precário, merece de nós tanta atenção? / Não será mais sábio
esquecermos que existe, nos libertarmos de sua opressão?
CRISALDO
Liberte-se você que o corpo teu é teu, / mas deixa em paz o meu.
Do meu, eu trato. Sujo e precário, o que você quiser,
mas é o que se tem -  / e eu vou tratá-lo bem.
BELISA
O corpo e o espírito são um conjunto só, meu caro irmão. Mas se o que os
sábios dizem não é pilhéria,
o espírito tem valor maior do que a matéria.248
Nossa preocupação é dar-lhe precedência / e alimentá-lo bem com o suco da
ciência.
CRISALDO
Estou de acordo quanto à alimentação. Mas, com suco?
Isso não! Devemos dar ao espírito refeição mais exata: / um bom não de carne,
arroz, batata, para enfrentarmos precalços...
FILOMENA
Precalços, você disse? Percalços, por favor!
BELISA
Precalços! Sim senhor!
CRISALDO
Precalços ou percalços, a mim pouco me importa. Já estou cheio. Estou farto de
ouvir vocês falando como
se fossem as donas da cultura, quando aí fora o que dizem é que estão
completamente loucas. Malucas,
sim senhoras...
FILOMENA
Como? Quem teria a ousadia?...
CRISALDO
(A Belisa.) Falo mais a você, adorada irmãzinha. Fica
toda irritada com o menor solecismo / sem reparar que o seu comportamento é
todo um barbarismo.
Essa quantidade de livros em que vive mergulhada ? é uma montanha de lixo
que não vale nada.
Isto é: com exceção daquele Plutarco com capa de lona / que eu uso pra calçar o
braço da poltrona.
Você devia queimar toda essa porcaria, toda essa falsidade / e deixar a ciência
com os sábios de verdade.
Quebrar ou botar fora a luneta imensa que está lá no
sótão e as outras bugigangas com que vê não sei o quê.
Esquecer um pouco o que se faz na lua / e preocupar-se mais com a arrumação
da casa, obrigação sua.
Não é nada direito que uma mulher estude mil coisas
irreais / e descuide, na prática, das coisas mais banais.
Orienta os filhos no caminho da vida, dirigir e comandar a criadagem, manter a
casa limpa e arejada, gastar o dinheiro com economia, tai uma filosofia.
Nossos pais, nesse ponto, sabiam o que diziam quando afirmavam que uma
mulher já não é nada tola se distingue uma réstia de alhos de uma de cebolas, /
um par de calças de um par de ceroulas.
As muheres antigas não liam, / mas viviam,
consideravam cuidar do lar um ato de cultura / e, em vez de aprender a besteira 249
da literatura,
que a imaginação só entulha, / manejavam o dedal, a linha e a agulha.
Ah, como estão longe disso as madames de agora! / Querem só escrever, citar
autores, e a atividade do
lar virou uma coisa indigna. E nesta casa, então, isso chegou à loucura total, /
pois aqui vocês sabem tudo, tudo, tudo, menos o fundamental.
Sabem como vai a lua, a estrela Polar, Vênus, Saturno, Marte – eu sei que
sabem! – mas, sabendo tanto, eu não me explico / é que nunca saibam onde está
meu penico.
Até as criadas, para agradar as patroas, estudam matemática e desinências
gregas,distinguem que de cuja mas não limpam o pó da sala e deixam a roupa
suja.
O racionalismo aqui virou uma doutrina / e, racionalizando, ninguém mais
raciocina.
Uma lê um romance e queima o refogado. / Outra declama versos e faz leitão
assado com o fogão apagado.
Com o exemplo de vocês religiosamente seguido / eu tenho servidores mas
nunca sou servido.
Tinha sobrado apenas uma pobre empregada / que por qualquer milagre não
estava viciada,
mas você a pôs na rua com horror. / Pois não obedecia ao mestre Aureliôr.
FILOMENA
Aurélio.
CRISALDO
Disse e repito, irmã, não aguento mais a coisa assim, / não aguento mais
francês, grego, nem latim,
e, sobretudo, não me passa no gogó / a figura ridícula desse Tremembó.
Os versos que te dedica, a mim me dão vergonha, e quando ele acaba de falar,
confesso, fico horas sem fimsem conseguir entender nem ele nem a mim. Só
com vocês é que ele faz escola, / pois eu estou seguro de que não é bom da bola.
FILOMENA
Que baixeza, senhor, de alma e de linguagem.
BELISA
Os corpúsculos se juntam milhões, bilhões de vezes, mas eu nunca vi um
espírito composto de átomos mais burgueses.
Será que o meu sangue é o mesmo que o teu? /
Tenho até vergonha de ser da mesma família: / vou-me embora, tomar meu chá
de tília.
CENA VIII - Filomena e Crisaldo.
FILOMENA
Ainda tem mais alguma coisa brilhante a declarar?
CRISALDO250
Eu? Eu fui brilhante? Ah, bom, bom. Mas chega de brigar. Vamos mudar de
assunto. Tua filha mais velha, já falamos, detesta o casamento. É uma filósofa,
enfim,
ou coisa parecida, / e eu não quero me meter na sua vida.
Está bem orientada, ou não está, / sei lá,
mas isso é com você. Mas a outra, Henriqueta, é outra vocação, é outro espírito,
/ acho que é hora de lhe dar um dote e lhe escolher o marido...
FILOMENA
Eu também já pensei nisso, já resolvi o caso dela. O senhor Tremembó de quem
você aliás não gosta,
que você acha um criminoso / só por ser estudioso,
é o homem que escolhi pra marido de Henriqueta. E sobre isso não quero
discussão. Meu julgamento é
definitivo. Está decidido. Você não deve falar nada a ninguém antes que eu
comunique a Henriqueta o que resolvi. Sei o que dizer, como dizer e estou certa
de que
ela vai concordar comigo. Não tente influência nenhuma, mesmo pouca, pois eu
saberei disso no momento / em que ela abrir a boca. (Sai.)
ARISTIDES
(Entra.) E como é, mano? Tua mulher acaba de sair e eu não quero perder
tempo: como é que foi a conversa?
CRISALDO
É. Foi.
ARISTIDES
Tudo perfeito, é isso? Cristóvão foi aceito? A velha, ô, tua mulher, consentiu?
Está tudo resolvido?
CRISALDO
Bem... ainda faltam detalhes.
ARISTIDES
Que detalhes? Diz logo, recusou?
CRISALDO
Não.
ARISTIDES
Hesita então?
CRISALDO
Não, não, está decidida!
ARISTIDES
Ah, que bom, está decidido!
CRISALDO
Eu disse decidida. Já tem um outro pra genro.
ARISTIDES
Ah, pra genro já tem um outro?
CRISALDO
Um outro.
ARISTIDES251
Ele tem nome?
CRISALDO
Se Tremembó é nome.
ARISTIDES
Não diz! Parece incrível! Vê só! / Entre tantos no mundo logo esse Tremembó.
CRISALDO
Esse mesmo que nos enche com versos e latim.
ARISTIDES
E você o aceitou?
CRISALDO
Deus que me livre! Longe de mim!
Fiquei quieto e calado. / E estou bem satisfeito dessa minha atitude - não me
comprometi com o safado.
ARISTIDES
Quer dizer, você acha um avanço não sair do lugar. / Você acha eloquente
conseguir se calar.
Pelo menos você propôs Cristóvão?
CRISALDO
Não, estava interessada em outro genro, eu quis evitar o não. / Achei melhor
guardar o meu pra outra ocasião.
ARISTIDES
Mas que prudência sábia! Você não tem vergonha de ser tão engenhoso? Nunca
vi na minha vida tal fraqueza: / te joga na cara seu poder absoluto,
age como um verdadeiro algoz, / e você nem se atreve a levantar a voz?
CRISALDO
É, meu irmão, é muito fácil falar assim distante, / mas eu queria ver você
enfrentando esse elefante.
Eu tenho horror de encrenca.
Eu quero paz, sossego. A mansidão / e Filomena, irritada, é um leão.
Diz que é filósofa e só fala de filosofia, mas se lhe pisam os calos ela esbraveja.
A vocação do bem e a pregação moral ela deixa de lado / e coitado do coitado!
Basta eu levantar o dedinho contra a sua vontade / pra ter que enfrentar uma
horrível tempestade.
Eu me apavoro, eu tremo, eu suo de emoção: / ela põe fogo pela boca – um
verdadeiro dragão.
E apesar de tudo isso, me obriga, o tempo todo, a só tratá-la com expressões de
carinho: / Nenhem, nhinhim, nhonhon, meu amorzinho.
ARISTIDES
Que é que você quer? O culpado é você. Por tua covardia ela hoje domina,
soberana.
Mas seu poder se baseia unicamente em tua covardia. / Foi você quem lhe deu o
posto de tirana.
Você cede, você dá, você entrega, e deixa que ela te leve por qualquer caminho,
/ como todo mundo vê – pelo focinho.252
Mas agora chegou a encruzilhada, você tem que decidir - ou é um homem / ou
é... um lobis-homem.
Toma coragem, respira fundo / e diz a Filomena o que você quer do mundo.
Grita: “Eu Quero”! ou entrego o pescoço de tua filha / pra ser enforcado por
essas malucas da família. Você dá tudo que tem, dinheiro, prestígio e a pobre da
Henriqueta e deixa que um idiota te use como trampolim / só porque sabe meia
dúzia de frases em latim.
Um pedante que tua mulher impinge como grão filósofo. / E que em verdade é
só um idiotósofo.
Ou você enfrenta essa feroz zombaria / ou eu conto a Cristóvão a tua covardia.
CRISALDO
Calma, você tem toda razão. / É hora mesmo de uma decisão.
Até aqui sou um fracasso, / mas te garanto que agora alguma coisa eu faço.
ARISTIDES
Muito bem. Aplausos. Viva.
CRISALDO
Eu estou todo errado / em me deixar ser dominado. / É uma coisa infame.
ARISTIDES
Mas evidente.
CRISALDO
Se aproveitou do  meu temperamento.
ARISTIDES
Se vê. Se vê.
CRISALDO
Abusou demais da minha bondade.
ARISTIDES
Está certo. Exato.
CRISALDO
Mas hoje eu vou mostrar que minha filha é minha filha.
Enfrento Filomena, rejeito o genro dela, imponho o
genro meu
e fica decidido: quem manda aqui sou eu!
ARISTIDES
É isso que eu quero ver. De novo um ser racional.
CRISALDO
Como você sabe onde Cristóvão mora, / vai e diz a ele que venha aqui agora.
ARISTIDES
Eu vou correndo.
CRISALDO
Vai. O meu alheamento foi demais profundo. / Mas vou reagir e provar que sou
homem, nas bochechas
do mundo.
Refleti, refleti e não recuo mais, aconteça o que aconteça: / o raciocínio me
subiu à cabeça.253
CENA VIII - Filomena, Armanda, Belisa, Tremembó e Coelho.
FILOMENA
Vamos sentar aqui pra ouvir devagar, / sentir e degustar, / o senhor Tremembó e
seus versos sem par.
ARMANDA
Estou morta de ansiedade.
BELISA
Eu não aguento esperar. Eu também agonizo.
FILOMENA
(A Tremembó.) Pra mim, esteja certo, nada mais tem valor. / Só o que vem do
senhor.
ARMANDA
Mas é de uma beleza que não tem similar.
BELISA
Um manjar suculento de um cozinheiro invulgar.
FILOMENA
Não nos faça esperar. Cada minuto é uma hora.
ARMANDA
Depressa, por favor, que a emoção...
BELISA
Não demore mais nossa aflição.
TREMEMBÓ
(A Filomena.) Ai de mim, senhora. É uma criança apenas recém-nascida a que,
agora mesmo, em seu pátio,
eu dei a vida. E se não considera uma ousadia minha, / espero que lhe sirva de
madrinha.
BELISA
Ah, mas que espírito!
CENA II - Henriqueta, Filomena, Belisa, Armanda, Tremembó e Coelho.
FILOMENA
(A Henriqueta, que faz menção de se retirar.) Olá Henriqueta, está fugindo?
HENRIQUETA
Não quero atrapalhar reunião tão culta.
FILOMENA
Ora, vem cá, presta atenção, / ouve conosco essa maravilha de composição.
HENRIQUETA
Mas, mãe, eu não entendo nada de ciência ou literatura. / Reconheço minha
obtusidade diante de qualquer cultura.
FILOMENA
Não faz mal. Senta aí e ouve um instante. / Depois vou te contar um segredo
importante.
TREMEMBÓ254
(A Henriqueta.) Realmente as ciências nada têm para dar / a uma jovem como a
senhorita, feita só pra encantar.
HENRIQUETA
Nem uma coisa nem outra; a verdade é que não tenho o menor interesse em...
BELISA
O recém-nascido, por misericórdia.
FILOMENA
(A Coelho.) Depressa, menino, arranja em que sentar.
(Coelho tropeçando, cai no chão.) Mas que menino desastrado! Como se atreve
ainda a cair esse analfabeto / depois que lhe ensinei o equilíbrio do ser e do
objeto?
BELISA
A tua queda, ignorante, coisa que já devia saber na tua idade, / foi porque você
se afastou do que nós chamamos centro de gravidade.
COELHO
A gravidade eu percebi, madame, quando já estava em terra. Mas não foi nada
grave.
FILOMENA
(A Coelho.) Brutamontes.
TREMEMBÓ
É preciso agir com o cuidado devidro.
ARMANDA
Ah! Ah! Que espírito! Cuidado devidro!
BELISA
Realmente, encantador. Cuidado de vidro! Um verdadeiro achado. (Sentam-se.)
FILOMENA
Estamos prontas para o nosso alimento espiritual.
Venha o banquete.
TREMEMBÓ
Para o imenso apetite que vejo ante meus olhos, é pouco um prato só de oito
versos insossos, de modo que vou juntar ao molho do epigrama, ou melhor, à
sopa do madrigal, o ragu de um soneto, que no palácio de certa princesa, / foi
saboreado como sobremesa.
Como está delicadamente temperado com sal ático / espero que o achem pelo
menos simpático.
ARMANDA
E alguém duvida? Oh, senhor Tremembó!
FILOMENA
Vamos, preste atenção.
BELISA
(Que interrompe Tremembó cada vez que ele se dispõe a ler.) Eu sinto meu
coração palpitar por antecipação.
A poesia é para mim uma coisa emocionante, /sobretudo quando trata de algum
tema galante.
FILOMENA255
Se falamos todas o tempo todo, não vamos ouvir nada.
TREMEMBÓ
So...
BELISA
(A Henriqueta.) Silêncio, sobrinha.
ARMANDA
Ah, deixa ele ler em paz!
TREMEMBÓ
Soneto à bela princesa Urânia. Escrito em abril quando ela estava febril.
BELISA
Ah, que graça!
FILOMENA
Shhh.
TREMEMBÓ
Vossa prudência cochila, / abrigando na barriga / e tratando como pupila /
vossa cruel inimiga.
BELISA
Que início admirável!
ARMANDA
Que audácia nas palavras!
FILOMENA
Que precisão de forma!
ARMANDA
Esse prudência que cochila é filosófico e ditirâmbico.
FILOMENA
É realmente um talento à parte. Só ele sabe fazer esse tipo de composição
poética.
BELISA
Tratando como pupila revela um carinho, um aconchego pela febre que...
ARMANDA
A mim o que mais me impressionou foi a palavra barriga. Poucos ousariam,
num poema...
BELISA
Bem, mas vamos ouvir o resto...
TREMEMBÓ
Vossa prudência cochila, / abrigando na barriga, / e tratando como pupila, /
vossa cruel inimiga.
BELISA
Prudência que cochila!
ARMANDA
Abrigando na barriga!
FILOMENA
Tratando como pupila!
COELHO256
(Distraído.) Vossa cruel inimiga!
(Todos o olham, espantados.)
TREMEMBÓ
Mandai-a embora, ó doente / de vossa rica mansão / onde essa ingrata
insolente
prepara o vosso caixão.
BELISA
Ah, devagar! Me deixa respirar, pelo amor de Deus!
ARMANDA
Por favor, é preciso um minuto de tempo para admirar.
FILOMENA
A gente sente, ao ouvir esses versos, um não sei quê
de extasiante que nos tira a calma / e penetra no mais fundo da alma.
ARMANDA
Mandai-a embora, ó doente, de vossa rica mansão. Rica mansão como está
bem dito, como está bem encaixado! antes do caixão! Sem falar do apelativo, ó
doente, / que a mim me comoveu, é comovente.
FILOMENA
E ingrata insolente, é uma jóia. Divino. Porque poderia apenas ser ingrata, a
febre, naturalmente. Mas não éapenas ingrata! é também insolente. Ingrata
insolente. Porque o natural da ingratidão, é claro, é uma certa  humildade,
passar despercebida. Mas esta não: é in-grata insolente. / Ah, conheço tanta
gente!
ARMANDA
E prepara o vosso caixão, não acham inusitado?
BELISA
Se não tivesse outra virtude restaria a de ser uma frase
invulgar.
ARMANDA
Ah, por que isso não me ocorre?
BELISA
Vale todo um poema.
FILOMENA
Eu fico duvidando, eu chego a duvidar, se vocês, como eu, sentem tanta
emoção? Se vão ao extremo
do sentido / que toca fundo o espírito, não fica só no ouvido.
ARMANDA E BELISA
Oh! Oh!
FILOMENA
Mandai-a embora, ó doente, isto é, que ninguém ouse tomar o partido da febre,
defendê-la. É uma doença, que a doente, naturalmente, deve mandar embora.
Mandai-a embora. Mandai-a em-bo-ra. Mandaiem-bora. De qualquer forma
que se diga, a força permanece. E a beleza. Não sei se acontece o mesmo com vocês, mas para mim essas 257
duas palavras vibram
como um milhão.
BELISA
É evidente! / Têm muito mais sentido oculto do que aparente.
FILOMENA
(A Tremembó.) Mas, quando o senhor criou esse mandaí-a embora / tinha a
intenção profunda que estou vendo agora?
Sabia tudo que nos estava transmitindo? / É lindo! É lindo! É lindo!
TREMEMBÓ
Hum, é, hum, ho.
ARMANDA
O que não me sai da cabeça é insolente. Grudou, fixou, não sai. Essa febre
insolente, ingrata, injusta, desonesta, / que desarranja as tripas e dói aqui na
testa.
Ingrata porque quem a abriga ela maltrata.
FILOMENA
Enfim, dois quartetos são jóias da poética. Ouçamos os tercetos, por favor.
ARMANDA
Mas antes eu gostaria de ouvir novamente mandai-a embora, ó doente.
TREMEMBÓ
Mandai-a embora, ó doente.
FILOMENA, ARMANDA E BELISA
DE VOSSA RICA MANSÃO, AH!
TREMEMBÓ
Onde essa ingrata insolente...
FILOMENA, ARMANDA E BELISA
A ingrata da febre!
TREMEMBÓ
Prepara o vosso caixão.
FILOMENA
O caixão mortuário, a campa, o repouso final. Eu vejo tudo que ele apenas
bosqueja.
ARMANDA E BELISA
Ah!
TREMEMBÓ
Sem respeito ao sangue azul, / vos acata ao norte e ao sul.
FILOMENA, ARMANDA E BELISA
Deus do céu!
ARMANDA
Ao norte e ao sul são os extremos do corpo.
TREMEMBÓ
Mas enfrentai, senhora os miasmas malsãos, / afogando-os com suas próprias
mãos,
como quem afoga as mágoas. / Vá a uma estação de águas! (Palmas.)
FILOMENA258
Eu não aguento mais.
BELISA
Vou desmaiar!
ARMANDA
Se morre de prazer!
FILOMENA
É um êxtase! Um frisson! Um transporte indizível!
ARMANDA
Vá a uma estação de éguas! Que força imperativa!
BELISA
Como quem afoga as mágoas! Que símile fatal!
FILOMENA
Com vossas próprias mãos! Ah, a idéia da princesinha doente, num rasgo de
coragem, enfrentando a doença sinistra...
ARMANDA
Cada verso é uma descoberta diferente!
BELISA
Cada palavra é uma verdade nova!
FILOMENA
Cada sílaba é um impacto auditivo.
ARMANDA
O ouvido absorve tudo como uma mensagem de uma amplitude sem par, um
som universal. Um som
liberto de tudo; para o mundo inteiro. Som livre para exportação.
TREMEMBÓ
O soneto então, merece a aprovação das...
FILOMENA
É admirável! Novo. Inédito. Ninguém jamais fez coisa semelhante.
BELISA
(A Henriqueta.) Que estranho! Você nem parece como vida com essa obraprima! Dá a impressão de uma
pessoa sem sensibilidade, alheia, fria.
HENRIQUETA
Cada um dá a impressão que pode, minha tia. O belo espírito é pra quem tem,
não pra quem quer.
TREMEMBÓ
Minha poesia aborreceu a senhorita, eu sei.
HENRIQUETA
Me aborreceu! Ah, não, de modo algum. Nem sequer
escutei.
FILOMENA
E agora o epigrama.
TREMEMBÓ
Sobre uma carruagem de ouro e rendas presenteada a uma bela amiga.
FILOMENA259
Os seus títulos têm sempre alguma coisa de extraordinariamente precioso.
ARMANDA
E nos preparam para mil outras finesses que se seguem.
TREMEMBÓ
O amor tão caro me vendeu seus elos...
ARMANDA, FILOMENA E BELISA
Ah!
TREMEMBÓ
E nisso já custou metade de meus bens. E quando tu vires chegar a carruagem,
/ de ouro e rendas pra tua viagem, / verás que ouso mostrar a todo meu país, /
que nada vale tanto quanto minha Laís.
FILOMENA
Ah, minha Laís, como é bela a erudição!
BELISA
Só esse intróito aí vale mais de um milhão.
TREMEMBÓ
E quando vires chegar a carruagem, / de ouro e rendas pra tua viagem, / dirás
que ouso mostrar o meu país, / o amor que tenho por minha Laís. / Mas
ninguém dirá que é ostentação / porque todos verão que és tentação.
ARMANDA
Oh! Oh! Oh! Que fecho admirável! Que sublime, surpreendente, inesperado!
FILOMENA
Escrever assim, com esse requinte, ninguém mais.
BELISA
Ninguém dirá que é ostentação / porque todos verão que és tentação.
FILOMENA
Eu não sei se já estava preparada ao conhecê-lo, se já tinha o espírito prevenido,
mas acho seus versos e sua prosa inimitáveis.
TREMEMBÓ
(A Filomena.) Se a senhora quisesse também me mostrar alguma coisa da sua
obra eu ficaria feliz.
FILOMENA
Não tenho nada em versos, mas gostaria de lhe mostrar, qualquer dia, o projeto
que fiz para nossa Academia. O senhor pode até pensar mal, mas nem mesmo
Platão, para a República, fez um projeto igual. Porém prefiro que o veja só
quando eu tiver posto todos os detalhes no papel, desenvolvido totalmente meu
plano. Em princípio, contudo, lhe adianto que meu principal objetivo é colocar a
mulher na posição que merece, pois o que nos deixa mais humilhadas é a
situação de inferioridada que fomos relegadas. Agora, reunidas, poderemos lutar
pelos nossos direitos, / derrotando os homens e seus preconceitos.
Com os meus projetos / sairemos da posição de seres abjetos, / de simples
objetos.
ARMANDA
É uma injustiça e uma imoralidade o que se diz de nosso sexo, / atribuindo-lhe
interesse só por coisas sem nexo -260
bordadinhos, saiotes, maquiagem, cochichos –  / não somos seres humanos,
somos bichos.
BELISA
Temos que sair logo dessa servidão vergonhosa / e colocar nosso sexo em
posição honrosa.
TREMEMBÓ
Todos sabem o imenso respeito que devoto à mulher: / não sou desses que
elogia apenas o brilho dos seus olhos - dou até mais valor à luz do seu espírito.
FILOMENA
Nós nunca duvidamos de que o senhor está conosco.
Mas queremos mostrar a todos os homens que não devem nos tratar com esse ar
paternal, como uma criança dependente sua, / que têm que ajudar até a
atravessar a rua.
Precisam saber que já dominamos a filosofia / e que, agora, teremos nossa
academia.
Na deles não entramos mas na nossa nós nada separamos: / misturaremos
filosofia e ciências metafísicas, histórianatural e astronomia.
E tudo será livre, tudo permitido. / Não teremos seitas nem partido.
TREMEMBÓ
Por natureza eu sou peripatético. Mas acho uma boa posição, não ter nenhuma.
FILOMENA
Eu sou meio abstrata, me agrada o platonismo.
ARMANDA
Gosto de Epicuro, é um filósofo puro.
BELISA
Pois a mim só interessam os corpúsculos e as molecucas embora não consiga
admitir o vácuo. Me parece inócuo uma coisa iníqua. / E considero a matéria
sutil contraditória. E conspícua.
TREMEMBÓ
Descartes me impressiona pelo imã, embora exagere no seu cartesianismo.
ARMANDA
O que me impressiona nele é a teoria dos corpos que caem em turbilhões.
FILOMENA
Eu aprecio refletir sobre as estrelas cadentes  / e os homens – decadentes.
ARMANDA
Estou ansiosa por ver nossa Academia aberta. / Todo dia haverá nova
descoberta.
TREMEMBÓ
Eu espero tudo do talento de uma mulher formosa / para quem a natureza já foi
tão generosa.
FILOMENA
Vou revelar aqui minha primeira descoberta: vi claramente vistos homens
andando na lua.
BELISA261
Homens não vi. Mas vi uma igreja com campanário e sacerdote.
ARMANDA
Ah, esclarecemos tudo com a academia aberta; / que o homem está errado e a
mulher está certa.
FILOMENA
A moral é uma das coisas que mais me apaixonam como já apaixonou os
maiores espíritos. Mas admiro também os estóicos / - duros, definidos,
insensíveis, heróicos.
ARMANDA
No que diz respeito à língua, já tenho tese formada. / Deve ser mais regrada, /
mais regulamentada.
Tiraremos uns acentos, poremos outros acentos, escreveremos as palavras de
acordo com o som, se esquecer naturalmente de misturar tudo com a etimologia,
/ de modo que só nós seremos donas da grafia.
Palavras parecidas / terão que ser distinguidas,
mêdo de medo, tôda de toda, bêsta de besta, tudo tão complicado /que só nós
seremos senhoras do mercado.
Faremos conferências e assembléias, distribuiremos diplomas de filologia para
que o povo entenda de uma vez que o alfabeto é uma coisa superior, da
burguesia.
Só escreverá bem quem for bem competente / e quem não souber escrever é
povo, não é gente.
FILOMENA
Mas o mais belo projeto de nossa academia, / ainda no que diz respeito ao
sacrossanto campo da
filologia,
ah, uma proposta realmente audaz e revolucionária é
uma idéia, afinal, de tal simplicidade / que será exaltada pelos séculos, pela
posteridade.
Trata-se, senhor Tremembó, da idéia de eliminar da língua, tirar do léxico, deter
de vez o tráfico, / de todos os vocábulos sujos, imorais e pornográficos.
Mas não só os vocábulos – também as sílabas más, sonoridades fétidas que
sorrateiramente penetram nas
mais belas palavras de maneira funda, / dando-lhes uma entonação náusea e...
Oh, quase que disse, viu? Bem, digo só como exemplo - ... bunda.
Nauseabunda. Se necessário for poderemos dizer nauseanádega, nauseatraseiro.
/ Não fica mais maneiro?
TREMEMBÓ
Mas, infinitamente.
FILOMENA
Eu sei que é um trabalho! O dicionário está infiltrado: ecumênico, abundante,
peruca, pautado, repenico,
receio, culatra, todas essas sílabas infames que os imbecis de todos os calibres
usam como duplas intenções /e o intuito cretino de fazer ruborizar as damas, 262
ofender o pudor, insultar
o recato feminino.
TREMEMBÓ
Mas é um projeto realmente admirável.
BELISA
O senhor será o primeiro a ler os estatutos assim queestejam prontos.
TREMEMBÓ
Não poderá deixar de ser um verdadeiro modelo.
ARMANDA
Seremos, por princípio, juízes supremos de tudo que se escreva. Conseguiremos
leis para que prosa e verso nos sejam submetidos a só nós e nossos amigos
seremos consagrados pessoas de talento. Quanto ao talento alheio seremos nós
também que iremos decidir quemtem e quem não tem / apontando ainda quem
escreve mal e quem escreve
bem.
CENA III - Filomena, Belisa, Armanda, Henriqueta, Tremembó,Coelho e
Vadio.
COELHO
(A Tremembó.) Senhor, tem um cavalheiro aí que quer
falar consigo.
Está lá na entrada: / usa roupa preta e tem voz delicada.
TREMEMBÓ
É o  meu amigo sábio, que há séculos implora
conhecer a senhora.
FILOMENA
Manda-o entrar que a casa é sua. (Tremembó vai ao encontro de Vadio.)
Alguém que, afinal, vem homenagear nosso espírito. (A Henriqueta, que vai
saindo.) Eu já
lhe disse, de maneira bem clara, preciso de você.
HENRIQUETA
Mas para que, mamãe, pra quê?
FILOMENA
Fica aí mais um pouco; eu já te digo.
TREMEMBÓ
(Apresentando Vadio.) Aqui está o homem que morria de vontade de conhecer
Vossa Senhoria.
Apresentando-o, minha senhora, quero esclarecer que não estou apresentando
um infiel, ou um profano:
um homem de talento, amigo de quem muito me é ufano.
FILOMENA
Se quem apresente é o senhor / não existe maior penhor.
TREMEMBÓ263
Conhece os clássicos como ninguém, mas onde nem perto ninguém chega, / é
no seu conhecimento de filologia grega.
FILOMENA
(A Belisa.) Ele sabe grego? Ó Deus do céu, o grego! Ele sabe grego, maninha!
BELISA
(A Armanda.) O grego, minha sobrinha!
ARMANDA
O grego! Que espantoso!
FILOMENA
Com que então o senhor sabe o grego?
Ah, permita-me que aproveite o ensejo. / E em homenagem ao grego eu lhe
ofereça um beijo.
(Vadio beija também Belisa e Armanda.)
HENRIQUETA
(A Vadio também quer beijá-la.) Desculpe, meu senhor, e me deixe em sossego,
/ grego pra mim é grego. (Sentam-se.)
FILOMENA
Tenho um maravilhoso respeito pelos livros gregos.
VADIO
Receio ter sido inoportuno e interrompido sua reunião, mas estava de passagem
/ e não queria adiar mais minha homenagem.
FILOMENA
Com o grego, senhor, não se interrompe nada.
TREMEMBÓ
Mas ele é admirável também em prosa e verso e, se permitem, poderá, quem
sabe? nos ler alguma coisa.
VADIO
O defeito dos autores com as suas produções / é dominar, destruir todas as
conversações.
No palácio, na corte, nas ruas, nos teatros, é aflitivo
encontrar em toda parte, / gente que confunde amolação com arte.
Não conheço nada mais tristonho / do que um poeta realmente enfadonho
que mendiga nosso ouvido
pra ler coisas sem sentido. / Em semelhante situação não quero estar:
Sigo um exemplo grego, um mestre da filosofia
que não escrevia nem lia. / Porém, como sei que as senhoras pelo espírito têm
verdadeira paixão, / vou abrir aqui uma exceção.
TREMEMBÓ
Os seus versos têm beleza que nenhuma poesia tem.
VADIO
Ah, mas as Graças e Vênus inspiram os seus também.
TREMEMBÓ
Porém o senhor tem os ritmos certos, os vocábulos
exatos.
VADIO264
Mas nos seus é que se encontra o ithos e o pathos.
TREMEMBÓ
Porém a sua rima é tão elegante / quanto a de Virgílio, Homero, Dante.
VADIO
Mas suas odes têm uma delicadeza rara / com as quais nem Horácio se compara.
TREMEMBÓ
Há algo mais encantador / do que suas canções de amor?
VADIO
Alguém já fez alguma coisa como os seus sonetos?
TREMEMBÓ
E os seus rondós, as suas quadras, os seus libretos?
VADIO
Onde se encontram maravilhas iguais a seus madrigais?
TREMEMBÓ
Quem nunca ouviu uma balada sua não viveu.
VADIO
Minhas rimas são pobres, suas rimas são ricas.
TREMEMBÓ
Ah, se a França reconhecesse o seu valor. Um verdadeiro sol!
VADIO
Ah, se a França premiasse seu talento de escol.
TREMEMBÓ
O senhor andaria em carruagem de ouro.
VADIO
E o senhor a esta altura já teria uma estátua. (Em outro tom.) Bem, aqui está a
pequena balada, / sei que não vale nada.
TREMEMBÓ
(A Vadio.) O senhor já ouviu com certeza um sonetinho sobre a febre da
princesa...
VADIO
Ah, sim, me leram ontem, numa reunião.
TREMEMBÓ
Sabe quem foi que fez?
VADIO
Olha, eu nem quis saber. / O tal soneto é duro de roer.
TREMEMBÓ
Estranho que o considere como tal. / Essa não é, definitivamente, a opinião
geral.
VADIO
O que não o impede de ser uma porcaria. / Se o senhor tivesse ouvido já
concordaria.
TREMEMBÓ265
Um momento, um momento – não afirme por mim. / Não conheço ninguém
capaz de escrever uma poesia
assim.
VADIO
Não conhece? Se conhecesse perderia o ar. / Bem, amigo, só posso me
congratular.
TREMEMBÓ
Acho bom o soneto, acho excelente, de extraordinário valor. / E sei bem do que
falo – eu sou o autor.
VADIO
O senhor?
TREMEMBÓ
Eu mesmo!
VADIO
Bem, perdão,
começo a duvidar da minha opinião.
TREMEMBÓ
Ora, o infeliz sou eu que não consegui lhe agradar.
VADIO
Vai ver que ao escutar eu estava distraído, /depois, muito bem, o soneto não foi
lido.
Mas, discussão encerrada, / eu recito minha balada.
TREMEMBÓ
Sabe que a balada / pra mim já é coisa passada?
Ninguém mais se interessa, está fora de moda.
VADIO
Realmente, balada só agrada a pessoa culta e inteligente.
TREMEMBÓ
Não concordo com essa – a balada não é nada.
VADIO
Eu disse claramente – gente culta e inteligente.
TREMEMBÓ
Lapso de ignorante – / confundir inteligente com pedante.
VADIO
Como pedante? O senhor acabou de dizer que não aprecia.
TREMEMBÓ
Eu lhe dou um conselho: / se quiser um pedante é só olhar no espelho.
(Todos se levantam.)
VADIO
E o senhor, se olhar, verá um literatelho.
TREMEMBÓ
Escritorzinho de alcova, borrador de papel...
VADIO
Escritor que ninguém lê, vergonha do metiê.266
TREMEMBÓ
Ladrão de idéias ordinário, / indecente plagiário!
VADIO
Pernóstico!
TREMEMBÓ
Agnóstico!
FILOMENA
Senhores, onde pretendem chegar?
TREMEMBÓ
Vai ter que gastar a eternidade / devolvendo tudo que roubou à antiguidade.
VADIO
E você no ultimo prefácio / assaltou Dante e Horácio?
TREMEMBÓ
Roubar é pouco. Você aleijou Boccaccio.
VADIO
Você tem inveja do meu prestígio e renome.
TREMEMBÓ
Pobre do teu editor – morreu de fome.
VADIO
Nem quero ouvir afirmação tão néscia.
Minha poesia é consagrada.
TREMEMBÓ
Mas, como não? Vem da Grécia.
VADIO
Por acaso já leu o que o crítico Boileau escreveu do
senhor?
TREMEMBÓ
Por acaso já leu o que o crítico Boileau escreveu do
senhor?
VADIO
A mim ele me trata com respeito. Atira-me, é verdade, uma maldade ou outra,
mas em que companhia
honrosa / - tudo que é gente importante na poesia e na prosa.
O senhor porém ele usa apenas como veículo / de tudo que é ridículo.
TREMEMBÓ
Porque, é natural, me dá mais importância. Joga-o no meio do lixo, no lugar que
merece, / e esquece.
Não vai gastar com um escritor ruim / o mesmo tempo que gasta combatendo a
mim.
Ele compreende bem que eu sou o adversário / e emprega no ataque o esforço
necessário.
VADIO
Pois minha pena te dirá quem é o adversário. Te mandarei de volta à zoologia!
TREMEMBÓ
Pois vai se arrepender de ter nascido um dia.267
VADIO
Eu te desafio. Isso não fica assim.
TREMEMBÓ
Eu aceito o desafio. Em prosa, verso e latim!    
CENA IV - Tremembó, Filomena, Armanda, Belisa e Henriqueta.
TREMEMBÓ
Quero que desculpem, senhoras, meu arrebatamento, mas o que procurei
defender foi justamente a vossa
opinião, que ele atacava, quando atacava o soneto que compus.
FILOMENA
Prometo fazer tudo por uma reconciliação.
Mas é assunto encerrado. Já não dá. / Henriqueta, vem cá.
Há muito tempo que eu me preocupo observando
você e vendo que não demonstra a menor vocação
espiritual: / e decidi lhe dar algum espírito por via conjugal.
HENRIQUETA
A senhora tem comigo uma preocupação que não é necessária. / Conversas
culturais não me interessam nada.
Olha, mamãe, eu gosto de viver assim mesmo, uma vida mansa / e esse negócio
de adquirir cultura, cansa.
É uma vocação que não tenho: falar coisas bonitas, / dizer coisas bem ditas,
ah, não: de cultura a gente se empanturra -  / prefiro muito mais ser burra.
FILOMENA;
Mas você me amargura com essa afirmação medonha: / ter uma filha assim é até
uma vergonha.
A beleza do rosto é um frágil ornamento, / uma flor passageira, um éclat, um
momento, inerme e superficial quanto a própria epiderme.
Mas a beleza do espírito é a semente, o germe da luz e da eternidade. Por isso,
muito tempo, procurei um meio de te dar essa formosura, a única verdade. / De
incutir na tua alma o gosto da ciência, a intimidade com o saber.
Agora encontrei a solução / que é fazer a tua ligação com um homem de notável
conhecimento. (Mostra Tremembó.) /  Determino que você ligue ao dele o seu
destino.
HENRIQUETA
Eu, mamãe?
FILOMENA
Você, sim, quem? Não se faça de boba.
BELISA
(A Tremembó.) Percebi que os seus olhos me pedem autorização / pra entregar
Henriqueta seu nobre coração.
Generosamente cedo a ela o que me pertencia. / Acima de tudo eu sou uma boa
tia.
TREMEMBÓ268
(A Henriqueta.) Nem sei como me exprimir a essa alma pura: / esse himeneu é
uma honra, uma graça do céu, uma
ventura.
HENRIQUETA
Uma aventura! Tenha calma, senhor. Não há nada ainda de tão definitivo.
FILOMENA
Mas é assim que se fala! Você sabe muito bem que se eu quiser... Cala! /
Chega! Você me entende. (A Tremembó.) Vamos, não é nada. / Ela está
somente emocionada.
CENA V – Henriqueta, Armanda.
ARMANDA
Sua mãe pra você só deseja o melhor. O escolhido vai ser um excelente marido.
HENRIQUETA
Se é tão bom assim, fica com ele.
ARMANDA
Mas foi você, não eu, a preferida.
HENRIQUETA
Mas eu cedo, Armandinha. Você é a irmã mais velha, / é teu direito. Fica com
ele, tem teu jeito.
ARMANDA
Se eu visse no casamento uma instituição sadia / aceitava tua oferta com a maior
alegria.
HENRIQUETA
Se eu, como você, gostasse de pedantes, / já estava casada muito antes.
ARMANDA
Contudo, embora nossos gostos divirjam frontalmente, / nossa submissão a pai e
mãe não é diferente.
Mamãe é quem comanda nossa forma de agir / e o que resolveu, está resolvido:
não há como fugir.
CENA VI - Crisaldo, Aristides, Cristóvão, Henriqueta  e Armanda.
CRISALDO
(A Henriqueta, lhe apresentando Cristóvão.) Vem cá, minha filha, preciso do
teu consentimento para uma
decisão. Tira tua luva e dá a mão a este cavalheiro, o senhor Cristóvão, que veio
me solicitar que você seja sua esposa.
ARMANDA
Você não é obrigada, irmã, a aceitar logo. Pode pedir para pensar.
HENRIQUETA
Meu pai, irmã, é quem comanda minha forma de agir. / O que ele resolveu, está
resolvido, sem tugir nem
mugir.269
ARMANDA
Você trocou mãe por pai. Verá que não é o mesmo.
CRISALDO
Que estão cochichando aí?
ARMANDA
Tenho um certo receio de que o senhor e mamãe não estejam de acordo.
Mamãe, agora mesmo, com um
outro candidato...
CRISALDO
Mas me cala esse bico, ó magricela! / Vá lá filosofar com ela e não se meta
onde não é chamada.
Conta pra ela a minha decisão / e diga que não quero saber de discussão.
Vamos, depressa.
ARISTIDES
Muito bem, meu irmão. Você está uma maravilha! / É tua, a filha!
CRISTÓVÃO
Ah!, que alegria! Não sei como exprimir minha felicidade!
CRISALDO
(A Cristóvão.) Pegando a Mao dela e levando ela pra lá, sozinho. /Carinho, meu
rapaz, carinho!
(A Aristides.) Ah, meu coração volta a bater com alegria: / esse ardor jovem me
recorda o tempo em que eu podia.
Ato IV - CENA I - Filomena e Armanda.
ARMANDA
Sabe que, do que você decidiu, ela não tomou a menor consciência? / Pelo
contrário, parece até satisfeita com a própria desobediência.
Parecia obedecer às ordens da senhora: / mas resolveu outra coisa assim que foi
embora.
FILOMENA
Eu lhe mostrarei a quem tem que obedecer. / O que é meu direito e o que é seu
dever
- quem manda nesta casa, seu pai ou sua mãe, o espírito
ou o corpo, a matéria ou a forma. / Viver tem uma norma!
ARMANDA
A senhora merecia, pelo menos, uma satisfação; e o tal cavalheiro que quer ser
seu genro tem a audácia de enfrentá-la: / mas ainda é muito tenro!
FILOMENA
Não sabe como está distante de sua pretensão. Eu o achava simpático quando o
que pretendia era a tua
mão.
Mas com o passar do tempo começou a me aborrecer. / Bem sabe que eu
escrevo e nunca pediu pra ler.270
CENA II - Cristóvão entra silenciosamente e escuta Armanda e Filomena.
ARMANDA
Se eu tivesse em seu lugar / jamais permitira aos dois se casar.
Que ninguém pense que falo desse jeito / porque ele me recusou; por algum
despeito.
Contra esse tipo de fraqueza da alma é que a gente confia / na filosofia.
Com elas nos colocamos acima das vãs instabilidades da matéria.
Mas se digo isso com respeito a mim, / não acho que ele tenha o direito de tratá-
la assim.
Colocou-se frontalmente contra uma decisão da senhora:
é preciso impedir que minha irmã se enlace com um homem desse tipo, dessa
classe.
Comigo, pelo menos, / nunca houve um momento, nunca houve uma hora / em
que demonstrasse a menor admiração pela senhora.
FILOMENA
É um jovem idiota.
ARMANDA
Por mais estrondoso que fosse o seu sucesso ele nunca pediu que eu lhe lesse. /
Nem demonstrou o menor interesse.
FILOMENA
Ignorância.
ARMANDA
Eu pegava seus versos, lia com devoção / mas ele nem prestava a menor
atenção.
FILOMENA
O impertinente!
ARMANDA
Brigamos a vida inteira / porque nunca me disse nada que não fosse besteira.
CRISTÓVÃO
(A Armanda.) Devagar, senhorita, por favor. Um pouco de caridade / já que não
é capaz de honestidade.
Que mal lhe fiz eu? Qual é minha ofensa / pra que sua raiva contra mim exploda
tão intensa?
Que é que eu fiz de execrável  / pra que queira me destruir desse modo
implacável?
Por que externar de mim esse juízo / diante de uma das pessoas de quem mais
preciso?
De onde partiu esse ódio mortal / que faz com que me veja de modo tão parcial?
ARMANDA
Se eu tivesse o ódio que me atribui em sua acusação / seria com razão.
Ninguém é mais digno do que o senhor, q que desconhece os direitos do
primeiro amor.271
Ele impõe sobre as almas sua lei / e um homem de bem perde a posição e a vida
mas não sua querida. Um homem leviano é um ser anormal. / Um homem
leviano é um monstro moral.
CRISTÓVÃO
Mas a senhora chama de infidelidade / aquilo a que me obrigou sua própria
vaidade?
Não fiz mais do que reagir à sua indiferença / E só agora percebo que o tomou
como ofensa.
Durante quase dois anos me rojei a seus pés / perdido de amor, perdido. Fiz
tudo por você, lhe dei
meu afeto, lhe prestei serviços, ofereci presentes, me entreguei todo inteiro, fiz
mil sacrifícios. / Eram tudo virtudes ou eram tudo vícios? / Só sei que você
rejeitou tudo, talvez achando pouco.
Agora que escolhi outra me acusa do erro seu. / Mudaria a senhora ou mudei
eu?
Lhe pergunto também: / quem foi que deixou quem?
ARMANDA
O senhor diz que eu o rejeitei, apenas porque quis / modificar-lhe o
comportamento, tirar-lhe o que tinha
de vulgaridade (quase tudo), ensinando-lhe a agir com a pureza / sem a qual o
amor não tem beleza.
Que queria o senhor? O prazer material, / talvez até mesmo um contato carnal.
O senhor jamais aceitaria essa união que só no espírito se concentra, / porque o
corpo aí não entra.
O senhor só conhece é o amor grosseiro - / esse amor em que se usa o corpo
inteiro.
Só uma pessoa sórdida assim como o senhor / tem a coragem de chamar isso
amor.
Espíritos bem dotados / não buscam esses pecados.
Juntam seus corações, seus corpos nunca, falam de alma a alma, / com
serenidade e calma.
Não procuram subterfúgios / pra satisfazer desejos sujos.
Mantemos certa distância nas mais íntimas relações, / amamos só com amor,
sem segundas intenções.
CRISTÓVÃO
Dessa teoria maluca você é tão devota / que, se você tem um corpo, realmente,
ninguém nota.
Eu, porém, infelizmente, / tenho um corpo bem evidente,
e com o amor, então, é pior q - fica um pouquinho maior.
ARMANDA
Oh!
CRISTÓVÃO
Se existe uma maneira de um homem apaixonado / deixar o corpo de lado,
esconder o desejo à parte, / eu não conheço essa arte.
O céu me negou essa filosofia em boa hora, / não vou aceitá-la agora.272
Minha alma e meu corpo marcham juntos; troque! troque! Acho sinceramente
que não há coisa mais bela
do que uma estima só da alma e que cuida apenas dela.
Mas aqui entre nós, sem vergonha, / me diga: não é um pouco enfadonha?
Talvez quem sabe, me falte sutileza / pra entender tanta pureza. /É, acho que a
sua acusação procede – eu só penso em besteira.
Quando amo, amo todo, amo tudo, amo a mulher inteira. E sem querer diminuir
seus lindos sentimentos
acho que o meu tipo de ação tem mais belos momentos,
é uma coisa apreciada em qualquer roda / e até rima com moda.
ARMANDA
Muito bem, cavalheiro, / continua grosseiro.
Mas já que quer assim, tenho, pelo menos, que aceitar que há qualquer verdade
em sua brutalidade.
O senhor só aceita a felicidade quando ligada aos prazeres corporais / e às
sensações carnais.
Pois bem, se minha mãe permitir, eu concedo ao senhor tudo o que desejar. /
Abandono o sublime: e me entrego ao vulgar.
CRISTÓVÃO
Oh, agora é tarde. / Uma outra já tomou o seu lugar.
Eu não poderia voltar sem ferir o coração / daquela que desde o início me
aceitou sem condição.
FILOMENA
Mas, e eu, afinal, caro senhor? O senhor por acaso tem meu consentimento pra
realizar esse outro casamento? Não lhe passou pela veneta que eu posso já ter
escolhido um outro pra Henriqueta?
CRISTÓVÃO
Por favor, madame, reveja pelo menos sua escolha.
Aceito o que decidir, mas tenha dó: não me exponha ao ridículo de ser rival do
doutor Tremembó.
Essa mania intelectual, a que eu sou contrário, / não podia me opor pior
adversário.
Toda época inventa e acomoda / um cretino qualquer e o coloca na moda.
Mas a estupidez do doutor Tremembó / é até uma honestidade - não engana a
um só,
nem nunca esteve em voga - / é uma droga.
Todos fazem justiça a seu talento - / é de jumento.
O que sempre me espantou é ver a senhora dar valor e ouvir embevecida /coisas
que a senhora consideraria veneno, se fossem bebida.
FILOMENA
Só posso lhe responder que é um péssimo retratista: / eu vejo Tremembó de
melhor ponto de vista.
CENA III - Tremembó, Filomena, Armanda e Cristóvão.273
TREMEMBÓ
(A Filomena.) Eu venho lhe trazer uma notícia das mais impressionantes:
enquanto dormíamos escapamos todos de morte certa. / Um mundo de ferro e
fogo caiu em nosso universo e
quase nos acerta.
Se tivesse encontrado a terra, não deixaria um pedaço, / a esta hora nós todos
seriamos pó no espaço.
FILOMENA
Deixemos esse assunto pra outra ocasião. O senhor Cristóvão não lhe acharia
interesse pois tudo que é
ciência lhe causa repugnância: / faz profissão de fé de apregoar a própria
ignorância.
CRISTÓVÃO
o que a senhora afirmou merece atenuantes, / não sou contra os sábios, sou só
contra os pedantes.
Não combato a ciência, / combato a impertinência
que se faz passar por ciência. Não sou contra a leitura / mas contra quem arrota
uma falsa cultura.
TREMEMBÓ
Por mim eu gostaria de saber de que maneira / o senhor distingue uma cultura
falsa de uma verdadeira.
CRISTÓVÃO
A falsa cultura a gente logo nota: / é só olhar bem pra cara do idiota.
TREMEMBÓ
Porém esse é um processo indutivo, intuitivo, não é conclusivo, nem específico
/ - sintetizando: não é científico.
CRISTÓVÃO
Isso eu não sei – não entendo disso. Posso apenas apontar um exemplo, / sem
sair daqui, donde o contemplo.
TREMEMBÓ
Pois eu sempre acreditei que a ignorância fosse a responsável pelo idiota, /
nunca a ciência, direita ou canhota.
CRISTÓVÃO
Pois acreditou muito mal: tome nota / um sábio idiota é mais idiota do que um
ignorante
idiota.
TREMEMBÓ
Oh! É impossível discutir com pessoa tão obnóxia, que fala coisas sem nexo,
procurando paradoxo.
CRISTÓVÃO
Sou apenas um reflexo do pensamento desconexo, que a minha frente vejo fixo,
/ tolo, pedante e prolixo.
TREMEMBÓ274
O saber é imortal. Traz em si a própria semente.
CRISTÓVÃO
O saber de um imbecil é inútil e incoerente.
TREMEMBÓ
A ignorância deve ter dado ao senhor grandes alegrias pelo ardor com que a
defende.
CRISTÓVÃO
Realmente, passei a colocar a ignorância nas alturas / depois que conheci certas
culturas.
FILOMENA
(A Cristóvão.) Cavalheiro, me parece...
CRISTÓVÃO
Oh! madame, por favor não o acuda. O doutor Tremembó pode bem dispensar
sua erudita ajuda. Ele é
bastante forte, Eu já me defendo mal com ele sozinho, estou recuando: /
imagine a senhora ainda o apoiando.
ARMANDA
É, mas os golpes mais baixos foram dados pelo senhor.
CRISTÓVÃO
Outra ajudante? Assim eu não aguento a disputa. / Minhas senhoras, eu
abandono a luta.
FILOMENA
Apreciamos muito os torneios intelectuais / mas não com ataques pessoais.
CRISTÓVÃO
Oh, meu Deus, eu caí em ofensas? Ele está acostumado a ouvir bem mais
intensas.
Em toda parte é alvo de zombaria incrível. / Só aqui se dá ao luxo de se mostrar
sensível.
TREMEMBÓ
Não me espanta nem um pouco, senhor Cristóvão, ver o senhor defender a tese
que defende. O senhor vive na corte, naquela roda restrita, onde não se dá o
menor valor intelecto. / Nada mais natural que defenda a ignorância desse
ambiente infecto.
CRISTÓVÃO
O senhor tem verdadeira ojeriza a essa pobre corte e ela sofre, coitada, porque
os senhores, os talentos
incomparáveis do país, cospem nela, censuram o mau gosto dela, sua vida inútil
e vulgar - / isto é com o maior estardalhaço / a acusam do próprio fracasso.
Acho que os senhores deviam, a qualquer dia, / rever a opinião que têm da corte
e da cortesia.
Porque, se acham que a corte é tão estúpida quanto
se diz, /  posso lhe garantir que essa é uma opinião muito infeliz.
Na corte o senso comum é qualidade essencial / e ali se forma um tipo de gosto
que não é nada mal.275
Olha, acho o mundanismo da corte bem mais puro / do que todo o sabor de um
pedantismo obscuro.
TREMEMBÓ
Estamos vendo um exemplar do bom gosto de que fala?
CRISTÓVÃO
Sim. O pior lá da corte. O melhor desta sala,
TREMEMBÓ
A verdade, senhor, é que Crescius e Nescius, glórias puras da nação, / nunca
receberam, da corte, um níquel de atenção.
CRISTÓVÃO
Já ouvi isso. São queixas normais / feitas por todos os intelectuais.
Mas eu pergunto primeiro: que fizeram pela corte esses grandes heróis? Que
serviços prestaram com seus
magníficos escritos para exigir sempre mais; / que chova sobre eles a
Cornucópia dos favores reais?
O país precisa deles, seu saber é vital. / a Corte não o nega, isso é até oficial.
Mas daí a acreditarem, os miolinhos valiosos, que só / porque escrevem ou
sabem um pouco de ciência
o destino da Coroa depende de sua leniência:
e que a mais modesta folha de suas produções / merece do Estado louvores e
pensões;
que o Universo deve parar para ouvir o que dizem; que são gênios sem iguais /
por arquivarem no cérebro citações banais.
que merecem salamaleques por terem gasto os olhos, durantes noites sem fim, /
se enchendo de bobagens em grego e em latim;
e que, em suma, as pessoas devem parar de comer e de viver para admirá-los só
porque estão recheados
de palavras obsoletas, gordos de teorias ridículas e brilhante reflexões alheias –
isso, sim, é considerar
a Corte fútil, / e a ciência inútil.
FILOMENA
O senhor fala bem, / está cheio de ardor, mas não engana ninguém.
Esconde muito mal / a importância que dá a seu rival.
CENA IV - Tremembó, Filomena Cristóvão, Armanda e Juliano.
JULIANO
O sábio que visitou a senhora há poucos minutos e de quem sou humilde criado
implora que leia imediata- / mente este recado.
FILOMENA
Por mais importante que seja essa mensagem, aprenda, meu amigo, e diga a seu
patrão, / que é uma petulância interromper uma reunião.
E que um criado educado, que quer viver e progredir / deve pedir / a um outro
criado para o introduzir.
JULIANO276
Anoto no meu livro, madame, pode deixar.
FILOMENA
(Lê.) “Minha senhora, Tremembó, em toda parte, se vangloria de que vai se
casar com sua filha. Advirto-a de que é a única filosofia que ele realmente
idolatra é o dinheiro e aconselho que V.Sª. não permita este enlace antes de ler o
poema que estou compondo contra o citado cidadão. Enquanto espera esse
retrato candente pintado com as cores cruas da realidade, eu lhe envio
Horácio, Virgílio, Terêncio e Catulo tendo anotados todos os trechos que
surrupiou.”
Só porque eu prometi minha filha a um homem de valor / chovem ataques de
todos os quadrantes. Não posso agir de outra maneira senão tornando mais
firme a minha decisão de entregar a mãe de Henriqueta a quem determinei.
Assim é que se ensina e se confunde os invejosos. Quem tenta envenenar meu
julgamento / perde tempo e apressa o casamento.
(A Juliano.) Corra a seu patrão e diz que a interferência dele, que pretendia ser
contra, acabou sendo pró:
hoje mesmo casarei minha Henriqueta com o senhor
Tremembó.
CENA V- Filomena, Armanda e Cristóvão.
FILOMENA
(A Cristóvão.) O senhor, como amigo da família, tem permissão de assistir à
cerimônia. Me dá muito prazer.
(A Armanda.) Manda o criado chamar o escrivão e avisa tua irmã da minha
decisão.
ARMANDA
Eu prefiro deixar o senhor Cristóvão encarregado disso. /Acho que deve estar
cheio de ansiedade pra transmitir, ele mesmo, a Henriqueta, a grande novidade.
Gostaria de ouvir o que ele vai inventar / pra que Henriqueta se recuse a casar.
FILOMENA
Veremos de nós dois quem tem mais poder: / eu sei como abrigá-la a cumprir
seu dever. (Sai.)
ARMANDA
Lamento muito, senhor, que as coisa não lhe corram tão bem quanto queria.
CRISTÓVÃO
Lutarei com ardor e o meu parco talento para que a senhorita não tenha ainda
mais motivos de
lamento.
ARMANDA
Se eu fosse o senhor, esse esforço, eu pouparia.
CRISTÓVÃO
Se eu fosse a senhora eu poupava a ironia.
ARMANDA
Seria crueldade usar ironia / com o senhor enfrentando uma causa vazia.277
CRISTÓVÃO
Eu não acho assim e, humildemente, imploro o seu  apoio, a sua proteção.
ARMANDA
Eu acho assim, mas darei meu apoio de todo coração.
CRISTÓVÃO
Com a mesma intensidade eu lhe agradeço. / A senhorita será credora do meu
maior apreço.
CENA IV - Crisaldo, Aristides, Henriqueta e Cristóvão.
CRISTÓVÃO
Sem o seu amparo, senhor Crisaldo, eu serei um infeliz. / Sua esposa decidiu
que eu não sou o genro ideal
e entregou sua filha ao meu pior rival.
CRISALDO
Tremembó?
CRISTÓVÃO
Tremembó.
CRISALDO
Mas que graças, que encantos, viu ela nessa figura? / É um perfeito idiota – é
filosofia pura.
ARISTIDES
Ela decidiu assim / Apenas porque o tipo faz versos em latim.
CRISTÓVÃO
Ela organizou o casamento pra hoje mesmo.
CRISALDO
Hoje mesmo?
CRISTÓVÃO
Esta noite.
CRISALDO
Pois vamos realizar o casamento na hora em que ela
quer.
Não vejo por que contrariar minha mulher.
CRISTÓVÃO
Senhor!
CRISALDO
Eu concordei com o momento que ficou decidido.
Não falei do marido.
CRISTÓVÃO
Mas ela já mandou o escrivão redigir o contrato.
CRISALDO
Questão sem importância, o que interessa é o fato.
CRISTÓVÃO
(Mostrando Henriqueta.) A senhorita já deve ter sido278
informada por sua irmã,
da decisão que Dona Filomena tomou esta manhã.
CRISALDO
Pois eu informo que ela vai casar com outra pessoa e não com esse sujeito à toa.
/ E não me venha mais com Filomenas nem com suas divagações sobre o
himeneu - está decidido – o homem aqui sou eu.
(A Henriqueta.) Nós voltaremos logo. Espera aí. Venham atrás de mim com
decisão, / você, meu genro, e você, meu irmão.
HENRIQUETA
(A Aristides.) Que Deus o conserve assim tão decidido.
ARISTIDES
Farei tudo que puder pra lhe dar força.
CRISTÓVÃO
Por mais esperanças que me dêem, senhorita, eu só / confio na solidez dos meus
sentimentos.
HENRIQUETA
Se isso lhe basta, então tem tudo.
CRISTÓVÃO
Não avalia como sua declaração me faz feliz.
HENRIQUETA
Não é uma coisa fácil com tanta gente contra.
CRISTÓVÃO
Não vejo ninguém contra se a tenho a meu favor.
HENRIQUETA
Eu prometi que seria sua mulher / e não vou ceder ao que minha mãe quer.
Se ela considera minha promessa com desdém / eu posso não ser sua, mas não
serei de mais ninguém.
CRISTÓVÃO
Que o céu me evite a dor / de ter que receber essa prova de amor.
Ato V - CENA I – Henriqueta e Tremembó.
HENRIQUETA
É sobre o casamento que minha mãe contratou, senhor Tremembó, que eu
gostaria de conversar, nós dois sozinhos. Diante da confusão em que, de
repente, eu vejo a casa toda, achei que lhe falar era a melhor solução. / Tenho
certeza que vai me dar razão.
O senhor sabe que, além de minha modesta pessoa, / receberá, ao se casar
comigo, um dote razoável: mas
o dinheiro por que tanta gente se mata, / para um verdadeiro filósofo é uma
coisa barata.
A não ser que o seu decantado desprezo pelo material
e pelo fútil seja atitude apenas pragmáticas; / uma coisa na fala, outra coisa na
prática.
TREMEMBÓ279
O que me atrai na senhora não é o dote, são seus olhos, sua graça, seus
encantos. São esses os bens que me interessam, que atraíram meu amor e minha
ternura.
HENRIQUETA
Eu fico extremamente comovida com sua declaração de amor, até mesmo
confusa pois não posso receber uma dedicação a que não vou corresponder.
Respeito e aprecio a estima que me declara mas existe um obstáculo insuperável
entre nós dois. Ninguém pode pertencer a dois senhores / e Cristóvão já
mereceu todos os meus favores.
TREMEMBÓ
Todos?
HENRIQUETA
(Fazendo que sim.) Sei que ele não tem metade dos / méritos do senhor, que
devo estar errada,
mas que posso fazer? Sou uma desastrada.
Eu teria que ficar com o senhor se seguisse a razão, / mas deixei-me arrastar
pela emoção.
Ah... não posso fazer nada: / ou me caso com ele ou sou uma desgraçada.
Que o senhor passe a me odiar é meu único receio; / mas, que posso fazer? se eu
própria já me odeio.
TREMEMBÓ
Eu aceito sua mão, por ela me arrisco a tudo. Contra a aparência de Cristóvão
oponho meu conteúdo.
Aos poucos, com cuidado, / tenho a certeza que me farei amado.
HENRIQUETA
Mas não, eu já estou de tal forma comprometida que / aceitar seu sacrifício, na
verdade, seria uma infidelidade.
Estou abrindo pro senhor o meu coração amargurado / e sei que o que eu digo o
deve deixar chocado:
o ardor que a gente sente, a atração que a gente tem
não vem de análise calma / é um capricho da alma.
Como uma questão de fé - / não se explica, é porque é.
O senhor é um homem tão sábio, o senhor é um homem tão serio, / que meu
amor seria seu se o amo fosse um critério.
Mas ele tem lá suas próprias leis, é cego, como dizem / e o senhor não vai
querer curar minha cegueira se utilizando do dever de obediência, / que minha
mãe quer impor com violência.
Como homem de bem não pode se utilizar dessa regra apenas social, / um ranço
dos costumes, caminho do imoral.
Não obrigue minha mãe a cumprir uma promessa, / à qual, sei, esta presa apenas
por orgulho.
Livre-se desse compromisso vazio, oco, / e eu não poderei deixar de amá-lo um
pouco.
TREMEMBÓ280
Estou de acordo com tudo que me diz e a senhorita mostra, dizendo, que não é
apenas bela. Mas no momento / em que à graça e ao encanto se acrescenta o talento
é um paradoxo exigir que eu abra mão dessa extraordinária mulher / em favor
de um outro qualquer.
Você colocou a situação de maneira feliz, / concordo com o que diz,
lhe dou toda razão / mas, amor... é emoção.
HENRIQUETA
Mas o senhor, um homem tão afamado, / bem podia se emocionar pra outro
lado.
TREMEMBÓ
Não existe no mundo, uma outra faceta. / O mundo pra mim gira ao redor de
Henriqueta.
HENRIQUETA
Piedade, senhor.
TREMEMBÓ
Se meu amor a ofende eu lamento dizer que vai se sentir ofendida toda a vida.
Se meu amor faz de sua vida um inferno, / convém se informar – meu amor é
eterno.
Nada pode diminuir o encanto que sinto, nem mesmo sua recusa completa e
total; / para fazê-la minha, nada é imoral; / o dever de obediência é um recurso
legal.
Sua mãe concorda, nós nos casaremos, não tenha receio. / Quero que seja
minha, pouco me importa o meio.
HENRIQUETA
Mas o senhor sabe que arrisca muito mais do que pensa usando a violência pra
fazer o que quer? O senhor não seria o primeiro que, arrastando uma mulher a
casar pela força, numa ação desonesta, / obriga-a, posteriormente, a lhe adornar
a testa.
Pense só um momento - / a chifrada é filha do ressentimento.
TREMEMBÓ
Esse discurso agressivo a mim não me amedronta.
Ser sábio é estar preparado para o que venha e aconteça. / O que me importa é o
interior não o exterior da cabeça.
Essas coisas existem, eu vejo, não sou cego. / São fraquezas vulgares que não
temo e renego.
O destino é o destino e eu não o ajudo: / mas também não se pode viver se
prevenindo tudo.
HENRIQUETA
O senhor sabe que, sinceramente, me extasia? / Eu não esperava tanto da
filosofia.
Agora sei que ela ensina a gente a suportar todo e / qualquer acidente. Isso faz
do senhor uma pessoa tão
rara, alem de tão notória, / que decididamente eu não sinto merecer essa glória.281
Entrego a qualquer outra a responsabilidade, me meto num convento, me mato,
me arraso, / mas com o senhor EU NÃO CASO.
TREMEMBÓ
O futuro dirá. E eu entro, / porque o escrivão já deve estar lá dentro.
CENA II – Crisaldo, Cristóvão, Henriqueta e Martina.
CRISALDO
Oh, minha filha, estou contente de te ver. Quero que você cumpra o seu dever,
submetendo teus sentimentos filiais à minha vontade. Quero ensinar tua mãe a
viver e a deixar viver. Que viver muita vez é uma coisa bem rasa: / Martina
volta hoje a trabalhar nesta casa.
HENRIQUETA
É uma resolução digna do maior elogio. Mantenha a decisão, meu pai, que é
certa, fique firme nela e não deixe que explorem tua bondade. Mamãe está
viciada: / não vai querer ceder em nada.
CRISALDO
Como! Um grande bobo-alegre, você assim me define?
HENRIQUETA
Que o céu me fulmine!
CRISALDO
Um homem sem vontade, um fraco.
HENRIQUETA
Quem foi que insinuou isso? Com certeza, um velhaco.
CRISALDO
Compreende o meu bom senso como falta de firmeza!
HENRIQUETA
Eu não, meu pai! Eu o acho uma dureza!
CRISALDO
Acha que, na idade que tenho, ainda não sei o que faço / e que minha mulher me
conduz pelo nariz?
HENRIQUETA
Bem papaizinho, o senhor é quem o diz.
CRISALDO
Que aqui eu não mando nada.
HENRIQUETA
Manda às bandeiras despregadas.
CRISALDO
Se ouço bem, diria que a sua voz tem uma certa zombaria.
HENRIQUETA
Se tem não é intencional; / deve ser gripe nasal.
CRISALDO
Ainda bem! A minha vontade aqui é para ser seguida, não ironizada.
HENRIQUETA282
É o que eu digo sempre, meu pai.
CRISALDO
E não pode nem ser rivalizada, / quanto mais contestada.
HENRIQUETA
O senhor tem carradas de razão.
CRISALDO
Eu sou o único e verdadeiro chefe de família.
HENRIQUETA
Já não é sem tempo.
CRISALDO
O quê?
HENRIQUETA
Mas há muito tempo!
CRISALDO
Sou eu quem disponho da vida de minha filha.
HENRIQUETA
Bravo!
CRISALDO
O céu me deu poder de vida e morte sobre ela.
HENRIQUETA
Alguém disse o contrário?
CRISALDO
E para escolher marido eu mostrarei a todos que é o seu pai, não sua mãe, quem
lhe dá permissão.
HENRIQUETA
Oh, que bom: o senhor me dá hoje minha maior emoção: / obedecer às suas
ordens sempre foi minha ambição.
CRISALDO
Quero ver minha mulher, esse monstro de rebeldia...
CRISTÓVÃO
Lá vem Ella com o escrivão. Enfrente-a que hoje é o teu dia.
CRISALDO
Todos aí, apoio, hein? Apoio!
MARTINA
Sem medo, senhor, que o senhor leva vantagem. / Se precisar, use a minha
coragem.
CENA III – Filomena, Belisa, Armande, Tremembó, um escrivão Crisaldo e
Henriqueta
FILOMENA
(Ao escrivão.) Já que é uma cerimônia não usual, o senhor não poderia deixar
seu estilo antiquado
e usar algo mais... algo mais requintado?
ESCRIVÃO283
O nosso estilo é excelente, madame, e o contrato é de minha própria lavra. / Não
admito mudar nele uma palavra.
BELISA
Ah, que barbárie, que vulgaridade popular um casamento na França.
Pelo menos, senhor, uma pequena mudança. / No lugar de francos, libras e
escudos, anote o dote em
minas e talentos e ponha as datas em idos e calendas.
ESCRIVÃO
Eu fazer isso, senhora? Jamais. Não sou nenhum estrupício
- conheço bem meu ofício. Se eu chegasse no cartório com um ofício assim
redigido /seria logo demitido.
FILOMENA
É inútil tentar convencer a ignorância. Vamos, senhor, quanto mais depressa...
Sente-se, por favor. (Ela percebe Martina.) Mas, ah, essa indecente tem a
audácia de entrar aqui outra vez? / Foi você quem apoiou tanta desfaçatez?
CRISALDO
Esse assunto, com calma, discutimos noutro momento. / Agora o que interessa é
concluir o casamento.
ESCRIVÃO
Procedamos ao contrato. Onde é que está a futura?
FILOMENA
É essa menos madura.
ESCRIVÃO
Muito bem. Onde está ela?
CRISALDO
Está aí, senhor. Henriqueta, é o nome dela.
ESCRIVÃO
Excelente. E o futuro?
FILOMENA
É esse ali, todo duro. (Mostra Tremembó.)
CRISALDO
(Apontando Cristóvão.) Permita-me lhe apontar, / o jovem que vai casar.
ESCRIVÃO
Muito bem. Dois maridos. Tenho a impressão de que / não é bem o costume. Se
pudessem escolher um dos / dois me seria mais fácil e...
FILOMENA
(Ao escrivão.) Mas, que está dizendo, senhor? Por que parou? Vá, vá, ponha aí
– o nome é um só.
Escreva Tremembó.
CRISALDO
Se não escrever, eu escrevo com minha própria mão. / Ponha aí, bem claro:
Cris-tó-vão.
ESCRIVÃO284
Se os senhores quiserem eu me retiro, os senhores discutem algumas horas,
alguns dias e eu volto depois,
com mais vagar. Uma semana basta?
FILOMENA
Eu já lhe disse, senhor, há muito tempo, a minha decisão. Por que não escreve?
CRISALDO
Eu sou o pai, Crisaldo, me obedeça.
ESCRIVÃO
Não tenho a menor dúvida em obedecer – fui educado assim. O problema é a
qual dos dois. É saber quem
manda em mim.
FILOMENA
(A Crisaldo.) Muito bem, o senhor ousa interferir nas minhas pretensões.
CRISALDO
Só posso permitir que alguém leve minha filha / pelo bem que lhe quer e não
pelos bens da família.
FILOMENA
Quer dizer que é isso que deixa a sua mente preocupada? / Ora, meu bem, para
um sábio isso não vale nada.
CRISALDO
Não tenho mais o que dizer. Já escolhi Cristóvão.
FILOMENA
(Mostrando Tremembó.) E eu já escolhi esse aí . / E não cedo nem discuto.
CRISALDO
Meu Deus! Que tom mais absoluto!
MARTINA
As mulheres só podem decidir quando decidem!
FILOMENA
Que deseja essa louca?
MARTINA
Acho que as mulheres só podem abrir o bico quando  têm razão. Senão é uma
besteira confessa, / que só ajuda os marmanjos que já mandam à beça.
CRISALDO
Eis uma filosofia.
MARTINA
Mesmo que me despeçam cem vezes, esta verdade eu não calo: / a galinha é
melhor pra botar ovo / não pra cantar de galo.
CRISALDO
Indubitavelmente; é indubitável.
MARTINA
Ninguém não se ri de uma mulher que obedece a um comando. / Mas pobre de
um barbado todo brando.
CRISALDO
Bem observado.
MARTINA285
Se eu tinha um marido, eu acho que eu queria ele bem macho.
Alguém prefere mole o marido? / qualquer sentido?
E se eu agisse mal / eu acho que ele devia me sentar o pau.
O meu marido. / Em qualquer sentido.
CRISALDO
Um tanto ousado / mas muito acertado.
MARTINA
Em vez desse doutor aí que eu não entendo, eu acho o patrão muito sensato / em
querer pra genro dele um homem de fato.
CRISALDO
Pois é.
MARTINA
Por que ele ia recusar o moço forte e bonito com quem a filha quer casar, pra
ficar com esse sábio das quantas / que, pra mim, oh, nada do que ele fala me
adianta.
O que a gente precisa num marido é de muito amor / - na cama todo mundo é
professor.
CRISALDO
Extraordinário! Muito revelador.
FILOMENA
Mas ela não se cala?
MARTINA
Os professores só servem pra ensinar na escola – a vida é uma outra coisa. Pra
marido meu eu digo e bendigo / só serve um cara que afinar comigo.
Porque se me vem com altas prosopopéias  / eu não entendo mesmo, pra mim é
uma odisséia.
Não é que eu, ignorante, vá dizer que um livro não tenha seu momento – não
tem é nada a ver com casamento.
Na verdade, pro homem meu, / eu queria que o livro fosse eu.
Que ele não saba nem mesmo o ABC, / isso a gente nem vê.
Mas depois de um dia de trabalho que ele não se esqueça,  / dê o que a gente
merece – compareça!
FILOMENA
Pronto? Acabou. Agora podemos falar nós? / Já terminou a mensagem da sua
porta-voz?
CRISALDO
Só falou a verdade.
FILOMENA
Está bem. Mas a questão está encerrada. / ignorância nunca mudou nada. / O
fundamental é fazerem o que decidi. / (Mostra Tremembó.) Henriqueta se casa
com o cavalheiro aqui.
Não adianta falar, eu disse e está acabado.
Henriqueta não é a única mulher nesta família. / Cumpra sua palavra com o
senhor Cristóvão dando-lhe
nossa outra filha.286
CRISALDO
Não, depende de mim, depende deles. Talvez, quem sabe, aceitem a troca. (A
Henriqueta e Cristóvão.) Que dizem, aceitam?
HENRIQUETA
Oh, meu pai!
CRISTÓVÃO
Senhor Crisaldo!
BELISA
Eu poderia sugerir a troca mais agradável. Uma substituição que o satisfizesse.
Infelizmente, porém, eu só vejo o amor como uma luz muito pura, branca, sem
calor.
uma sensação divina, alta e emocionante, / feita apenasmente de matéria
pensante.
  CENA IV - Aristides, Crisaldo, Filomena, Belisa, Tremembó, Henriqueta,
Armanda, Escrivão, Cristóvãoe Martina.
ARISTIDES
Lamento interromper assim, sem aviso, o mistério do ato matrimonial mas, se
há uma coisa que nunca se anuncia, é exatamente o mal. Sou portador de
tristezas. Duas cartas, ambas cruéis. (A Filomena.) A sua é enviada por seu
procurador. (A Crisaldo.) E esta aqui te mandam de
Lion.
FILOMENA
Que conterão de tão assustador?
ARISTIDES
Vieram abertas. Leia.
FILOMENA
“Madame, pedi ao senhor seu irmão, que lhe entregasse esta missiva, que lhe
dirá o que não me atrevi a dizer pessoalmente. A incrível negligência que
sempre demonstrou pelos negócios impediu que o seu procurador me avisasse a
tempo das datas de solicitação judiciária e isso fez com que seu adversário
ganhasse o processo que praticamente já havíamos ganho. Uma perda irré-
parável pois a lei não permite mais apelos.”
CRISALDO
(A Filomena.) Ah, Deus. Seu processo perdido!
FILOMENA
(A Crisaldo.) Você se perturba demais por coisa tão vulgar. Não pense que uma
questão material vai conseguir me embalar.
Se aborrecer por dinheiro não se coaduna / com uma pessoa como eu: eu
desprezo fortuna.
“A sua displicência legal infelizmente vai-lhe custar quarenta mil escudos além
de todas as custas que a senhora foi condenada a pagar por sentença da egrégia
corte de justiça.”
Condenada? Isso, sim, me abala! Um termo tão chocante. 287
Já que a ação me foi tão custosa, / não precisavam me tratar como uma
criminosa.
ARISTIDES
O termo está mal, você tem toda razão. A palavra é mal empregada.
Ele devia ter posto rogar, a senhora é rogada. Porém isso é apenas um pequeno
excesso: / o que importa são os quarenta mil e as custas do processo.
FILOMENA
E a outra carta?
CRISALDO
“Caro senhor, a amizade que consagro ao seu irmão faz com que eu me
interesse também por todas as coisas que lhe dizem respeito. Sei que colocou
todas as ações que possuía nas mãos de Argante e Damon e quero preveni-lo de
que perdeu tudo que tinha. Suas ações
caíram da noite para o dia e tiveram que ser vendidas a preço vil”.
Ó Céus, perder assim, da noite para o dia, / tudo o que possuía!
FILOMENA
Oh, mas que vexame! Que aflição indigna! Dar importância funesta a uma
simples perda material! Para uma pessoa sábia o dinheiro não importa. / Só dá
importância a ele quem tem uma visão torta.
Mas vamos com a cerimônia que a vida passa veloz. / (Aponta Tremembó.) Os
bens que ele possui chegam bem pra todos nós.
TREMEMBÓ
Olhe, madame, pensei melhor e devolvo sua aliança. / Lutar contra todo mundo
chega a um momento – cansa. / Deixo sua filha livre e em paz e que me
desculpe tudo: já a contrariei demais.
FILOMENA
Espantosa a rapidez de sua resolução, / coincidindo estranhamente com a nossa
situação.
TREMEMBÓ
A verdade é que mesmo um sábio tem seu lado humano. / Querer quem não me
quer, eu sinto, é leviano.
FILOMENA
A esta altura o senhor faz muito bem em sair desta história / mas sai sem muita
glória.
TREMEMBÓ
Que a senhora me julgue como bem quiser, já não me / importa sua opinião.
Não posso continuar sofrendo ofensas / e a ser, nesta casa, motivo de tantas
desavenças.
FILOMENA
Ainda bem que Henriqueta resistiu, lhe foi contrária, / dando tempo pra ele
revelar a alma mercenária.
CRISTÓVÃO
Por mim eu gostaria de ser um pouco mais mercenário pois teria agora mais o
que oferecer. Aceite porém,
minha senhora, o pouco que eu tenho e rogo-lhe que não deixe que ninguém 288
mais se intrometa no grande
amor que devoto a Henriqueta.
FILOMENA
O senhor me encanta com sua generosidade / e sinto agora que o que fiz com o
senhor foi crueldade.
Mas se aceita ainda uma compensação / lhe concedo minha filha e lhe estendo
minha mão.
HENRIQUETA
Não, minha mãe, mudei de pensamento: / eu não desejo mais o casamento.
CRISTÓVÃO
Como? Mas que capricho é esse? O que você quer – minha infelicidade? Agora
que todos concordam, você...
HENRIQUETA
Eu sei que você não é um homem rico. Quando eu o queria pra marido achava
que as nossas condições
materiais seriam protegidas por meus pais. E não seria justo eu aceitar você num
momento de adversidade
fazendo-o partilhar de mil dificuldades.
CRISTÓVÃO
Todo destino, com você, pra mim é agradável / Todo destino, sem você, me é
insuportável.
HENRIQUETA
O amor não realizado fala assim, exaltado. Mas no dia-a-dia, / as necessidades
da vida matam toda a alegria.
E os amantes de ontem se fazem acusações / que não existiriam em outras
condições.
ARISTIDES
É só esse o motivo?
HENRIQUETA
É só esse, o motivo?
O dinheiro é tão importante quanto importante é estar vivo.
Dê-me outras condições materiais / e eu corro pra Cristóvão – pois o amo
demais.
ARISTIDES
Pois corra então, atire-se em seus braços. As notícias / que eu trouxe não eram
verdadeiras. Um estratagema, uma mentira que inventei para servir ao amor.
Para mostrar a minha irmã a ambição que vivia / debaixo da saia da filosofia.
CRISALDO
Que o céu seja louvado.
ARISTIDES
Louvado seja!
FILOMENA
Também estou contente com a decepção que o impostor vai sentir quando
souber das pompas da festa que vou realizar neste himeneu. / Vai morrer de
amargura ao ver o que perdeu.289
CRISALDO
(A Cristóvão.) Eu não te disse? Quem manda nesta casa?
ARMANDA
(A Filomena.) Assim, à felicidade dos dois, você me sacrifica.
FILOMENA
Oh, minha filha: tua felicidade é mais ampla e mais rica.
Eles têm só alguns anos de carinho e euforia: / você tem a eternidade da
filosofia.
BELISA
Impressionante é que ninguém vê nada: / só eu sei que a atitude dele é
desesperada.
Por despeito, está claro, fez essa besteira. / E vai se arrepender a vida inteira.
MARTINA
Agora é me calar pra sempre, fingir de boa / e concordar com as concordâncias
da patroa.
CRISALDO
(Ao escrivão.) Vamos, cavalheiro, senta aí e escreve o contrato exatamente
como eu exigi.

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