Rei Lixo [ Especial Santa Rosa em Cena ] • por Fernanda Abegg

Por Fernanda Abegg • @fernandabegg
Montar Shakespeare nunca é tarefa simples. É, aliás, uma ousadia — especialmente quando falamos de Rei Lear, uma das tragédias mais devastadoras já escritas. É como olhar nos olhos de uma besta e dizer: “vamos brincar?”. Há um risco quase insolente nisso. E é justamente nesse local que o Grupo Teatral Máschara se coloca. A trupe não só honra a dramaturgia, como a rasga, remixa, esfrega na lama e, paradoxalmente, a eleva — figurativa e literalmente — a outro patamar.
A estrutura central permanece: o rei divide suas posses entre as filhas, favorecendo as duas mais velhas, bajuladoras e interesseiras, enquanto exila a mais nova, a única íntegra, cujo amor se expressa sem exageros, “nem a mais, nem a menos, na medida”. A vaidade e o poder decrépito dessa engrenagem trágica impulsionam a narrativa, agora assentada não mais na corte britânica, mas em um lixão. A riqueza é transfigurada em trapos, incesto e antropofagia: um território perfeitamente fétido e fértil para bufões.
O espetáculo sustenta, em todo seu percurso, uma teatralidade grotesca, visualmente fixante. Tudo isso é deliberado, lapidado, pensado do início ao fim. Ali estão patriarcado, bajulação, avareza, loucura, traição e morte: uma baixaria shakespeariana em seu melhor sentido, revelando o quanto a decadência do poder perpassa um local inevitável e trágico. É Shakespeare atualizado no corpo e na narrativa cênica, sem perder de vista os jogos de interesse que atravessam a condição humana
No centro disso, Kléber Lorenzoni constrói um rei instigante e poderoso que, diante dos nossos olhos, se transforma de tirano em velho caduco, espumando de cólera enquanto chafurda no próprio caos. Seus trejeitos oscilam entre o soberano e a criança, até que a pompa cai e o que se revela é um corpo assustado, solitário e desamparado. No colapso mental e físico, ecoa a fala: “Homens comuns e reis entram e saem do mundo do mesmo jeito: pequenos e solitários.” A tragédia se cumpre justamente aí. A força do herói se dissolve, nivelada pela experiência incontornável da finitude, dentro da complexidade do personagem de Rei Lear e do espectro criativo que o ator transita.
As imagens corporais criadas pelo elenco aparecem como uma relação simbiótica, um organismo que se modula em cena. A construção visual — especialmente na abertura, com o bando chegando, e na cena final, quando o elenco reverencia o público — reafirma o teatro como espaço sagrado, um lugar de encontro entre atores, divindades e plateia. Essa lógica também aparece nos micronúcleos ao longo da peça: corpos que se encaixam, deformam, sustentam e contam histórias para além das palavras. A relação entre as irmãs, entre o Rei, seu bobo e seu servo, por exemplo, apresentam uma linguagem corporal que vem do cômico, das acrobacias e da escrita cênica para além do texto.
Nesse sentido, a elaboração dos corpos, baseada em animais, revela uma pesquisa riquíssima das deformações bufonescas que não nascem de deficiências físicas humanas, mas de características animais. É o caso do corvo/pinguim de Renato Casagrande, intérprete de Edmundo. Essas máscaras corporais completam a distorção da obra, uma vez que o bando não é composto por humanos em estado puro. E é aí resida a chave da maestria da encenação.
Rei Lixo tem um elenco que brilha coletivamente, e as indicações no festival comprovam isso. Além do prêmio de Melhor Ator a Kléber Lorenzoni, Carol Guma venceu como Melhor Atriz Coadjuvante; Douglas Maldaner e Kleberson Ben foram indicados a Melhor Ator Coadjuvante; Ana Costa e Antônia Serquevitto, a Melhor Atriz Coadjuvante. Além disso, o espetáculo levou para casa o prêmio de Melhor Figurino e Melhor Maquiagem, com um volume significativo de reconhecimentos, condizente com o impacto visual, corporal e dramatúrgico do trabalho.
“O mundo é uma ironia de Deus sobre os homens”, diz a peça. E Rei Lixo comprova que é mesmo. Ali, o humano se mistura ao grotesco. Ali, o sagrado e o profano dividem o mesmo palco. Os deuses do teatro certamente saúdam esse trabalho. E Baco, sem dúvidas, estava presente, de pé e aplaudindo.
—@fernandabegg é gente de teatro. Atua, leciona, pesquisa e escreve sobre. Licenciada em Teatro pela UFSM, tem pós graduação em Economia Criativa, Cultura e Inovação e especialização em humor pela SP Escola de Teatro.
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FOTO: Gabriel Brutti @gabrielfbrutti
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FICHA TÉCNICA
Grupo Teatral Máschara
Autor: Kléber Lorenzoni – adaptação da obra Rei Lear, de William Shakespeare)
Elenco: Kléber Lorenzoni, Carol Guma, Ana Costa, Antônia Serquevitio, Júnior Lemes, Kleberson Ben, Renato Casagrande, Douglas Maldaner
Direção: Kléber Lorenzoni
Cenografia: O Grupo
Iluminação: Ana Clara Kraemer e Kléber Lorenzoni
Sonoplastia: Clara Devi e Kléber Lorenzoni
Figurino: Renato Casagrande e Kléber Lorenzoni
Maquiagem: O Grupo
Cenografia (operação): O Grupo
Iluminação (operação): Ana Clara Kraemer
Sonoplastia (operação): Clara Devi
Contrarregra: Roberta Teixeira e Felipe Brandão








