Análise crítico da quarta edição do Festival de Teatro de Capão da Canoa -por Romeu Waier

 Eu tive a oportunidade de participar da 4ª edição do festival de teatro de Capão da Canoa, que aconteceu entre os dias 21 e 27 de maio de 2023. O festival reuniu diversos grupos e artistas de diferentes regiões, que apresentaram seus espetáculos e participaram de debates sobre temas variados, como gênero, identidade, política, cultura e sociedade.

Eu achei o festival uma iniciativa louvável e importante para a valorização e a difusão da arte teatral no Brasil, especialmente em um momento de crise e de incertezas que estamos vivendo. O festival proporcionou um espaço de encontro e de troca entre os artistas e o público, estimulando a reflexão e a criatividade. Além disso, o festival contribuiu para a democratização e a diversidade do teatro brasileiro, dando visibilidade e oportunidade para grupos e artistas independentes, que muitas vezes não têm acesso aos grandes circuitos culturais.

No entanto, é importante abordar uma problemática que observei durante uma avaliação dos jurados no Festival de Teatro de Capão da Canoa. Em alguns momentos, percebi que houve um foco maior sobre o discurso e ideologia política, desviando o foco dos fatos concretos e da melhoria do espetáculo em si. Infelizmente, presenciei uma deturpação de termos relacionados a discussões como lgbtfobia, racismo e machismo, envolvendo-os em elementos para problematizações de forma superficial e sem considerar o contexto cultural, histórico e social dos Grupos.

Devo enfatizar que acredito firmemente na importância de debater e problematizar a arte como uma forma de ideologia e discurso. É fundamental refletir sobre os temas sociais presentes nas obras teatrais e seu impacto na sociedade. No entanto, quando esses termos não são utilizados via uma interpretação semiótica, a problematização pode se tornar um fim em si. A problematização deve ser um meio para alcançar um objetivo em comum, o debate, mas quando a mesma não parece alcançar um foco, fica na área superficial.

É importante lembrar que, séculos atrás, já conhecíamos essa abordagem como sofismo, em que a retórica era utilizada para manipular e desviar o foco da essência da discussão. O teatro, como forma de expressão artística, pode tocar as emoções e instigar pensamentos profundos. No entanto, quando a problematização se sobrepõe ao produto apresentado, corre-se o risco de achar significados onde não há, ou simplesmente usar uma lente de aumento distorcida sob um projeto que não se propõe falar sobre o assunto. Poderíamos dizer que somos todos racistas em desconstrução e isso é uma verdade, mas vou mais além, diria que somos todos extremistas em desconstrução. Digo isso porque não importa sua posição politica, se não tiver discernimento poderá ter sua percepção semiótica alternada pelas lentes do extremismo.

Ora a linguagem da vida é a semiótica e quando colocamos uma obra no palco estamos sempre pontuando Arquétipos, símbolos e estereótipos. Nesse sentido sempre devemos estar atentos aos estereótipos que estamos repercutindo enquanto artistas. Mas sempre deve-se considerar o contexto social, cultural e econômico. E quando decidimos criticar um produto artístico com uma linguagem de problematização, devemos questionar se estamos criticando baseado no que realmente vimos e sentimos ao assistir ao espetáculo, ou por uma pressão de grupo e cargo que estou ocupando nesse espaço. Essa interpretação não pode ser baseada em um efeito manada ou etiqueta social política, mas de fato na interpretação semiótica que o espetáculo transmitiu.

Da mesma forma que cabe aos jurados desinibir de suas crenças ao assistir a um espetáculo, cabe também aos artistas questionar suas crenças colocadas em cena. Dessa forma interpretamos oque assistimos de fato aquilo que nos foi apresentado. E os artistas podem também refletir e se precisar alterar sua percepção sobre sua própria obra. Mas isso não ira acontecer se fizermos de forma superficial e impositiva.

Portanto, é fundamental encontrar um equilíbrio saudável entre a problematização, interpretação e expressão artística. Deve promover um diálogo aberto e construtivo, onde os termos e conceitos sejam usados ​​com responsabilidade, respeitando a integridade do espetáculo e permitindo que os artistas expressem suas visões e narrativas sem medo de serem mal interpretados ou censurados.

Nesse sentido, é necessário buscar um ambiente que estimule a diversidade de opiniões, onde a crítica construtiva e o debate genuíno possam florescer. A arte deve ser um espaço de liberdade e criação, onde são abordadas questões importantes, mas sem perder de vista a magia e o impacto emocional que ela pode proporcionar.

Além disso, devo ressaltar um acontecimento perturbador que presenciei durante o festival. Houve um momento em que um dos jurados se dirigiu de forma agressiva a um dos atores, que estava interpretando um papel feminino. A jurada questionou a identidade de gênero do ator, sugerindo que o grupo poderia ser transfóbico ou machista. Essa situação criou uma atmosfera de mal-entendido e potencialmente levou o público a pensar de forma equivocada sobre as intenções do grupo.

É importante notar que, ao longo da história do teatro, muitos artistas têm interpretado personagens de gêneros diferentes dos seus. Um exemplo notável é o talentoso Paulo Gustavo, que conquistou imensa popularidade interpretando mulheres e trouxe grande alegria ao público. No entanto, é curioso observar que os mesmos jurados que debatem sobre esse segmento não questionam Paulo Gustavo por ser homem e interpretar uma mulher. Essa discrepância pode ser considerada, no mínimo, uma forma de hipocrisia.

A arte teatral sempre foi um espaço onde artistas desafiam limites e exploram personagens diferentes, independente de seu gênero. A interpretação de personagens femininos por atores masculinos é algo que deve ser problematizado quando o ator pretende criar um esteriótipo pejorativo da figura da mulher, que no caso não era essa a proposta do espetáculo avaliado. E também percebendo a reação do público, não foi essa interpretação que os mesmos tiveram. Justamente porque muitos estavam elogiando a trupe, desde mulheres, negros, comunidade LGBT e inclusive o pai de uma criança autista. É importante separar a atuação artística da identidade de gênero pessoal do ator, compreendendo que o teatro é um universo de representação e expressão criativa.

No contexto desse incidente, é necessário um diálogo aberto e esclarecido, onde os artistas têm a oportunidade de explicar sua abordagem e intenções artísticas. A pressão imediata de transfobia ou machismo pode ser injusta e prejudicial para o grupo e para a arte em si.

O teatro é um espaço de liberdade e criatividade, onde os artistas podem explorar diferentes facetas da condição humana. É essencial que os jurados e o público mantenham uma mente aberta e sejam capazes de separar a arte da realidade, reconhecendo a diversidade de interpretação e perspectivas que podem coexistir harmoniosamente no palco.

Que esses incidentes servem como ponto de partida para discussões mais aprofundadas sobre a liberdade artística, a igualdade de oportunidades e a importância de evitar julgamentos precipitados. Que podemos buscar a compreensão mútua e o respeito pelas diferentes abordagens e interpretadas no mundo do teatro.

Além disso, devo destacar uma preocupação feita por uma das juradas em relação ao texto de Ivo Bender, um destacado dramaturgo gaúcho. Como jurada em um festival de teatro gaúcho, seria de se esperar que ela tivesse familiaridade com o trabalho de Ivo Bender. No entanto, sua avaliação foi de que não via sentido na montagem do espetáculo “Complexo de Electra” pelo Grupo Máschara, sugerindo que o texto seria ultrapassado para as discussões contemporâneas.

Considere essa avaliação equivocada por parte da jurada. O texto de Ivo Bender é profundamente relevante dentro do contexto cultural gaúcho. É fácil desconsiderar essa importância quando não se vive ou não se compreende a trajetória e o contexto cultural específico que o texto representa. As histórias e vivências presentes no “Complexo de Electra” continuam a ressurgir na nossa contemporaneidade.

Os clássicos têm um lugar valioso no teatro e devem ser apreciados. Eles nos conectam com a nossa herança cultural, fornecem percepções sobre a condição humana e oferecem oportunidades para reflexões, críticas e assuntos relevantes. Interpretar e reinterpretar textos clássicos é uma forma de manter viva a chama da tradição teatral, ao mesmo tempo, em que abrimos espaço para novas perspectivas e diálogos contemporâneos.

Portanto, é fundamental reconhecer a importância de preservar e promover o legado dos dramaturgos regionais, como Ivo Bender, cujo trabalho aborda temas e experiências profundamente enraizadas na cultura gaúcha. A diversidade de perspectivas artísticas é o que enriquece o cenário teatral, permitindo que diferentes vozes sejam ouvidas e contribuam para a evolução da arte.

Que as estimativas dos jurados sejam embasadas em um conhecimento aprofundado e respeito pela história e cultura da região em que estão inseridos. Que as diferenças de opiniões sejam discutidas de forma construtiva, reconhecendo a cultura dos clássicos e a importância de preservar a riqueza cultural do teatro gaúcho.

Termino essa crítica enfatizando que estarei engajado nos próximos debates no meio teatral, seja em festivais ou fóruns artísticos para que juntos possamos debater muitas mais ideias

Evoé

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